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A Deusa Bandida: Capítulo 28

Novela de Carlos Mota
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A DEUSA BANDIDA - CAPÍTULO 28

A noite, como uma deusa imponente, ergue-se de seu leito e estende sobre as ruas, avenidas, casas, prédios e monumentos de Brasília o seu longo, fino e delicado véu…

— Acorda, vagabundo! Sua hora chegou! Daqui a pouco será a mocinha da rapaziada da Papuda! — anuncia um agente em meio a um sorriso sarcástico, correndo um cassetete pelas barras da cela, para o espanto de Álvaro, que se levanta do chão, apreensivo.

— Eu irei agora? — teme o que o destino lhe reserva.

— O que cê acha, bandido? O juiz mandou, tá mandado! Agora saberá o que é uma colônia de férias de verdade… — zomba. — O último que mandei pra lá quis dar um de valentão e não passou da primeira noite, por isso, fique de boa, se os caras mandarem abrir a perna, que o faça; melhor perder a dignidade que a vida, né, não, cambada? — provoca os outros detentos, que riem feito hienas, menos o velhote, que encostado à parede, coça o queixo, cismado com a movimentação pouco usual para o horário. — Apostei em você, aguente pelo menos uma noite, hein? Agora vire-se de costas, vamos, não quero perder a final da partida, logo agora que o “Corinthia” meteu dois nos Trikas¹.

Com ele algemado, o policial abre a cela e o puxa para fora com violência.

— Pra um abusador, cê tá meio acabado, não tá, vagabundo? — o homem o observa dos pés a cabeça com ar de deboche. — O que foi? A hospedagem lhe fez mal? Coitado! Se eu soubesse que estava tão pra baixo, tinha-o posto junto ao Presuntinho, talvez ele lhe desse um gás, sabe como é, um bom amasso sempre faz bem.

— Ainda dá tempo, mande o puto aqui, que eu faço ele bambear as pernas… Uuuhhh! — passa a língua pelos beiços ao mesmo tempo em que esfrega as mãos. — Tô que não me aguento, mais um pouco, trepo nesta grade e uivo, preciso mesmo é de um momento de descarrego. Vamos, jogue o malandro aqui! Confia que dô conta! Vamos!

— Ninguém vai tocar nele! — determina o velhote.

— E quem é você para me dizer o que devo ou não fazer, bicho à toa? Fique no seu canto, antes que eu lhe desça o porrete! — esbraveja o oficial, afastando o velhusco, que o fixa sem demonstrar medo.

— Por que tá me encarando, viado? — bate o cassetete contra as grades. — Vai querer enfrentar, malandro? Pô, tô com sede de sangue, se bobear, te cato ainda hoje… Uma boas porradas e você ficará uns dois ou três dias dormindo, o que acha? Bom não dar um de valente, comigo vagabundo não se cria! Hum! Vamos logo dar o fora daqui — volta-se para Álvaro —, antes que eu perca a cabeça.

Os dois avançam pelo corredor em direção à saída.

— Ô, véio, tá querendo morrê? — pergunta Presuntinho, ao perceber que o policial não o ouvia.

— Cara, aquele parça tem algum pacto com o Português, pois é certo que antes que o dia clareie, ele esteja bem longe, com um baita fuzil nas mãos e o idiota do oficial ainda não percebeu. No fundo, eu estava protegendo ele… Que idiota!

— Eita! Ladrão dando guarida pra coxinha? — estranha Salsicha.

— Se os mano descobre, o mundo desaba!

— Fica na sua, cara! O que tá feito, tá feito!

— Cê gostou do estrupador, né? — insinua Presuntinho. — Conta aí pá nóis! Sem precunceito, véio!

— Que história é essa, meu? — irrita-se o velhote. — Este coxinha é muito burro, deve tá por fora dos assunto, o cara é protegido de meio mundo do crime, se ele resolve encrespar, a casa vai caí, inclusive nóis tudo!

— Sonha! — gargalha Salsicha. — Bobalhão daquele jeito, só faiz mal às minas…

— Espere pra vê! — o homem tem a impressão de que algo acontecerá, como se já soubesse.

Álvaro é levado para um quartinho, bem nos fundos, onde aguarda a viatura, que manobra no pátio, preparando-se para recolhê- lo.

— Os reforços que solicitei estão atrasados — diz Chiara, conferindo o relógio. — Que estranho! Isso não é muito comum! Clóvis, chame-os pelo rádio!

— Tá tudo mudo, doutora! Pelo que vejo aqui há uma sobrecarga no sistema, por isso estamos sem acesso até mesmo à Central.

