— Eu também não sei, Leonor! Ela
deve estar variando, só pode! — faz sinal para que Matilde se cale.
— O senhor sabe que não, seu
Martim! Estou extremamente lúcida e quero pôr um fim nesta história, que tanta
dor tem nos causado. Está na hora da senhora saber a verdade — volta-se para a
patroa —, deixar de lado toda a fantasia que a envolve e encarar os fatos como
eles realmente são; se Deus permitir, ainda poderá ter uma vida fincada na
realidade.
— Ô, minha fiiilha, você bateeeu
a cabeça? Não estou entendendo bulhuuufas dessa conversa!
— Matilde, deixe disso, vamos
mudar de prosa, Leonor está cansada, a casa esteve muito movimentada…
— De onde tirou iiisso,
Melanciiia??? Está me chamando de veeelha??? Oxi! Olhe para mim, meu fiiilho,
estou na flor da idaaade, com a peeele mais sedooosa que a da Luiza Brunet; o
mesmo não posso dizer de você, com esta barriguiiinha saltando da calça, este
cabeeelo mal cortado, esta barbiiicha fora da moda… Ui! Não é à toooa que foi
enviado para a reserva, porque se no Exército ficasse, seria a imagem do
próprio fracaaasso — dá uma risadinha. — Imagine algum inimigo o vendo na
frente de batalha, pensaria que todo mundo aqui é despencado, desalinhado,
retrógrado, além de frouxo, né?
— CHEEEGA!!! — ordena o homem. —
Sou seu marido.
— Mariiido no papel, porque na
cama, vou lhe contar, Matildão, o biiicho, de uns dias para cá, nem com dose
dobraaada do azuzinho…
— Me respeite antes que eu… —
pega-a com força pelo braço e lhe dá uma sacudida.
— Antes que você faça o quê? —
pergunta, libertando-se com muita raiva. — Responda! Com quem peeensa que está
falando? Sou Leonor Moreira Vaz, uma mulher à freeente de seu tempo, e não
aceito que um homem, seja quem for, toque em mim, sem antes enfreeentar a fúria
de minhas unhas… Venha! Venha!!! — mostra-lhe as garras. — Que lhe corto
todo!!! Barriguuudo, feiiinho, tampiiinha de garrafa!!! Você não me merece,
Melanciiia, mas deixe estar, na hora certa, hei de lhe dar um pé na buuunda que
o jogará na ruuua da amargura — continua a mulher, cada vez mais descompensada,
indo de um assunto ao outro sem aparente conexão. — Se ainda permaneço viiiva,
é para manter intaaacta a memória de meus meninos, que se aqui estiveeessem,
hoje seriam homens liiindos… Imagiiine o Afonso com toda aquela doçuuura…
Uuuhhh! A Mulherada ia cair mataaando, eu ia ter um trabalho dobrado para
mantê-lo longe das vagabas; e o Francisco então? O que ia ter de alpiniiista
social tentando fisgá-lo… — conforme narra, visualiza as cenas. — Já com João
seriiia diferente, aqueeele era da pá virada, quem deveriiia se esconder eram
as piriguetes, pois o moleque, atentado que só ele, iria passar o rodo em todas
elas… Hum! Seria como a mãe, com um fooogo na alma que não se apaga. Ui!!! Só
de falar, já começo a me coçar!!! Aff!!! Já passei da menopaaausa e, ainda
assim, sou uma mulher calieeente; só não lhe boto chifres, Melanciiia, porque…
porque… sabe que não sei! Talvez porque não quero ver a imagem de meus fiiilhos
maculada.
— Que filhos??? — pergunta
Matilde, impressionada com o devaneio da patroa. — A senhora só tem uma filha e
ela está lá em cima.
— Qual é a dessa daí,
Melanciiia??? Bebeu ou cherô???
— Nenhuma das duas e a senhora,
reitero, só tem uma filha… E o que tem a dizer dela?
— Lu-a-ra… — suspira, caindo em
si, pois havia, mais uma vez, se esquecido da garota.
— A senhora não gosta dela, não
é? Já se perguntou o motivo?
