Luara acorda assustada com a gritaria, abre a porta do quarto e dá de frente com o pai, que estranhando, desce as escadarias, acompanhado da filha. Ao entrarem na cozinha, levam um susto. Leonor, de costas para eles, desafia Matilde a uma briga de rua, o que é de pronto recusado pela governanta, que tenta se proteger atrás de Cleide.
— Venha, bruaca, quero é quebrar a sua cara, mulher dos infernos… — berra, ensandecida, enquanto é contida por Eufrásio. _E você, me solte já, estou ordenando, seu chofer de quinta.
— Pare, dona Leonor!!! Pare!!! — implora Cleide, entre elas. — Pare!!!
— Cadêêê a valentona? Não vai me enfrentar de mulher para mulher? Não vai??? É boa só para falar, mas na hora do vamos ver, foge como uma covaaarde!!! Que horrooor!!! Só tem tamanho, meu Deus!
— LEONOOOOOOOORRR!!! — descontrola-se o marido, pegando-a pelo braço com firmeza. — QUE LOUCURA É ESSA??? O QUE PENSA ESTAR FAZENDO, SUA DESTRAMBELHADA???
— EPAAAAAA!!! — gira-se para o general, com os olhos abugalhados, a boca salivando e os punhos erguidos. — Veja lá como fala! Destrambelhada, não, eu sou é chiiique, de fino trato, que tanta inveja desperta nas dondocas brasilienses. É isso mesmo que ouviu, sou chique, “chiiique no úrtimo”, entendeu? — gaba-se, destemperada, sem notar que a filha presenciava todo o desaguisado, ocultando-se entre a porta de entrada e o corredor que levava à sala de estar.
— Eita!!! Baixou nela a Vera Verão¹, só pode, né, não, Eufrásio?
— pergunta a cozinheira, com os olhos dominados pelo medo. — Crendiospai!!! — faz o sinal da cruz. — Está amarrado, em nome de Jesus!
— Pare de bobagens, Cleide! A isso damos o nome de mimo, por isso ela faz o que quer, como se o mundo girasse ao seu redor — conclui a governanta, sendo ouvida pela mulher, que pega uma escumadeira e bate na pia por duas ou três vezes, chamando-a para a briga.
— Venha, valentona, que eu lhe tiiiro sangue — ameaça.
— A senhora quer que eu inicie uma live, dona Leonor? — arrisca a cozinheira, aproveitando-se do momento. — Os likes iam explodir.
— Eu vou é explodiiir os miolos dela — completa a mulher.
— Você não vai fazer nada! — determina Luara, que surge diante da mãe, em uma postura serena, para a surpresa de todos, inclusive de Matilde, que tanto a admira. — Dê-me aqui esta escumadeira e volte já para seu quarto. Vá!
— Filhiiinha!!! — arregala os olhos, completamente sem jeito. — O que faz aqui, fofuuura do meu coração? Eu… a Matilde… a gente só estava conversando, né, não bruaca, digo, digo, queriiida??? — tenta disfarçar.
— Conversando? Sei! Estou vendo! Pois saiba, vou lhe fazer uma pergunta e quero toda a sinceridade.
— Pois faça, sinceridade é comigo mesma!
— Isso é verdade! — confidencia-se Cleide, curiosa com o desenrolar da história.
— A senhora sabe que dia é hoje, dona Leonor Moreira Vaz?
— Sim, sim, hoje é quarta-feira, não é, Cleeide?
— Sim, dona Leonor! — confirma a cozinheira. — Hoje é, inclusive, o dia do nosso pagamento — dá uma indireta aos patrões com um sorriso constrangido.
— Vocês estão erradas.
— Como assim, queriiida??? Veja, veja… — mostra-lhe o relógio—, hoje é mesmo quarta-feira.
— Não, hoje não é quarta-feira.
— É sim, dona Luara, sou testemunha, veja, tenho até aqui no bolso um boleto do aluguel de um barraco lá de Ceilândia, onde moram meus pais, que se não for pago hoje, podem até mandar o nosso nome pro pau, quando não, pedem para a bandidagem invadir tudo e jogar nossas tralhas na rua — adianta-se a enxerida, sem filtro.
— Cale a boca, CLEIDE!!! — ordena Matilde, irritada com a postura da subordinada.
— Hoje é o dia mais triste de minha vida e deveria ser o de vocês também, pelo menos eu pensava, mas eu estava enganada — revela a filha de Martim.
— Triiiste? Mas o que aconteceeeu? — pergunta Leonor, esquecendo-se da morte da sogra.
— Tire-a daqui, pai, antes que eu resolva partir desta casa, e para sempre.