— Como assim?

— Acho que o mundo desabou e a gente ainda não se deu conta.

— Isso não está me cheirando bem! Sei lá! Tem algo errado! Espere aí! — faz uma ligação do celular e quase cai de costas. — Agora? Não pode ser, Enrico! — perde a cor.

— E tem mais, alguma coisa me diz que estamos prestes a sofrer um ataque — alerta o delegado afastado, de volta ao hospital, para continuar o tratamento.

— O que foi, senhora? — pergunta o oficial, assustando-se com sua expressão de medo.

— A Sol Nascente está pegando fogo, toda a guarda local foi desviada para lá, Zangado tá metendo bala em todo mundo… Tá mais louco que de costume, fazendo de reféns jovens, crianças e idosos, até a Federal correu para lá. O negócio está feio e sem controle! Não se sabe ao certo o motivo de tudo isso, talvez seja uma guerra entre facções pelo domínio do tráfico na região.

— A senhora está falando sério? — derruba no chão a rosquinha que comia. — Deixe eu ver na tevê… Caraaamba! Olhe, doutora!

“Adolescentes encapuzados jogaram gasolina por todo o ônibus, em seguida, atearam fogo, fechando todas as portas para que ninguém sobrevivesse ao atentado. A gritaria era ensurdecedora, ninguém entendia nada! Não bastasse, dois coquetéis molotov foram lançados, cuja explosão retorceu a ferragem do ônibus, cozinhando pessoas vivas, enquanto outras eram pisoteadas e umas poucas, encorajadas talvez por um Deus certamente conhecido na juventude, chutavam os vidros e se lançavam contra as chamas… Ao chegarem do outro lado, à espera, oito criminosos com metralhadoras em punho — agindo como anjos da morte, enviados do inferno — prontos para deportá-los ao abismo dos excluídos.” — relata o repórter, transmitindo o incêndio, ao vivo, de um helicóptero, para todo o Brasil.

“A insanidade era tamanha que não percebi minhas pernas arderem em fogo; só me dei conta do ocorrido quando ouvi as sirenes das viaturas policiais se aproximarem. Segurei na barra de ferro e pulei a janela. Os bandidos estavam nas proximidades. Sem força, fiz-me também de morto no meio daquele amontoado de corpos” — conta o estudante de Direito, após ser resgatado pelos policiais.

— Feche a delegacia, vamos, isso não é por acaso, eu sinto! — ordena Enrico, em pânico. — Chiara, ouça, a quadrilha que está por trás disso pratica uma encenação para desviar o foco, o que querem mesmo é o bandido que aí está. Entenda, mulher! Seja rápida! A vida de todos vocês corre risco.

“Passei pela roleta e fui me sentar bem no fundo. Encostei minha cabeça sobre o vidro e foi de lá que, pela primeira vez, olhei o céu. Não havia estrelas, apenas manchas… Manchas? Sim, de uma coloração forte e de difícil discernimento. Nunca tinha visto! As casas foram passando, as vitrines… cochilei! Acordei algumas quadras à frente! Nada de anormal! Algumas senhoras do meu lado desceram e, à minha frente, um senhor cedeu o lugar a uma jovem mãe com sua filhinha. Olhei o relógio, eram 21h49. Trinta segundos depois, invadiram o ônibus. O povo entrou em pânico, até então pensei que fosse um assalto; mas ao perceber o cheiro de gasolina, dei-me conta de que se tratava de algo pior… Muito pior!” — narra uma professora aos jornalistas, enquanto é atendida pelos socorristas. “Fui salva por obra de Deus”.

“Mataram meus filhos e netos… Por que, meu Pai? Por quê? O que fizeram de tão mal para receberem tamanho castigo? Responda, Senhor!!! ” — grita uma idosa, num vestido de chita surrado, ao ver os familiares entulhados, formando uma barricada na entrada da favela, o que dificulta o acesso das autoridades à bandidagem.

— CHIARA, FECHE A DELEGACIA JÁ!!! — a mulher está

sem reação, mas Clóvis, que estava próximo, toma a iniciativa ao ouvir parte da conversa.

Nos fundos, a viatura está rente à porta. O policial, com Álvaro em mãos, bate na lataria, que não abre ao primeiro chamado.

— E aí? Não vão dar as caras, não? Pô, tô perdendo o finzinho do jogo do Corinthia — dá uma risadinha, apesar de estranhar a reação dos agentes. — Vocês tão de sacanagem, né? Depois quero aquele barão que me devem… Ganhei a aposta ou se esqueceram? Aquele estelionatário não aguentou uma semana na jaula, só que vocês não me pagaram. Assim não dá, né? E com esse bobalhão — aponta para o protegido de Aurora —, não será diferente. Vou ganhar na maciota — bate de novo. — Vamos! Cadê vocês?