— Quem disse iiisso, feiiinha???
Como você é atreviiida!!! Pois fique sabendo, eu aaamo minha meniniiinha!!! —
percebe-se que está mentindo.
— Mas só fala dos garotos, como
se quisesse se manter presa a um passado que jamais existiu.
— Do que ela está falando,
Melanciiia? — procura pelo marido, que está às suas costas, e quando o
encontra, interroga: — Tá de porre??? Que horrooor!!! Odeio mulher
chumbaaada!!! Não arranja maaacho, por isso fica deste jeito!!! Também, feeeia
que dói, quem é que vai querer??? Nem os defuntos!!!
— Fala o senhor ou eu falo? —
Matilde o pressiona. — Este circo de horrores tem de terminar, não acha? É
preciso coragem para recomeçar! Tente, general, doerá no início; com o tempo,
assim que as feridas se cicatrizarem, perceberá o bem que terá feito a sua
família; o que não se pode é manter uma mulher presa a um mundo paralelo, falando
tantas bobagens, vivendo da imagem de uns filhos que nunca vieram ao mundo.
— Como nuuunca vieram ao mundo?
Meus fiiilhos viveram até o dia em que aquela veeelha – maldita criatura – os
deixou a sós; se não tiveeesse adormecido feito uma pooorca, eles estariam
ainda aqui…
— Não estariam! — rebate.
— E POR QUE NÃO??? — perde a paciência,
indo para cima da governanta, que a enfrenta, mantendo-se estacada, para o
estranhamento da mulher, que se contém. — POR QUÊ??? FALE!!! DO JEITO COMO VAI
A CONVEEERSA, ACABARÁ ME DIZENDO QUE SOU A CULPAAADA PELA MORTE DELES…
— A senhora não, mas o acaso sim.
— Pare, Matilde, eu lhe peço! —
intervém o marido, percebendo que a história não teria volta.
— Pare, naaada, agora sou eu quem
quer saber… Que ladaiiinha é essa, minha fiiilha??? Aonde quer chegar com tudo
iiisso???
— À VERDADE! — é taxativa.
— E QUE VERDADE É EEESSA??? FALE!!! — está enraivecida. — Tô veeendo que tá doida para jogar uma booomba e sair pela tangente, porque pooobre é assim, adora um fuzuê, depois da meeerda feita, pega o chapéu e desapareeece…
— A senhora não me conhece mesmo!
— Nem quero! — menospreza. — Pois
agora faaale, seja lá o que for, estou preparaaada para qualquer coooisa, até
mesmo para suas mentiiiras… Fale! O que taaanto quer me dizer?
— Luara, o que está acontecendo?
O bicho está pegando lá embaixo! Escute! — alerta Sofia, ao abrir a porta do
quarto. — Parece que Matilde e sua mãe estão prestes a sair nos tapas. — Credo!
Aqui parece uma casa de loucos!
— Muito diferente da sua, né?
Acredito! — debocha. — Elas sempre foram assim!
— Mas tem alguma coisa diferente,
estão falando de seus irmãos… Não sei o que é, não dá para ouvir direito!
Escute! Não tem curiosidade? Vai que estão repartindo a herança…
— Como você é tapada, menina! —
diz, dando pouca importância, enquanto abre uma mochila. — A herança é toda
minha, sou a única prole do casamento, pelo menos com vida.
— Vai saber! Seu pai não é dos
melhores, disso tenho de concordar, mas é um oficial do Exército, sabe lá Deus
o que fez quando esteve pelo mundo, nas ditas missões de paz.
— Hã? O que quer dizer? —
intriga-se.
— Na falta de mulher, o cara
pira, se é que me entende, né? — envenena. — E se estiverem mesmo tratando da
partilha dos bens com uns outros que resolveram aparecer do nada? Sabe como são
essas coisas…
— Não! Meu pai não é dessa laia!
E por que minha mãe estaria falando desse assunto com a governanta da casa? Não
tem sentido!
