6x02 - Casaco de Couro
de Bento Qasual
Nildo está no restaurante combinado. Está com sua melhor roupa. Camisa xadrez, dentro de uma calça dois números maiores. O sapato era do tempo que ia para a igreja. Há tempos não usava e estava apertado e gasto. Podia jurar que sentiu sua meia úmida no caminho até o restaurante. Provavelmente pisou numa poça e o sapato deveria estar furado. Pudera! Tão antigo que era.
Pediu uma cerveja ao garçom de rosto cansado, que tinha a idade do seu pai, provavelmente. Quer dizer, a idade que seu pai teria caso estivesse vivo. Morreu eletrocutado na banheira do velho apartamento, na Liberdade. A polícia achou um corpo e um secador dentro da banheira cheia de água. Falavam em suicídio, uma vez que seu Jair era careca. Pois bem…
O garçom trouxe uma garrafa e um copo gelado. Serviu a cerveja e Nildo se sentiu incomodado. Jamais era servido. Sentia um incômodo, quando alguém lhe fazia algo. Mesmo sabendo que iria pagar a conta, a cena o incomodou. Não pensem que teve algo a ver com o garçom ser parecido com o pai, etc. A morte do velho não o afetou de jeito nenhum, mal o conhecera. O que dava enjoo em Nildo era o fato dele não fazer esforço.
O garçom partiu, e ele olhou no relógio. Tinha marcado com Paula às 20h. Estava atrasada, em uns vinte minutos.
Nildo disse para si, só em sua cabeça, que era comum mulheres se atrasarem. Tinha aquela coisa de experimentar roupas, maquiagem, cabelo. Mas a voz em sua cabeça dizia que era uma falta de educação tremenda. Ele se preparou para aquele momento e esperava que ela tivesse feito o mesmo, no mínimo. Pediu outra cerveja e foi prontamente atendido pelo garçom. Finalmente, Paula chegou e comeram. Conversaram. Ela estava linda. Que bom que ele esperou…
***
Desde que conheceu Paula naquele restaurante, Nildo estava feliz. Parou de jogar nas máquinas de moedas e comprou roupas novas. Estava mais falante e lendo livros para ter assunto com a garota. Comprou até um celular, modesto, mas já dava para trocar mensagens com ela. Estava se acostumando com a tecnologia, ainda. Então, navegava pela internet lendo as notícias e se surpreendendo, quando percebeu que a violência estava sendo banalizada. Quer dizer, como tinha gente matando gente, e todos continuavam seguindo suas vidas normalmente, sem refletir sobre isso. Viu, inclusive, que outras pessoas morriam em banheiras, como seu pai. Da mãe, nunca teve notícia. Um vizinho, uma vez, a chamou de puta, mas nunca soube se era um insulto ou uma informação do paradeiro de sua progenitora.
Tinha um encontro, mas Paula tinha horário. Disse que iria ver Nildo, mas que não poderia demorar. Ele ficou incomodado com a rapidez do encontro, porém se sentia bem quando estava com ela. Se sentia útil. Passou a vida servindo aos outros, mas sentia prazer em servi-la. Tudo o que Paula queria, ele lhe dava. Contudo, uma voz em sua cabeça dizia que estava sendo bobo. Paula só estava disponível no tempo dela. Jamais atendia seus pedidos. Se encontravam em ruas escuras, dentro do carro, em restaurantes e em qualquer lugar isolado. Paula era sempre emergencial. Ocupadíssima, sempre tinha uma reunião de trabalho, uma tia doente e um cachorro prestes a ser sacrificado. Então Nildo ganhava alguns beijos, carícias, porém nunca tinha Paula por completo. Paula falava das viagens que fazia no fim de semana, de seu trabalho sufocante e os problemas que vinham com ele, e de como queria largar tudo e se mudar para o interior. Nildo sempre fora todo ouvidos. Prestava atenção em tudo e nunca foi de falar muito, por isso era bom ouvinte. Vez ou outra, Paula se sentava em seu colo e, quando ele estava prestes a conseguir possuir Paula, já com o pau latejando de tanto sangue pulsante, ela tinha uma emergência familiar, ou se lembrava de um compromisso inadiável. Com seu saco dolorido ele se aliviava em casa lembrando de um pedaço da lingerie, ou de uma fração de memória quando pôde lamber seus pequenos seios.