— Estamos aqui!!! — responde um dos encapuzados, escancarando a porta do veículo, com um fuzil às mãos, para o desespero do policial, que se atira ao chão, tentando se defender dos tiros, enquanto tenta alcançar a própria arma. Antes que pudesse sacá- la, é alvejado na cabeça e no tórax, o sangue escorre, lambe o chão, formando uma poça. A violência dos disparos é surpreendente. Furam colunas, estouram vidros, arrebentam portas…

Dois policiais que assistiam ao jogo tentam uma reação e são covardemente assassinados. A quadrilha resgata o bandido, para a alegria de Aurora, que ao vê-lo, retira o gorro preto e sorri, com lágrimas nos olhos. Surpreso, ele não reage. Nunca imaginou que voltariam para buscá-lo, até onde tem conhecimento, Luizinho é seu desafeto, assim como Egídio, e se o resgatam é por algum motivo que ainda desconhece. Seja lá o que for, está de volta às ruas e aos braços do crime. Ao rever o policial que tanto o humilhou, abre um pequeno sorriso e nele cuspe. A vingança é mesmo um prato que se come frio! Quem diria!

A quadrilha mostra todo o poderio bélico e invade as instalações, quer mais alguma coisa. E o que seria? Não se sabe! Durante a empreitada, aproveitam para dar baixa no maior número de oficiais. E assim acontece. Para liberar o caminho, jogam uma granada, que destrói parte de uma parede, para a alegria de alguns detentos, que aplaudem a iniciativa do bando.

— Carai!!! — surpreende-se Salsicha. — O truta é mesmo protegido da bandidagem!

— Ô, véio, cê já sabia do esquema, né, filha da puta? — cobra Presuntinho, assustado. — Por que não disse pra nóis? A genti pegava mais leve com o bobalhão.

— E quem disse que não avisei? Vocês que não me ouviram! O cara é filhote do Português; se precisar matar todo mundo aqui pra resgatá-lo, não pensarão duas vezes. Fiquem de boa aí! É melhor! — o homem olha o tempo todo para o fim do corredor, como se esperasse alguma coisa.

De repente a porta voa contra as grades, os bandidos invadem, para a euforia dos presos, que gritam, uivam e relincham. Vistoriam cela por cela e, ao encontrarem a do velhote, estouram a fechadura, resgatando-o.

— E aí, parça? — cumprimenta Ribeiro. — Você foi uma encomenda do Zangado! Vamos levá-lo daqui!

— Antes me dê uma cospe fogo — pede o velhusco.

Com ela em mãos, aponta para os dois meliantes que zombavam de Álvaro.

— Poderia acabar com cês dois agora…

— Ô, véio, faiz isso não, nóis é de boa — implora Presuntinho.

— Dá uma chance aí, meu! Sempre fui fã do Zangado, o cara é foda, bota pra quebrar.

Ao contrário do amigo, Salsicha recolhe-se ao fundo da cela, onde permanece em silêncio.

— Bandido bom é bandido morto, como diria o outro — dá um sorriso lustroso, atingindo a perna de um e o braço de outro. — Isso é pra que se lembrem que a vida nem sempre dá uma segunda chance. Aprendam!

Os caras berram de dor, enquanto eles se retiram. Chegam à sala do delegado. Está trancada. Estouram. Encontram Chiara e Clóvis, com armas em punho, prontos para atirarem; os olhos faiscantes dos criminosos se encontram aos intimidados da delegada, que dá o primeiro tiro, sem rumo, sendo imediatamente consumida por uma rajada de balas; o outro oficial só não recebe o mesmo destino porque se joga ao chão, escondendo-se debaixo da mesa, e quando vão à sua procura, Luizinho os chama, aos gritos, o tempo é curto, o surto na Sol Nascente estava cedendo, era preciso partir. Trêmulo, com a respiração descompassada, as calças molhadas e à beira de uma crise de nervos, Clóvis tenta se levantar assim que eles deixam o lugar. Nunca imaginou que a delegacia um dia seria invadida. O crime era mesmo organizado! Tramava o plano e o executava com exatidão. Na política fariam sucesso, se é que já não estão.

— Chiara… Chiara… — o delegado aterroriza-se ao ouvir pelo celular da mulher, que está caído a alguns metros, o violento tiroteio.