— Será? Do mesmo modo que você
age à surdina, ele também poderá fazê-lo; por isso Matilde o defende! Não sei
se já percebeu, mas ela tem um olhar diferente para ele, como se toda a
admiração não passasse de desejo.
— Você está me irritando com toda
esta história — mesmo reativa, Luara percebe que há um fundo de verdade nas
palavras da cúmplice.
— Agora entendi o porquê de ter
tramado o próprio sequestro — dá uma risada —, tinha medo de ter de dividir a
granosa com outros meios-irmãos, né, não? Conte-me tudo!
— Porra! Você está louca? É óbvio
que não fiz por isso, até porque, tudo não passa de especulação de uma cabeça
perversa feito a sua.
— E pelo que foi então?
— Pelo divertimento! — o
semblante se fecha.
— Cara, cê tá surtada! — leva as
mãos à boca. — Que divertimento? Você só trouxe dor aos seus.
— A mim, não.
— Cê não sente nenhum pouco de
pena? São seus pais!
— E daí? Eles tiveram pena de mim
quando mais precisei deles? Aliás, dela? Claro que não! A megera só falava dos
trigêmeos, nunca se importou se eu havia me alimentado, se estava coberta nas
noites de inverno, se precisava de ajuda no dever de casa, se tinha algum
desejo, porque, para ela, mais importante eram os meninos, e o que diriam ou
fariam se estivessem vivos. Foi um inferno! A idiota da minha vó e a feiosa da
Matilde até tentavam me consolar nos momentos em que meu coração deixava-se
mostrar, mas, por mais que fizessem, nada supria a ausência daquela doida…
Quanto mais ela me ignorava, mas eu a amava, até parecia uma doença. Hum! Odeio
aqueles meninos, eles tiraram minha mãe de mim…
— São seus irmãos!
— Ainda bem que morreram, por
senão eu mesmo os mataria — o ódio, tão letal como o veneno de cobra, extravasa
por todos os poros.
— Você não deve estar falando
sério! — está horrorizada.
— E por que não? Na vida, mata-se
ou morre, não há outro caminho. Aliás, este assunto está me cansando, é melhor
calar esta matraca, antes que lhe desça o braço… Que menina chata do caralho!
Vá infernizar a vida de outro!
— Desculpe, Lu… Diana! É que toda
esta história é muito densa.
— Densa, por quê? Resolvi pregar
uma peça em minha família… O que tem de densa nisso?
— Fala como se não fosse nada!
Você sabia que eles não tinham a grana do sequestro, então por que o armou? Por
divertimento, vai me responder, mas será que foi só por isso mesmo?
— Sofia, sempre fui deixada de
lado, nunca ninguém me enxergou nesta casa…
— Isso é mentira! Sua avó e a
governanta nunca a deixaram, você mesmo acabou de dizer… E seu pai, apesar de
apático, estava lá, do jeito dele…
— Mas aquela que se diz minha
mãe, não… Percebeu como reagiu no hospital? Era como se estivesse fugindo de
mim! E aqui? Até agora não veio me ver! É um ser vazio, de alma carregada, que
só fala nas crias que o universo lhe tirou, como se eu tivesse alguma culpa —
diz, enquanto arruma algumas roupas na mochila.
— Então fez isso para se vingar
de sua mãe? Não pode ser!
— “A justiça é a vingança do
homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem”¹.
— Uau! Virou filósofa agora? —
desdenha. — Então tudo o que faz é para atacá-la? Não seria melhor pegar uma
arma e acertá-la na testa, economizaria tempo, porque como age, lembra-me muito
Suzane von Richthofen. Para acabar com os pais, meteu-se com os irmãos
Cravinhos, aprontou de tudo e acabou, como todo criminoso, atrás das grades.
Ninguém sabe o que realmente desejava; para alguns, ela queria a fortuna da
família, já para outros, chamar a atenção dos pais, pois se sentia rejeitada
por algum motivo. De certo mesmo, é que cada um possui uma tese, mas a verdade,
aquela que interessa, irá para o túmulo com ela. E, ainda que tentasse em vida
contar os fatos como eles realmente aconteceram, ninguém mais acreditaria. Está
fadada ao desprezo eterno! É isso que também deseja? Se destruir? E por conta
daquela louca da sua mãe?