Essa relação de tesão e freadas, beijos rápidos e pedidos para ter cuidado para não deixar marcas, incomodava Nildo. Tinha uma voz que gritava em sua cabeça para ter cuidado. Gritava e xingava-o. CUIDADO! IMBECIL! BURRO!
Tantos gritos, que ele passou a discutir com a voz. Ponderando dizendo que era preciso ser paciente. As garotas são mais tímidas. Mentia para a voz, dizendo que ele não se importava e não achava deprimente, depois de um encontro, chegar em casa e se masturbar pensando na garota que ele era apaixonado. Que era um homem de caráter e respeitoso, e esperaria o tempo dela. Afinal, era uma moça de respeito. Mulher para casar, mesmo. A moça tinha seus problemas. A saúde de sua família e mesmo a dela, eram bastante comprometidas. Fazer o quê? Era reconfortante, na verdade, saber que a pessoa que ele gostaria de se casar se preocupava tanto com o bem-estar de seus familiares. Inclusive, um aprendizado para ele, que jamais tivera uma família. A voz em sua cabeça ria de nervoso. IMBECIL! INÚTIL! ANIMAL!
Passaram-se alguns meses e os dois continuavam se encontrando, da mesma forma. Rápido e intenso. Intenso, pelo menos para ela. Para Nildo nem tanto, ele queria mais, e tentava ser compreensivo, porém a voz na sua cabeça falava cada vez mais e mais alto. Naquele dia, ele a convidou, ela disse sim; contudo, estava com um assado no forno, dizia ela, teria de ser rápido. COMO SEMPRE, a voz na cabeça repetia. Como sempre. OCUPADA COMO SEMPRE. OCUPADA COMO SEMPRE. Seus pais iriam jantar com ela. Aniversário de casamento ou alguma coisa do tipo. Na noite passada, Nildo passou horas fazendo uma seleção de músicas favoritas dele e botou para rolar no toca-fitas do carro enquanto aguardava Paula descer de seu apartamento numa ruela próxima. Levou uma garrafa de vinho, e duas taças. Ele estava se esforçando, afinal, raramente havia passado tanto tempo com uma garota antes da Paula aparecer na sua vida. Tinha uma segunda voz em sua cabeça, essa mais educada, menos ranzinza, esta não gritava… dizia que Paula poderia ser sua última chance de ter a família que nunca teve até então.
Paula chegou. Entrou no carro com a urgência de sempre e deu-lhe um beijo. Seu nariz estava gelado devido ao frio que estava lá fora. No instante em que entrou, as vozes sumiram. Nildo era todo… Paula.
Deram alguns beijos quentes, ele estava ereto, ela salivava e estava com o rosto corado. Paula era tão branca que qualquer coisa fazia com que sua pele ficasse vermelha como morango. Era assim que Nildo via. Morangos frescos e deliciosos. Ele amava sua pele. Seus cabelos. Sua cintura minúscula. Seus seios pequenos e duros. Ela era tudo que ele tinha como objetivo de vida. Não era de rezar, mas se rezasse, pediria alguém idêntico a ela. Porventura, ela não poderia ser dele. Não poderia, porque Deus, ou qualquer outra força do universo como o destino, a lua, o Satanás, o demônio na garrafa, ou o acaso mesmo, não permitiriam.
Nildo não sabia; porém, a voz que gritava na sua cabeça já imaginava. Após estar molhada de tesão, ao som de Bon Jovi, Paula resolve, não se sabe até hoje por quê, contar a verdade para o cara mais apaixonado que havia naquela cidade. Por um milésimo de segundo Paula refletiu, apenas isso. Talvez até menos. Mas talvez, se houvesse uma voz em sua cabeça, ela diria: tinha ali um cara bem estranho. Trágico até, de tão doce, e ela estava enganando-o. Tão apaixonado, que parecia uma criança ao ganhar um brinquedo novo. Todos os dias eram assim. Todos os dias eram Natal para Nildo, todos os dias que via Paula. Ela pensou naquele momento que só uma pessoa muito, mas muito boa, ou idiota, não perceberia: que o fato dela estar sempre com pressa é porque ela era casada, e estava vivendo apenas uma aventura com ele. E foi o que disse para Nildo. Resolveu confessar, como se o fizesse a um padre.