— Chiaaara!

— MATARAM A DOUTORA!!! — responde, num misto de desespero e loucura. — MATARAM A DOUTORA!!! Os caras estavam armados até os dentes!!! Parecia cena de cinema, tinha bandido para todo canto com fuzis e granadas às mãos. Nos ajude, senhor!!! — implora, como se fosse possível. — Fale com quem quer que seja, mas reassuma seu posto e bote este bando na gaiola.

— E os outros, Clóvis??? Vá ver!!! Vamos!!! Coragem, meu amigo!!!

— MEUS DEUS!!! DA EQUIPE SÓ SOBROU EU, SENHOR!!!

— revela, com a voz embargada, ao avistar os corpos por todos os lados. — DESTRUÍRAM TUDO, MATARAM TODOS!!! — a cena é desoladora.

Enrico, que estava certo desde o início, cai em prantos ao tomar conhecimento das mortes. E promete, se necessário for, agir à revelia da Justiça dos Homens para colocar esta corja atrás das grades. Nem que fosse a última coisa que fizesse em vida.

A viatura parte em alta velocidade pelas ruas projetadas da já não tão encantadora Brasília de um Kubitschek² visionário.

“Como eu gostaria de matar este miserável!” — pensa Egídio, correndo o cano da arma pelo braço. “O que será que o Português está armando? Gostaria de saber, porque até agora eu não entendi direito esta história… Pôr toda a Família em risco por conta deste merda? Tem alguma coisa que não bate em tudo isso. Hum! Se eu já fosse o Patrão do bando, jamais aceitaria esta palhaçada. Na primeira oportunidade, meteria fogo neste traste”.

— Sei no que está pensando… — diz o patrão ao comparsa, que se mostra completamente transtornado. — É melhor ficar de boa, porque se nele tocar, serei obrigado a também dar cabo da sua vida! O lusitano está desajuizado, mas ainda é o chefão da Família.

— Obrigado por tudo! — Álvaro agradece o velhote. — Cê me deu proteção quando eu mais precisava! Se não tivesse chamado os coxinha quando tive a convulsão, certamente não estaria vivo. Mas diga lá, amigo, já sabia do esquema?

— Soube ontem por um dos polícia que Zangado só toparia ajudar a tirar você da jaula se me resgatassem junto. Como o Português é um homem de palavra, aqui estou! — dá um risinho de lado. — Daqui a algumas horas me encontrarei com aquele anão aleijado, lá na Sol Nascente… Mas agora é preciso dar um tempo; para que nos salvassem, foi preciso criar todo um circo, enganar os homi, atraí a atenção da imprensa e os caras, fala sério, são muito bons nisso! E como são!

— Então foi o Português que me salvou? Mas por quê? Eu

nem o conheço! — conversa consigo mesmo, entendendo o motivo de Luizinho e os comparsas terem vindo ao seu socorro.

— Hã? O que disse? — pergunta o velhote. — Não escutei direito!

— Não é nada, apenas pensei alto. E quanto aqueles dois merdinhas, passou-lhes fogo?

— Dei-lhes apenas um corretivo. São dois bandidinhos desqualificados, daqueles que mancham nossa imagem — desdenha.

— E você, como está? — Álvaro se volta para a cigana, que sorri discretamente.

— Pensei que não escaparia dessa… Mas logo estaremos longe daqui!

Os dois se olham. De um lado há uma fulminante paixão que

consome o âmago de uma mulher corajosa que ousou se embrenhar pelos caminhos obscuros de uma vida que não permite erros; do outro, uma profunda admiração, talvez os primeiros sinais de um amor que ameaça frutificar em um coração hoje entregue a uma deusa cruel, que por seus caprichos mais fúteis, é capaz das maiores agruras. Se o destino lhes dará uma oportunidade? Nem o tempo se arriscaria a responder!

De repente, um pouco antes de chegarem ao aeródromo, uma miscelânea de sentimentos estranhos oscula a alma ferida da cigana, fazendo-a se curvar com as mãos sobre o ventre, bastante ofegante, como se uma dor muito intensa lhe corresse todo o corpo. Trêmula, apoia-se ao banco, e só não vai ao chão porque Álvaro, atento, a segura.

— O que foi? Ei! Responda! — indaga, curioso, dando leves tapinhas em seu rosto, ao perceber que ela desfaleceria.