— Mas o que foi que aconteceu, Melancia??? — Leonor pergunta ao marido. — Caiu a Torre Eiffel, ou seria outro tsunami, desta vez, no Japão? Ah, não, não me diga que as geleiras dos Andes derreteram??? Que meeedo!!! — ela não se lembra mesmo de dona Beatriz.
O homem a puxa pelo roupão, retirando-a da cozinha.
— Literalmente perturbada! — sentencia Matilde, aproximando- se. — Eu sinto muito, menina, mas foi preciso essa briga para que ela parasse; se eu não a tivesse enfrentado, ela teria ido filmar você para postar nas redes sociais, em mais um daqueles seus vídeos deploráveis. Eu não poderia deixar!
— Percebeu que ela não se lembrou da vovó?
— E nunca se lembraria, ela a odeia desde o dia em que perdeu…
— … desde o dia em que perdeu…??? Complete a frase! — exige, estranhando a postura da governanta, que desconversa, com explicações cada vez mais absurdas.
— Você não vai me dizer o que houve entre minha mãe e minha avó? Não confia em mim?
— Não é isso, minha querida, não me leve a mal, mas há coisas que a vida prefere manter aprisionada no baú do tempo, e que se remexido, poderia causar novos estragos.
— E o que seria? Conte tudo, Matilde! Somos todos ouvidos, né, não, dona Luara? — pergunta Cleide, sem qualquer pudor, com a cabeça apoiada às mãos, enquanto os olhos curiosos correm as duas.
— Ouvindo nossa conversa, Cleide? Que coisa feia! Pois deixe de fofocas e volte logo para seus afazeres — ordena Luara, diante da cozinheira, que visivelmente constrangida, finge arrumar a louça.
— Nossa conversa não acabou, Matilde…
— Deixe disso, menina, por que desenterrar o que os vermes já devoraram?
— Não vou cair nessa, agora quero sair daqui, preciso tomar um ar, esta casa me sufoca.
— E para onde vai? — preocupa-se.
— Não sei! Só quero sair…
Sobe as escadarias, troca de roupa, tendo a governanta à sombra.
— Já está tarde, deixe para amanhã, veja — aponta para a paisagem que se desenha no horizonte —, logo escurecerá.
Luara não a ouve, bate a porta do quarto, desce até a sala de estar, de onde segue até a garagem. Entra em um dos carros da família, aciona o portão automático, enquanto a empregada, à janela do passageiro, sugere-lhe:
— Se vai mesmo sair, deixe que Eufrásio a leve, assim você não se desgasta tanto.
— Eu vou sozinha! Preciso de um tempo. Me deixe, por favor!
— Eu insisto! — seu coração grita, como se algo de ruim fosse acontecer. — Vá com Eufrásio.
— EU JÁ DISSE QUE NÃO!!!
— Ao menos diga aonde vai, senão meu coração há de explodir de tanta ansiedade.
— Tá, tá, tá bom, que coisa… Eu… eu vou ao Jardim Botânico
— responde, ao perceber que a mulher não desistiria.
Matilde, na calçada, acompanha-a até deixar a garagem e seguir pela via, virando à esquerda na segunda ou terceira quadra, momento em que o carro preto ressurge, para o desespero da mulher, que leva as mãos à boca.
— Meu Deus, é aquele carro de novo… Eu sei! Eufrásio… Eufrásio… — chama pelo motorista. — Siga aquele carro.
— Que carro, dona? — olha para todos os lados. — Não estou vendo nada!
— É um carro preto… ele, corra…
— Carro preto? Não, aquele é branco — aponta um outro veículo que aparece no fim da estrada.
— Precisamos ir atrás dela, eu sinto… ela… ela está em perigo.
— Cadê Luara? — pergunta o general, se aproximando.
— Ela acabou de sair, senhor, e aquele carro preto de que lhe falei está atrás dela, bem, pelo menos eu acho.
— Que carro preto? Ei, acalme-se, mulher, já lhe disse, deve ser de algum morador.
— Eu sinto, meu coração quer pular do peito, ele… ele está atrás de Luara.
Os comparsas seguem-na, sempre mantendo alguma distância, fotografando todo o trajeto.
— Cuide desta máquina, cara, senão o patrão vai falar um monte. Hum! Vai que ele decida nos apagar, o bicho é esquisito demais
— aconselha Egídio, enquanto guia, desviando-se de alguns buracos.
— Verdade! O cara é fora da casinha… E aquela mulher? Ela me deu medo… Cigana, acha? Tô fora, quero conversa com essa gente não — concorda Álvaro.
— Até agora você não explicou o que aconteceu no cemitério, sei lá, parecia meio bicho domado, sem atitude, quase pôs tudo a perder, e se isso acontecesse, claro, a gente já estaria com um tiro na testa, embaixo de sete palmos de terra.