— NÃO FALE ASSIM DELA!!! — a ira
de Luara a arrepia e intriga ao mesmo tempo.
— Então você a ama…? Estou vendo
nos seus olhos!
— CALE A BOCA! — ordena,
exasperada.
— Perde-se no caminho da vida
para chamar a atenção dela…
— JÁ DISSE, PARE!!! — está cada vez
mais fora de si.
— Ah, Luara — zomba —, é Diana
quem nunca existiu! Você continua aí dentro, minha filha, e por mais que não
deixe transparecer, é a mesma menininha de sempre, que adorava brincar de
boneca, pular no colo da avó, correr atrás de um abraço da mãe…
Acerta-lhe um tapa que a derruba
no chão.
— O Português tinha razão,
pessoas fracas cruzariam meu caminho e seria necessário exterminá-las para
poder avançar ao round seguinte.
— Você não deveria ter feito isso
— acaricia o semblante avermelhado enquanto lágrimas descem-lhe pelos cantos. —
Eu só queria…
— Cale a boca, eu já disse! Você
jamais entenderia meus motivos, é de uma ignorância cruel!
Um vaso estoura no escritório,
atraindo a atenção de Luara, que desta vez estranha a agressividade das duas.
— A coisa está mesmo feia, vão
acabar se matando… Que façam logo meu trabalho, assim ponho a mão na grana da
família e desapareço pelo mundo. Odeio tudo isso aqui! Quero é a liberdade que
o crime me prometeu. O Português não me faltará, e disso tenho certeza, desde
que eu consiga manter sua libido sob controle.
— Esse homem está brincando com
você, está sendo tudo muito fácil, não acha? Não conseguirá impedir que ele não
a toque por muito tempo… — alerta Sofia, preocupada. — Ele empenha uma fortuna
para fazer seus caprichos e o custo disso, com juros e mora, será cobrado tão
logo esteja longe daqui e mais perto dele. Se puder, desista, se é que ainda há
tempo.
— É ele que não me conhece! O que
é dele está guardado e, na hora certa, hei de mandá-lo desta para uma pior.
— E como pensa em derrubá-lo? Só
porque fez algumas aulas de tiro, imagina-se melhor do que ele? Ô, coitada,
você está mexendo com um dos homens mais perigosos que já se ouviu falar…
— Davi versus Golias — responde,
com um pequeno sorriso nos cantos dos lábios.
— Anda religiosa demais! —
adverte.
— Uso apenas as mesmas armas de
meus inimigos.
— Mas o Português é seu aliado,
até onde sei…
— Por enquanto! — volta-se para o
espelho, de onde ajeita o cabelo. — Por enquanto!
Outro vaso estoura.
— Meu Deus! Vão acabar com a
casa! — diz Sofia. — E por que será que estão brigando?
— Vá lá ver! — pede Luara,
enquanto termina de se arrumar.
— E vou mesmo, adoro uma fofoca —
deixa o quarto.
— O seu também está guardado,
Sofia! Não vejo a hora de vê- la caída ao chão, afogada numa poça de sangue…
Por ora, tenho de aguentar seus questionamentos porque você ainda me é útil,
mas deixe estar, cada palavra que disse está guardada e as cobrarei no momento
certo. Agora, comparar-me à Richthofen? Essa foi demais! Apesar de que, se
reparar bem, somos mesmo parecidas, pelo menos no branco dos olhos — ironiza. —
Só nisso! No fundo, sou bem mais esperta, jamais deixaria tantas pistas, nem me
envolveria com o “baixo clero”. Se quer cometer um crime, que se junte aos
tubarões, eles são mais famintos e muito mais fáceis de domar, apesar de não
parecer. Basta um naco de carne bem sangrento para lhes entorpecer o juízo…
Deixa o quarto e se dirige aos
aposentos dos pais.
— Você está mentiiindo, sua
ordinááária! Isso não é verdade!