Um forte clarão se abre do nada, de onde é possível se ouvir os violinos tocarem e as moedas caírem; e de se contemplar as ciganas – felizes, em vestimentas coloridas, costuradas com muito esmero – dançarem, de pés descalços, com as palmas batendo, em volta de uma grande fogueira, cujas labaredas, de tão altas, ameaçam tocar o céu, que sorri, agraciado com a grandeza daquela cena. E no meio deles há um homem, que faz sinal para que Aurora, um pouco distante, se aproxime. Ela resiste. Está receosa. Então ele vai ao seu encontro, bem devagar, com o espírito cheio de paz; quando o reconhece, ela grita de alegria e corre feito uma criança espevitada até entrega-se aos seus abraços.

— Ô, minha menina!!! — diz o homem, sorridente, exalando o forte perfume das matas. — Pensaste mesmo que a deixaria? Nunca estiveste sozinha! Nunca!

— Me ajuda, vô! Perdi-me no caminho e não há como regressar!

— Ainda acreditas em teu avó, pequena? Confirma ao balançar a cabeça.

— Então venhas! Venhas! — conduz a neta por um estreito corredor, no meio do matagal, que descamba em um riacho, onde a lua se mostra refletida nas águas cristalinas. — Não tenhas medo! Teu avô está aqui! Agora me dês tua mão! Isso! Estás gélida, descorada — vira as palmas para cima —, e as linhas da vida, entrelaçadas, como se tivessem feito um nó, não apontam mais para nenhuma direção… É hora de corrigir o rumo, fazer o que manda o coração, reatar-se com tua natureza, reaver o tempo perdido, reencontrar-se com tua crença, deixar Santa Kali navegar dentro de seu interior, como se ainda estivesse em alto-mar, suplicando pela proteção do Cordeiro… Se ela o atravessou, por que você não faria o mesmo com este riacho? A fé é o segredo que fecha a alma para o mal. Venhas comigo!

Entram na água.

— Vô, tenho medo!

— Não tenhas, minha menina… Assim como você, Santa Kali desafiou os próprios limites e os venceu, encorajada pela fé que tinha no filho do HOMEM; então, feche os olhos e me sigas… O caminho é tortuoso, escorregadio, traiçoeiro, perigoso, mas se acreditares, o venceremos juntos… Venhas! Venhas com calma!

E enquanto atravessam, o homem reluz, em meio àquela imensidão divinamente silenciada, clamando proteção à sua santa negra: 

“Bondosa Santa Sara,
abranda os leões que rugem para devorá-la,
afugenta as almas perversas para que não possam enxergá-la,
ilumina sua tristeza para a felicidade chegar.”

Estão no meio do caminho, a água está na cintura da mulher, que entregue às mãos do avô, sente-se aliviada, como se a correnteza levasse grande parte de seu fardo.

“Venceste o mal, todas as tempestades,
e caminhou nas estradas que Jesus Cristo andou.
Mãe dos mistérios ciganos,
que dá força a todos os ciganos no dom da magia, fortaleça-a agora…”³

Chegam ao outro lado da margem. Ao soltar as mãos e abrir os olhos, o avô não estava mais lá. Chama-o com a voz sufocada; como não obtém qualquer resposta, pensa em se entregar, mas dessa vez era diferente, algo dentro dela havia reacendido, e ao invés de vacilar, se ajoelha e ora, em lágrimas de dor, clamando por piedade. E eis que uma força misteriosa, advinda das terras mais remotas, onde estão os ancestrais sobre a proteção da Natureza, a possui; e das cinzas ressurge, como a Fênix, que bate as asas e voa até o extremo do céu, demonstrando toda sua majestade. À distância, o avô sorri, percebendo que a pequena, enfim, estava preparada para as grandes ciladas do destino. E assim como Santa Kali venceu o mar, Aurora venceria as águas intempestivas da Vida, não sem antes provar das consequências de seus atos… O preço exigido por desviar-se de seus caminhos!

— O que há com ela? — pergunta o Patrão, no banco da frente, ao vê-la sem reação.

— Não sei, senhor! — responde Álvaro, amedrontado. — É como se algo lhe roubasse as energias de repente…

— Será que morreu? — pergunta o velhote, assuntando-a. — Esquisito demais! Do nada, apagou!

— Aurora!!! Aurooora!!! — remexe-a, temendo o pior. — Acorde!!! Vamos!!!

— Precisamos mudar a rota — diz ela, recobrando os sentidos, numa vozinha mole, quase inaudível, segurando o amado pelo braço.

— O que ela está falando? — exige o Patrão. — Não estou entendendo nada!

— Mude a rota! — está cada vez mais corada, agora sendo compreendida por todos. — Faça o que estou dizendo! Por favor!