— Nildo, preciso te contar... Sou casada. Meu marido está me esperando. Disse a ele que vinha comprar parmesão para o macarrão.
Neste momento, a voz que gritava na cabeça de Nildo ficou muda. A voz aveludada ficou muda. Até a fita no toca-fitas parece que prendeu, mas era só o espaço entre uma música e outra. Na cabeça de ambos parece que se passaram horas, mas, na verdade, devem ter se passado quase dois segundos. Assim que ouviu o “Sou casada" de Paula, seu punho se fechou, e esse segundo e meio talvez tenha sido o suficiente para que o sangue dele subisse até a cabeça. Agora, havia muito mais vozes em sua cabeça. Parecia uma multidão. Um falatório imenso, como no primeiro dia na escola. Como um auditório, ou turbilhão de torcidas de futebol.
“Sou casada"... e depois de um segundo e alguns milésimos, Paula sentiu pela primeira vez, um punho duro em seu nariz. Foi como um raio. Um estrondo surdo no ouvido dela. O nariz formigou. Não sentiu de imediato, até tentar respirar e sentir como se estivesse gripada. Gripe com gosto de ferro. Na fita que Nildo tocava no carro, começaram os vocais de Bohemian Rhapsody.
Não deu tempo de apreciar muito as vozes, pois logo sentiu o segundo tranco. Logo veio o terceiro e já não conseguia respirar. Nildo pegou a cabeça de Paula e a bateu mais umas duas vezes no painel do carro, até Paula apagar.
O corpo de Paula pendeu para o lado da janela. Nildo ligou o carro, e partiu.
***
Estendeu em sua cama o corpo da garota que pensou ser dele, e repousou sua cabeça naqueles belos peitos. O mundaréu de vozes ainda continuava em sua cabeça. Trouxera a fita que tinha gravado para eles e colocou para tocar em volume máximo, na tentativa inútil de deixar de ouvir todas aquelas vozes. Foi até a cozinha. Nildo não queria desistir de Paula. Ela era importante. Ele nutriu um ideal com ela, um futuro. Precisava de Paula para ele. Só para ele. Rasgou a roupa dela. Nildo sabia o que fazia. Foi até a cozinha e pegou sua faca de cortar frango. Era uma bela faca.
Começou pelo peito. Rasgou Paula por inteiro, porém, com cuidado. Aquela pele branca. Ele amava aquela pele. Mesmo com os sinais, as pintas sobressaltadas, ele queria manter tudo como era. Cortou e cortou e não se importou com o sangue. Esfolou seu tronco todo. Lembrava que tinha agulha e linha de pesca em algum lugar.
I'm just a poor boy and nobody loves me
He's just a poor boy from a poor family
Spare him his life, from this monstrosity
Nildo levou os pedaços de pele de Paula e passou horas costurando, enquanto seu corpo esfolado permanecia ali em sua cama. Onde ele sempre sonhara que estaria com ela. Abraçados num dia de frio, assistindo qualquer coisa na TV entre um sexo e outro. Na cabeça de Nildo, tudo agora era só silêncio. Silêncio e mais nada. Apenas ele e a agulha cumprindo o seu destino. Seu amor estaria sempre com ele. Nos dias de frio, Paula o esquentaria. Ele e Paula. Os inseparáveis.
Nildo fez um casaco com as peles de Paula e o vestiu. Olhou-se no espelho e chorou. Era lindo. Juntos para sempre, como nos filmes que via nos orfanatos em que passou sua infância de abandono. Ele acendeu um cigarro, olhou mais uma vez no espelho, saiu com seu casaco novo…
E nunca mais foi visto.
So you think you can stone me and spit in my eye?
So you think you can love me and leave me to die?
Oh, baby!
Can't do this to me, baby!
Just gotta get out
Just gotta get right outta here!
Nota ao leitor
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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