Um ano antes…
O avião, vindo de Lisboa, prepara-se para pousar no aeroporto de Brasília. Os passageiros, com os cintos afivelados, acompanham o nascer do sol, que se levanta aos poucos, espreguiçando-se como uma criança contrariada. A capital do país, como que saltando das plantas de Oscar Niemeyer¹, surge grandiosa no horizonte. Não há como não apreciar a beleza daquela terra, palco dos atos mais reluzentes da jovem Democracia; também coração de um país machucado, seduzido por forças e ideologias extremas, que se não contidas pelas letras mais incisivas da Constituição Federal, poderiam despertar o caos, capaz de ressuscitar as figuras mais nefastas de um regime cruel, cujo prazer centrava-se na alienação popular e na aniquilação dos opostos.
A aeronave toca o solo brasileiro às 07h05, com quase uma hora de atraso, quando passageiros e tripulantes, num só aplauso, saúdam a chegada. Alguns se abraçam em meio a lágrimas enquanto outros oram em silêncio; o voo não havia sido tranquilo. Turbulências pesadas quase conduziram a nave ao precipício do esquecimento, não fosse a experiência do piloto e de sua equipe.
Em meio aos passageiros está uma garota tímida, de uns vinte anos, com grandes óculos escuros a contornar a face bem desenhada, visivelmente alheia, como se aquela situação, por mais dramática que fosse, não a houvesse tocado – pelo menos era o que transparecia. Diferentemente dos demais, ela se continha, preferindo evitar o toque ou mesmo qualquer palavra de conforto. Seu incômodo era evidente, a ponto de pedir passagem a um casal que se abraçava em pleno corredor para chegar logo à porta da aeronave. Queria logo sair dali, respirar de novo o ar seco de Brasília, retomar a rotina, ainda que esta fosse excessivamente entediante. Na verdade, algo a consumia por dentro fazia dias, mas não sabia o que era e isso a deixava irrequieta.
Todos são conduzidos à Imigração para as devidas conferências de praxe, em seguida, liberados.
— Onde está nossa meniniiinha, Martim? — pergunta, entonando algumas palavras. — Por que toda essa demora? O voo atrasou demais, não seria o caaaso de você contatar a Tooorre de controle para obter maiores esclarecimeeentos? — indaga a mulher — uma cinquentona bem vistosa, num vestido curto, agarrado, com decote a contornar o colo; em suas mãos havia uma pequena bolsa de couro, discreta, mas bem valiosa, e nos pés um sapato de salto, de uma marca exclusiva —, diante do portão de desembarque.
— Torre de controle? — estranha o homem, acomodado a um terno feito sob medida. — Está louca? Para que existem os balcões de informações das companhias?
— Como se eles funcionassem… Acorda, queriiiido, você está em terras tupiniquins. Mas deixe de história e ligue já para a Torre.
— Nem se eu quisesse, estou na reserva, se esqueceu?
— Mas não deixou de ser general do Exército ou a reserva é onde se exilam os considerados inúteis?
— Me respeite, Leonor Moreira Vaz, me respeite! Sou legalista, respeito a hierarquia e honro a minha condição. Não admito que me trate como se eu fosse um qualquer.
— Legaliiista? — debocha. — Agora inventaram outro nome para covarde?
— Do que você está falando, mulher? E-e-eu… eu…
— Isso, gagueje mais, vamos, eu adooooro vê-lo perdido com as palavras… É um covarde sim — aumenta o tom de voz, atraindo a atenção dos presentes -, ou ainda não percebeu o que vive este país há quase três anos? Todos pedem intervenção militar e cadê os generais CORAJOSOS para atenderem aos anseios do povo e colocarem ordem na bagunça deixada pelos “comunistas”? Estão como você, deitados no sofá, de ceroula, assistindo aos jogos da liga europeia. Que horroooooor!!!
— Você precisa de um médico, não é possível falar tanta besteira em uma única conversa. Foi da Torre de controle à intervenção militar, como se ambos os assuntos convergissem.