— Que conversa é essa? Imagine! Estamos perto do aeródromo, nossa fuga está toda arranjada e, como da primeira vez, sairemos ilesos; dentro de algumas horas, estaremos em São Paulo.

— Luiz, a corda está ruindo… — insiste. — Eu sinto!

— A única corda que há está em nossos pescoços, basta um puxão do Português, para que deixemos o mundo dos vivos e habitemos a seara dos mortos.

— Mude os planos, eu te peço… — suplica, impaciente. — O mal, em toda sua forma, nos aguarda! E contra ele não há arma que dê conta! Vamos, homem, não é hora para picuinha, deixe de lado a arrogância e faça o que estou lhe pedindo.

— Está avariada! Esqueceu-se? — rebate. — Deve estar é a me tramar alguma, principalmente agora, que seu belo castelo, na mais alta colina, recebe de volta o príncipe que nunca foi rei — o ciúme o consome.

— Mas ela não é a mulher das carta e das forças oraculares? — pergunta o velhote a Álvaro. — Por que não lhe dar ouvidos? Vai que os cara já descobriram os plano… melhor não arriscar! E quem mexe com magia, tá sempre um passo à frente, como dizia um irmão meu da favela. Sei lá! Um arrepio tá correndo minha espinha, bom sinal não é. Da última vez, parei na cela daquela delegacia.

— Vamos em frente, o patrão tem razão, a cigana não consegue mais enxergar um palmo à frente do nariz — os olhos de Egídio estão injetados de um vermelho sangue; assim como Luizinho, acredita que ela esteja a lhes aprontar uma trairagem com a intenção de se safar da fúria do Português e terminar nos braços do amado.

— VOCÊS NÃO ESTÃO ME OUVINDO? A DESGRAÇA ESTÁ DIANTE DOS OLHOS E NINGUÉM ENXERGA? — exalta- se. — SE PERSISTIRMOS NESTE CAMINHO, NÃO HAVERÁ COMO ESCAPAR… PARE O CARRO, DEEM MEIA VOLTA, TOMEM OUTRO RUMO, ANTES QUE O DESTINO CUMPRA O QUE ME ASSOPRA AOS OUVIDOS.

— CALE A BOCA, VAGABUNDA! — berra o Camaleão. — QUEM MANDA AQUI SOU EU!!! NADA MUDA, ATÉ PORQUE, JÁ SAQUEI A SUA!!! AMULETO PARTIDO NÃO SE CULTIVA; DESTRÓI!

— Já ouviu aquela paródia, patrão? — provoca o capanga, fitando-a com ar de ironia.

O homem não entende.

— Cigana, ciganiiinha — impõe ênfase às palavras —, vamos todos ciganaaar, vamos dar meia volta, volta e meia vamos dar. O anel que tu me deste, era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou…

— O que você pretende com esta porra, bandido? — percebe a maldade de Egídio e o enfrenta. — Quer que eu lhe passe fogo agora? Será um prazer! — aponta-lhe o revólver. — Faça estas gracinhas com a puta que lhe traiu, seu lazarento.

“Lazarento é a peste que o pôs no mundo, seu arrombado! E não fale assim de minha Elisa, senão o encho de balas!” — pensa, com o ódio a lhe cegar. “Que ela não prestava e me estacava galhos por toda a cabeça, eu já sei, mas isso não lhe dá o direito de zombar da memória dela… Apesar de ser uma vagaba, ela tinha fogo na cama e desejo nos olhos… Que fui enganado? Ah, isso fui! E daí? Mas fui um enganado que viveu feliz! E se não fosse pela praga do Álvaro, ainda estaria com minha gostosa.” — volta-se para o protegido de Aurora, a um passo de perder o senso. “O cara é um filha da puta, por isso não me conformo em tê-lo salvado; espero que o lusitano tenha noção da bobagem que está fazendo! Hum! Mas uma coisa eu garanto, quando menos esperar, serei eu a lhe tirar o resto de vida que lhe corre pelas veias… Quero ter o prazer de meter este vagabundo na primeira vala que encontrar!”

— Entendeu? — o patrão exige uma resposta. — Responda!

— Sim, senhor! — Egídio abaixa a cabeça enquanto as mãos sentem o gelo do cano de sua arma. Por mais que quisesse, esta não seria a hora de perder a razão.

— Luiz, se me ama como diz, faça o que lhe peço! — apela, balançando o homem, que não demonstra.

— Era bom o senhô dá ouvido à mulher, ela é porta-voz do diabo, e como tal, está entre o bem e o mal; se diz que há algo de errado, não custa averiguar, não acha? — reforça o velhote. — O que não quero é voltar para o xilindró!