O rapaz emudece.
— Fale, meu, tá com medo de quê? Estamos só nós dois. Fale!
— insiste.
— Eu… eu não sei, meu, fiquei meio perdidão depois que vi aquela garota de perto…
— Não vá me dizer que… ah, cara, foi fisgado pela bisca, é isso?
— Nunca! Nada disso, deve ser o sol que cozinhou meus miolos.
— Espero! — desconfia. — Porque se você acha que ela daria trela a um sujeitinho sem eira nem beira como você, pode ir tirando o cavalinho da chuva — alerta-o, mesclando seriedade e deboche. — Aliás, estou aqui pensando, agora seria um bom momento para a gente “pescar esse peixão”, não seria? Ela está só!
— Mas o patrão ainda não deu a ordem, se a gente avançar os passos e der algo errado, nossas cabeças vão para a mesinha daquela cigana como troféus de caça — teme Álvaro, relembrando-se da mulher.
— É, tem razão, mas você ficou mesmo impressionado com ela, né? Pois vou lhe falar, acho que ela também ficou por você, pois não lhe tirava os olhos… Não quero ser fifi, mas acho que ela sabe que você mentiu…
— Como assim? — apavora-se. — Será? Como pode?
— Sei não, dizem que as cartas não mentem, ainda mais nas mãos de ciganos. Abra teu olho, cara! Fique esperto!
Minutos depois…
Luara chega ao Jardim Botânico, deixa o carro no estacionamento, passa pelo portão principal e para diante da praça Gilberto de Mello, onde há a estátua de São Francisco de Assis, o protetor dos animais.
Emocionalmente frágil, aproxima-se vagarosamente do santo, fixa-o com esmero, como se nele procurasse algum conforto. E não é que ele veio, na forma de boas lembranças. Sentando-se a um banco que há em volta, ela recorda dos piqueniques que ali participou junto à dona Beatriz. E foram muitos. Esperta como era, a matriarca dos Vaz não perdia um só momento das visitas que promovia ao lugar; acompanhava a neta em tudo, fosse no parquinho, onde a menina se deliciava no escorregador ou no balanço, fosse nas brincadeiras de esconde-esconde — ainda que a idade terminasse sempre por entregá-la —, ou nos imensos passeios em meio à mata, onde contemplava os animais e a natureza, como alguém que compreende que o homem é parte da terra e à terra um dia voltará.
E quando estavam cansadas, sentavam-se à mesa de madeira, em um dos quiosques, e degustavam dos mais variados lanches naturais, feitos com tanto carinho pela querida Matilde. Sempre terminavam os passeios no segundo andar do mirante, no jardim de contemplação, de onde era possível descortinar as diferentes espécies vegetais, além da biodiversidade ao redor de um lago central, que funcionava como ponto de convergência entre os seis biomas ali representados.
— Aqui temos um pouco de tudo, meu amor — dizia a velha, com o semblante sereno —, ali há um pouco da Mata Atlântica, do Cerrado, dos Pampas e daquele outro lado, a Floresta Amazônica, a Caatinga e o Pantanal. E ainda dizem que os homens são predestinados à ganância e à destruição; isso é a prova do contrário, porque, quando querem, eles são capazes de dar vida e preservarem lugares maravilhosos como este jardim.
E ali permaneciam até o sol dar os primeiros sinais de que iria descansar.
Luara se levanta, após deixar as lembranças de lado, dizendo:
— A senhora tinha razão, vó! Que sabedoria!
Atrás de uma das árvores, Álvaro se prepara para tirar a primeira foto, quando a imagem da garota ressurge diante da tela, confundindo- lhe os sentidos.
— Não pode ser! Que desgraça é essa? — abaixa a câmera, transpirando muito. — De novo não! Essa… essa garota…
Perturbado, volta a fotografá-la, mas em ritmo frenético, como se novamente estivesse sob o efeito de alguma hipnose. Como um desbravador, quer tocar o seu corpo — ainda que à distância —, deslizar por suas curvas, correr a mão por sua face, sentir os seus lábios e neles beber de sua essência, assim como fazem os amantes nas insanidades de suas paixões.
A jovem deixa o lugar, entra em uma trilha, momento em que Álvaro ameaça chamá-la — é o que mais deseja —, mas é contido pelo medo que tem do patrão. Após dez minutos de caminhada, ela chega ao lago, ajoelha-se, toca a água, mexe com as carpas, de todas as cores, que fogem, assustadas, procurando um refúgio, assim como ela, que alimenta o mesmo desejo.
Ao avistar o mirante, dirige-se para lá, sendo contemplada pelo bandido, que seduzido, observa-a com os olhos de quem AMA, ainda que não se tenha dado conta. Álvaro não a fotografa mais e, aos poucos, revela-se, na intenção de que Luara também o veja.