Meus meniiinos, não!
— Dona Leonor, a senhora os
perdeu no oitavo mês de gestação, faça uma força, talvez se lembre… Estava toda
esfuziante, preparando- se para um jantar de gala, quando ouviu o portão que
dava acesso a um corredor estreito, que ladeava a piscina, bater bem forte com
a ventania; incomodada, deixou a sala onde repousava dona Beatriz e foi aos
fundos. Estava de salto, contrariando as recomendações médicas, e isso foi o
estopim que faltava para que a tragédia acontecesse. Antes de fechá-lo, a
senhora percebeu a mangueira desenrolada, poderia ter deixado como estava, mas
não, como gostava de tudo bem ajeitadinho, puxou-a para o canto bem devagar,
pois a barriga lhe pesava; ao dar dois ou três passos para trás, o salto se
prendeu em uma das pedras e quebrou, a senhora tombou, caindo de costas na
piscina. Estava muito escura aquela noite, como não sabia nadar, debateu-se,
tentando salvar- se a si e aos seus. Seu Martim desceu as escadarias, perguntou
à mãe pela senhora, e quando soube que tinha ido aos fundos, desesperou-se,
porque uma das pedras do piso havia se soltado, como o caseiro havia lhe dito
horas antes, e só seria reparada no dia seguinte. Quando a viu, gritou de dor.
Uma dor tão fina e contundente que não havia quem não se comovesse. Então pulou
na água e a puxou, pedindo ajuda. Quando chegamos, o susto. Com uma das mãos
tentava mantê-la emersa enquanto com a outra, segurava-se na borda. A senhora
já se mostrava aparentemente sem vida. A casa toda colapsou. Dona Beatriz
retornou à sala e pediu ajuda. Em poucos minutos os bombeiros chegaram… Seu
Martim, abraçado à senhora, não a queria deixar, mas era preciso reanimá-la, o
tempo era curto. Após algumas manobras, conseguiram trazê-la de volta. Mas o
caso permanecia grave, os bebês já não davam mais sinais de vida.
— Não, não, iiisso não é
verdade!!! Não!!! Por que quer taaanto
me machucar, cri-a-da??? Meus
filhos morreram afogaaados, esquecidos pela veeelha, eu sei… lembro-me do eu
que vi.
— Não, meu amor! — Martim toma as
rédeas da trama. — Você criou esta fantasia e nós apenas a alimentamos… Nossos
bebês Afonso, Francisco e João encontraram no útero, onde foram gerados, o
próprio túmulo.
— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOO!!!!! — um grito
ensurdecedor é ouvido.
— Nossa! O que será que aquela
louca está pretendendo? Por que não morre de uma vez? — diz Luara, enfezada com
os berros, abrindo o cofre da família, após encontrar a senha nas anotações do
pai. — Vamos ver o que tem aqui… Euros? Muitos euros! Bom! — mete-os na
mochila. — Olha, tô surpresa, meu pai fez um belo “banquete” com a grana que
desviou do Exército. Não é tão burro como eu pensava! — ri.
— Ah, e isso aqui? É um embrulho…
não pode ser! — entra em êxtase.
— Não pode ser! Vejamos! Uau! Um
revólver calibre 22 — vistoria-o.
— E carregado! Vou levar! —
coloca-o preso à cintura. — Já dá para o gasto!
— Você perdeu as crianças e
entrou em choque — continua o general. — Passou por inúmeros psiquiatras, mas
nenhum deu jeito, quando atentou contra a própria vida, foi necessário
interná-la. Passou três meses sob cuidados intensos e quando saiu, não dizia
coisa com coisa, como se as crianças estivessem vivas. Passava horas lendo
histórias infantis e falando sozinha, como se as corrigisse; na mesa, derrubava
a comida, como se as alimentasse. No banho, deslizava o sabonete sobre um
boneco, imaginando que fossem elas… Aquilo cortava o coração! Minha mãe não se
conformava, por mais que não acredite, ela tinha grande estima por você.