— Cale a boca aí, vovô! — intromete-se Egídio. — Aqui é da Família e com ela ninguém pode! Se mostrar de novo estes dentes, juro que os arranco um a um e os espalho por toda a porra da Sol Nascente. Desde quando um filhote de Zangado cresce entre nós? Tá pra nascer!

Mesmo contrariado, Luizinho faz uma ligação. Sabe que Aurora não era de mentir, mas diante das circunstâncias, de sua vontade de regressar ao povoado, do amor que demonstra pelo pilantra, não conseguia nela mais confiar. O que desejava mesmo era contrariá-la até onde pudesse e, ao primeiro erro, entregá-la aos cães, ainda que isso lhe custasse o sofrimento eterno. Que a amava, não tinha dúvidas! Mas ninguém vive de amor, aliás, somente os fracos. E estes, infelizmente, estão fadados à morte!

— Não há nada de novo, a aeronave está pronta, ninguém por perto, nem uma alma sequer. Como eu disse, você está avariada, mulher!

— Não! Tem alguma coisa errada! — Aurora recebe a informação com surpresa porque algo dentro dela pede para que se afaste, uma tragédia está iminente. O que seria se não a prisão de todos? Não tinha a menor ideia! A única certeza era a de que o demônio rondava a quadrilha na pele de um lobo voraz e que logo devoraria o primeiro que se pusesse diante dele. O fim estava cada vez mais próximo!

— Não disse, não serve mais nem para rampeira! — espezinha o Patrão. — Maldita hora que a conheci.

— RESPEITE-A! — exige Álvaro, revoltado.

— E QUEM É VOCÊ PARA ME EXIGIR ALGUMA COISA, BANDIDO? SÓ NÃO LHE METO UMA BALA NA CARA AGORA PORQUE VOCÊ, POR INCRÍVEL, QUE PAREÇA, É UMA ENCOMENDA DO PORTUGUÊS!

Álvaro emudece.

— Não percebeu que o truta aí devia trabalhar como ator, Patrão? Faz cara de que não sabe de nada… Coitadinho! — aplaude Egídio. — Tá na cara, se bobear, é o X-9 da Família, aquele que entrega tudo ao Português, porque o homem está sempre um passo à frente de tudo que fazemos…

— Eu nem o conheço!

— Conta outra, malandro! — interfere o velhote, pondo em dúvida as palavras dele. — O Portuga não iria arriscar a segurança da própria Família se você não lhe representasse algo… Hum! De boa, não quero me meter, mas acho que a máscara caiu.

— Viu, Patrão? Até o maluco ali concorda comigo! — Egídio instiga a desavença. — E sabe o que ele mais quer? O seu lugar! Por isso, eu daria um de louco, inventaria uma história e o mandaria logo para o quinto dos infernos. O Português jamais saberia da verdade, se dependesse de mim… Vamos, pegue sua arma e faça logo o serviço! Para todos os efeitos, o vagabundo, depois de cheirar “uma carreira”, virou um monstro, e para pará-lo, só o apagando. Vamos! Eu garanto a trama!

— Eu não! — intervém a mulher, encarando-os com ira. — Serei a primeira a delatá-los! Bando de abutres!

— Aproveite e a mande também para o mesmo buraco… Vamos, Patrão! Tem hora melhor para acertar as contas?

— Não, esta história não se sustenta… Onde ele teria arranjado

o pó?

— Isso é com o velhote, ele é do tráfico! — as ideias do capanga

ganham tração a ponto de Luizinho ficar tentado. — Serviu-o ainda na gaiola! E para não deixar rastro, despache-o também! Será a limpa que faltava!

— Cara, cê tá doido? — desespera-se. — Eu não dei nada para o truta aí não! Vou contá tudo pro Zangado, cês tão é de sacanagem, querem me usar pra acabar com o meliante. Me deixem de fora dessa, até porque, o Português não é burro, basta um exame pra descobrir que o cara não tava noiado.

A lucidez reabre os olhos de Luizinho, que diz:

— O velhote tem razão! Bastaria uma coleta de sangue para que toda nossa história caísse por terra. Melhor aguardar!

“Miséria de vida! Quase lá, não fosse por este vovô… Ainda o trucido, seu verme! Espere e verá!” — pensa Egídio, remexendo os punhos.

Chegam ao aeródromo…

A viatura os leva até a aeronave. Descem devagar, com as armas em riste, um dando cobertura ao outro. É neste momento que o velhusco toma outro rumo, mas antes que chegasse ao portão de saída, é alvejado por Egídio, que descarrega toda sua raiva.