No ponto mais alto, a garota avista parte do jardim, sendo agraciada pela brisa delicada e pelos raios de sol minguantes, que serenamente, deixam o céu alaranjado para beijá-la. Sentindo uma paz momentânea, cerra os olhos e respira o aroma delicioso das flores.
Uma mão se deita em seu ombro.
— Temos de agir rápido, a hora chegou! — anuncia a cigana, lá na mansão, ao patrão, após retirar outras duas cartas.
— O que você vê? — pergunta, curioso, com um copo de whisky à mão.
— TRAIÇÃO! — anuncia, temerosa, com as cartas da chave e da serpente ladeadas na mesa. — E SERÁ COMO UMA FLECHADA!
— E POR QUEM SERÍAMOS TRAÍDOS? — exige, com fúria
— DIGA, QUE EU MANDO PASSAR FOGO JÁ! AINDA NÃO NASCEU O HOMEM CAPAZ DE ME PASSAR UMA RASTEIRA.
A mulher se levanta, ajeita o lenço que cobre a cabeça, dá dois ou três passos, como se não tivesse rumo, mexe nas pulseiras dos braços, roda um dos anéis da mão esquerda, respondendo:
— Ainda não sei! As cartas não são claras… — ainda que não tenha visto o traidor, a imagem de Álvaro lhe surge diversas vezes. — Não lhe posso dizer nada, benzinho, está tudo confuso demais, mas, de uma coisa tenho certeza, se não agirmos rápido, tudo estará perdido. Eu sinto isso! Dê a ordem já, se quiser mesmo seguir adiante.
Enquanto isso, no Jardim Botânico, Luara se vira e toma um susto.
— Você?!!
— Olá, amiga! — anuncia-se a jovem, num vestido curto, claro, e de alças finas.
— Sofia, por-por que está aqui? Que ventos a trazem?
— Fui até sua casa e Matilde me pediu que viesse aqui, disse que tinha um carro preto atrás de você, acredita? Está ficando louca como sua mãe, só pode. Você sendo raptada… viajou na maionese — gargalha.
— Vire essa boca para lá, como minha mãe não existe. Matilde está apenas cansada!
— Carro preto, amiga? Isso é história para o canal de sua mãe, por falar nele, sabia que está bombando? As loucuras de dona Leonor estão viralizando, há até quem a considere a nova estrela da Internet…
— … estão todos loucos como ela, só podem! — interrompe Luara. — Só eu sei o que essa “estrela da Internet” é capaz de fazer por likes.
Debruçada sobre o guarda-corpo, corre os olhos pelo lugar, quando a figura de um homem a atrai; mesmo distante, após algum esforço, reconhece Álvaro, dizendo a si mesma:
— Será? Não pode ser!
— Não pode ser o quê, amiga?
— Está vendo aquele rapaz, aquele — aponta-o. — Veja!
Antes que Sofia pudesse vê-lo, Egídio surge do nada e o puxa com força.
— Que rapaz? Eu vendo é um bando de carpa naquele lago.
— Ele está… sumiu! Não pode ser!
— Acho que você anda vendo coisas demais, assim como a Matilde… Sei que a perda de sua avó lhe causou um vazio no peito, mas é hora de seguir em frente, né?
Com o semblante entristecido, Lura fixa o céu infinito e se cala.
— É uma que vê carro, outra que vê rapaz no meio da mata… não seria o saci-pererê? — caçoa. — Sabe o que você está precisando fazer? NA-MO-RAR! Pois de hoje não passa, irá comigo à Hedonê. Chega de “morrer” aos poucos.
— Aquela casa noturna? Jamais! Não estou no clima! Acabei de enterrar minha avó.
— Pois irá, isso é uma ordem, ou deseja ficar em sua casa, assistindo aos esporros de sua mãe aos empregados? É pegar ou largar, até porque, lá estará o Nicholas, aquele gatinho, a quem você paga todos os paus, ou pensa que não percebi? Vamos dar uns bons catas, amiga!
— Tá, tá, tá bem — concorda, apesar de algo, dentro de si, pedir para que não vá.
— EXECUTE O PLANO ESTA NOITE, CONFORME O COMBINADO! — anuncia o patrão, visivelmente determinado, pelo celular, a Egídio, que está atrás de alguns troncos, oculto dos olhares das moças.
— Chegou a hora, mané! — encerra a ligação, comunicando ao comparsa, que se mostra incomodado com a notícia.
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1. Drag queen interpretada por Jorge Lafond, ator e comediante que morreu em 2003, aos 50 anos, em decorrência de problemas cardíacos.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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