— E o pior, eu fingia acreditar
em sua história — acrescenta Matilde. — Junto à senhora, corria atrás de João,
escondia-me de Afonso, chamava a atenção de Francisco. E toda vez que
regressava ao meu quarto, eu chorava, chorava, chorava e chorava, revoltada com
Deus por permitir que uma mãe vivenciasse tanta desgraça. Por mais que
quiséssemos dizer a verdade, ninguém tinha coragem, pois estava entregue a uma
dor tão profunda, dilacerante, que desmenti- la seria como se lhe déssemos uma
apunhalada. Quando seu Martim tentou trazê-la à realidade, virou uma fera e
tentou machucá-lo, só não conseguiu porque Eufrásio, recém-contratado, a
segurou.
A mulher escuta a tudo sem
esboçar qualquer reação.
— Diante da gravidade dos fatos,
a equipe médica resolveu hospitalizá-la outra vez. Desta vez, permaneceu o
dobro do tempo. E quando regressou, estava mais calma, todavia, continuava a
falar com as crianças, a lhes dar banho, a cobri-las todas as noites, a
tirar-lhes fotos, revelar e colocar em porta-retratos. E onde só existiam
móveis, para a senhora estavam os três, abraçados, com suas roupinhas
devidamente escolhidas a dedo, exibindo-se para quem quer que fosse — os olhos
lacrimejam de emoção. — E um dos momentos mais difíceis foi quando seu Martim
aceitou que tirassem a foto da família nos jardins desta casa. Todo mundo que
viu, chorou. Dona Beatriz, com sua santinha em mãos, tremia-se toda, vendo da
janela de seu quarto, o filho fingindo segurar Afonso no colo e com ele
conversar, tudo para que a senhora não ruísse de vez — arfa. — Aos poucos, os
Vaz se fecharam numa bolha, não circulavam mais pelas noites, não visitavam os
poderosos nem participavam das grandes festas, tudo porque, na cabeça da
senhora, três meninos exigiam-lhe toda a atenção. Mas certa vez, ao encontrar
seu Martim em pranto, dona Beatriz interveio; pediu a ele que levasse a senhora
para passear, a festa da primeira-dama seria o acontecimento do mês. De início
ele relutou, mas terminou por aceitar, após convencê-la. O problema era: com
quem ficariam as crianças? Foi quando ela se ofereceu para ser a babá dos netos
fantasmas. E a história assim encontrou o fim que conhecemos. Ao chegar em
casa, a senhora teve outra crise, talvez por conta de alguma bebida — se é que
tenha ingerido —, e afirmou, veja só, ter encontrado os garotos mortos na
piscina.
— E foi iiisso que aconteceu…
Martim os retirou da ááágua. Eu me lembro — o choro é de machucar a alma. — Não
é, meu fiiilho? — teme a resposta.
— Não, amor! Mais uma vez, foi
ludibriada pela própria imaginação! E minha mãe aguentou calada até a morte
todas as suas acusações. Foi triste demais!
— A VEEELHA MATOU MEUS
FIIILHOS!!! — resiste à
verdade, recolhendo-se às
masmorras do sofrimento. — NÃÃÃOOO!!!
— Não! Não, minha querida, eles
nem chegaram a nascer, morreram ainda na piscina, dentro de ti. Aceite, há de
lhe fazer bem!
— Não pode ser! Eu os vi
cresceeendo…
— A senhora imaginou tudo!
— Não po-po-pode ser!
— Poderíamos tê-la desmentido,
mas chegou uma hora que se fizéssemos isso, talvez a perdêssemos de vez… A
mentira prevalecia, para o desespero de todos, principalmente de sua filha, a
única que tem, e a quem negou o verdadeiro amor.
— O que está acontecendo aí? —
sussurra Luara a Sofia, descendo os degraus, ao encontrar a amiga em choque. —
Por que me olha assim, criatura? Eu, hein? Já disse, jogo em outro time.
Ela não responde.
Curiosa, Luara aproxima-se da
porta e ouve os últimos relatos.
— Não! Não pooode ser! — geme de
nervoso. — Ela não… não… eu tive meus filhos, não tiiive, Martim? Respooonda,
homem!