— Por que fez isso? — pergunta o patrão, com veemência. — Zangado entrará em curto e o Português virá para cima da gente!

— O senhor não viu? Foi legítima defesa! — o cinismo é de arrepiar. — O malandro quis me passar fogo primeiro, na certa, estava cheirado.

— Sei! E não teremos nenhuma dificuldade em provar, não é? — dá uma risadinha. — Aquela cara de viciado não enganava…

— Exatamente, Patrão! E se Zangado insistir no chilique, eu mesmo lhe arrebento a outra perna. Fique tranquilo!

A primeira a subir a escadaria é Aurora, que mesmo emocionada por ouvir a voz do avô — que lhe implora para que deixe o local — prossegue. Depois é a vez de Álvaro, seguido de Luizinho e Egídio. E quando se preparavam para sentar-se, uma voz um tanto infantil, aveludada, faz-se ouvir nos fundos da aeronave:

— Patrão?!! — pergunta, sem saber quem é.

— HÃ?!! VOCÊ??? — o Camaleão a reconhece. — O QUE FAZ AQUI??? — não entende o que se passa.

— Cumprimentos do Português! — responde Diana, a alguns passos, com a arma apontada para a cabeça dele, o que causa espanto em Álvaro, que liga os fatos. Era por ela que o lusitano o havia resgatado, isso explica a afirmação dela, ainda na delegacia, quando o visitou.

Angustiada, Aurora se recolhe, buscando alguma proteção, enquanto a criatura em forma de gente, ruge, atormentada, querendo a pele, o corpo, o sangue e a alma de Luizinho, que mesmo desconcertado, encontra a arma na cintura; antes que pudesse reagir, uma bala atravessa sua cabeça, para o deleite da fera, que vocifera de prazer, vendo-o colidir contra uma poltrona e cair, até o sangue, em filetes e goles, revestir o assoalho, trazendo consigo o cheiro da carnificina. Ao lado dela, apenas visível aos olhares atordoados de uma cigana que se perdeu pelo mundo, estava o quarto cavaleiro do Apocalipse, aquele a quem chamam de Morte, com o Inferno às costas. Era o prenúncio da chegada do fim dos tempos, em que a Deusa Bandida, ora vestida de anjo, ora de demônio, viveria para sempre entre os homens, espalhando toda sorte de guerras e fomes, pragas, doenças e ataques letais.

— Uau!!! Que sensação maravilhosa!!! — revela Diana, vendo-o caído aos seus pés. — Como disse o Português, não há nada que se compare!!! Enfim, dívida feita; dívida paga! — sentencia.

Egídio a tem sob a mira, mas não a mata; uma mensagem de texto o adverte de que a fera deve terminar o serviço.

— Tanto disfarce para terminar em um buraco como os outros!!! — escarnece, à procura de Aurora. — E aí está você, piranha! — diz ao encontrá-la agachada entre dois bancos, com as mãos entrelaçadas, num pranto comovente. — Como esperei por este momento! O que pensou? Que eu não revidaria o ataque recebido? Ledo engano! — gargalha. — Chegou sua hora! — aponta-lhe a arma.

— O que você vai fazer? — pergunta Álvaro, com os olhos esbugalhados.

— MATÁ-LA! Ainda não percebeu? — engole-a com os olhos.

— E com uma só bala, cobrarei a dívida do Português e lavarei minha honra!

— Não deixarei que faça isso! — surpreendentemente, coloca-se entre a cigana e ela. — Antes, terá de me matar também!

Fria e calculista, Diana o encara sem esboçar qualquer reação, mantendo-se em posição de ataque. 

_____________

1. Apelido atribuído ao São Paulo Futebol Clube.

2. Juscelino Kubitschek, então presidente, idealizou a construção de Brasília como síntese de seu plano de modernização do Brasil. Durante as obras, não poupou recursos para que a cidade projetada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa fosse erguida. Os trabalhadores que a fizeram ficaram conhecidos como candangos. A cidade foi inaugurada em 21 de abril de 1960.

3. Oração cigana adaptada.

autor
Carlos Mota

com ilustrações de
Andrea Mota
 
elenco
Luara
Álvaro
Aurora
Diana
Martim Vaz
Leonor Moreira Vaz
Beatriz Vaz
Matilde
Cleide
Eufrásio
Sofia
Luizinho como Patrão e Camaleão
Egídio
Enrico
Português

trilha sonora
Immortal - Thomas Bergensen
 
produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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