— Não! Eles não chegaram a
nascer.
— Como assim? — indaga-se Luara,
não compreendendo, do lado de fora.
— Nossos filhos, da forma como
vivenciou, foram frutos de sua imaginação; apenas Luara é real.
— Não!!! Nãããão!!! Nããããããããão!!!
— surta. — Meus filhos… são meeeus… só meeeus, entenderam??? Ninguém vai
tirá-los de mim!!!! Ninguééém!!! — respira com dificuldades. — Ninguééém!!! — as
mãos correm desesperadas à face, aos cabelos, ao colo… Só Luaaara existe???
Não!!! Não pode ser!!! Logo a que eu nunca quis??? Só pooode ser castigo!!!
Só!!!
— É a nossa filha, amor! — o
homem a pega pelos ombros. — É a nossa filha!
— Suuua!!! Eu tenho meeedo dela,
muito meeedo; por mais que eu tente, há uma barreira inquebrantável entre a
gente, talvez porque eu nuuunca a quis, nuuunca!!! Depois que as crianças
morreram, eu prometi a mim mesma que jamais me aventuraria pelo camiiinho da
maternidade, mas você me levou na lááábia e foi logo enchendo meu bucho… Puto,
sem-vergonha, miserááável dos infernos!!! — bate com força no homem.
— Não fale assim de nossa filha,
mulher!!!
— Suuua filha!!! Suuuuuua!!! —
chora, copiosamente. — Eu a odeeeio mais do que tudo nesta vida!!!
— E por quê? O que ela te fez???
Fale!!! Pare com isso!!! Luara te ama!!!
— Mas eu não! Deus poderia
têêê-la levado no lugar dos meus filhiiinhos… — desatinada, fixa o olhar no
vazio e sorri como se houvesse motivo. — Não me custaria sacrificá-la desde que
eles me fossem devolviiidos, mas a vida não é como a geeente quer, os fruuutos
que sobram nas árvores nem sempre são aqueeeles que desejamos. Que meeerda! — berra,
atirando outro vaso contra a parede. — Levaram os que eu mais apreciava e me
deixaram no lugar uma fruta estragada, pois é assim que a veeejo, Martim;
aqueeela garota não é miiinha, nunca foi, jamais será, entendeu?
Em choque, Luara se afasta bem devagar,
sendo acompanhada à distância pela amiga, que não consegue lhe dizer palavra
alguma; pega a chave do carro, coloca a mochila nas costas e sai.
— Aonde vai, Luara? — pergunta,
preocupada. — Ei! Venha cá, não dê ouvidos a ela, todos nós sabemos que não
bate bem.
Entra no carro, tenta se segurar,
mas não aguenta e termina por desabar em lágrimas. Sofia até tenta ajudá-la,
mas as portas estão travadas. O portão é acionado.
— Aonde vai??? Espere aí, não
saia deste jeito!!! Luara… Diana… espere, me deixe entrar, vou com você!!!
Abra!!! Por favor!!!
— Luara!!! — adianta-se Matilde,
ouvindo o motor do veículo.
— Será que ela nos ouviu???
Desesperado, o general segue a
empregada, que se dirige à garagem, deixando Leonor entregue à própria sorte;
em crise, a mulher tenta se apoiar à mesinha de canto, que tomba, levando-a ao
chão, onde desfalece.
— Cadê Luara? — pergunta a
governanta a Sofia, que da calçada, acompanha a garota desaparecer no
horizonte. — Cadê?
— Que Luara? — olha-a com raiva.
— Não entendo!
— ASSIM COMO OS TRIGÊMEOS, LUARA
JÁ NÃO EXISTE MAIS!!!
— O que ela está dizendo,
Matilde? — o homem leva uma das mãos ao coração.
— Meu Deus! — a governanta
lembra-se de Diana. — O que foi que eu fiz? Não era para ser assim!
_____________
1. Frase atribuída a Epicuro de Samos, filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido em numerosos centros epicuristas que se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma, onde Lucrécio foi seu maior divulgador.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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