E ela continua a prosa completamente desconexa, até que ele, com a paciência escassa, dá um berro, a ponto de ser advertido pelos olhares daqueles que os circundavam.
— CHEEEGA!!! Não existe nem existirá intervenção militar; se isso, por acaso, um dia vier a acontecer, a Democracia não resistirá e nossa História poderá ser banhada pelo sangue dos inocentes como nunca se viu, entende?
— Detalhes, apenas detalhes…
— Como pode ser assim, Leonor? Sua filha chegando e você preocupada com intervenção militar.
— Não é verdade — a discussão começa a perder o controle, chamando a atenção da segurança —, eu apenas pedi que você exercesse sua autoridade, pegasse este celular e cobrasse da Torre o que aconteceu com o voo de nossa filha, mas como sempre, preferiu se omitir, relegando a outrem o que lhe é de direito.
— Hierarquia, mulher!
— Dane-se a hierarquia, a democracia, o povo, até mesmo você; o que me importa é o poder e os privilégios que nossa casta acumulou ao longo de todos estes anos — as palavras da mulher principiam um tumulto.
— Que tipo de gente é essa??? — pergunta uma senhora de bengala à sua cuidadora.
— “Homem primata, capitalismo selvagem, ô-ô-ô” — a empregada cantarola um trecho da canção dos Titãs como resposta à idosa.
— Brigando de novo??? — pergunta a garota, reencontrando os pais, que se digladiavam como feras sob os olhares revoltados da turba.
— Filhiiiiiiinha do meu coração… Uhhhhu!!!! Você chegou!!! — dissimula a mulher. — Que saudades, meu amor!!! Como você está??? Veja, Martim, ela emagreceu ainda mais… Que horrooor!
— Pare de escândalos, mãe! — repreende-a, indignada, tentando se afastar da multidão. — Não aguento mais isso! Vocês me dão nojo… NOJO!!!
— Viu o que você fez, Leonor? É mesmo uma desequilibrada!
— Olha como se refere à minha elegante pessoa, seu… seu “melancia² de uma figa”.
— PAREM!!!! — grita a garota, com os olhos cheios de lágrimas.
— Vocês não mudam!!!
Enquanto foge da confusão, não percebe que uma figura sinistra, de uma curta distância, a fotografa.
— Luara, meu anjinho, espere a mamãe… Viu o que você fez, seu melancia? — volta-se com raiva para o marido, que se limita a balançar a cabeça em sinal de reprovação.
A jovem cruza o saguão a passos longos e se dirige a uma das muitas portas de entrada, enquanto os pais, agora detidos pela segurança, discutem acaloradamente, como políticos rivais em uma CPI.
— Dona Luara, que bom revê-la! — diz o chofer, com um longo sorriso no rosto, abrindo a porta do carro para a moça.
— Bom dia, Eufrásio! Ligue o carro já, quero sumir deste lugar o quanto antes — ordena, arrumando-se no banco de trás.
— Mas… mas e seus pais, senhorita? Eles ainda estão lá — indaga, aflito, o sexagenário de cabelos ralos, barriga saliente e barba bem-feita.
Novamente a fotografam.
— Isso não é um pedido, é uma ordem! Mesmo temeroso, ele a obedece.
— Por acaso os senhores sabem com quem estão falando? — intimida, Leonor, transtornada, ao ver pela vidraça do prédio o carro da família se afastando. — Olhe, Martim, ela está nos deixando… Faça alguma coisa. Cadê seus contatos? Ligue para todos, todos! Que horrooor, meu Deus, detidos por míseros oficiais… Isso deve ser algum tipo de pegadinha, só pode! Faça alguma coisa, homem!
— Estou tentando… Por favor, me permitam uma ligação ao Ministro da Justiça e tudo será esclarecido. Somos pessoas de bem, aliás, sou general…
— … aposentado! — ironiza a mulher. — Melancia até o talo! Os seguranças não entendem.
— Que horroooooor!!! A ignorância é mesmo irmã gêmea da burrice. Ele é um melancia, nunca ouviram isso? Democrata por fora, comunista por dentro!!! Aff!!!
— … mentira, mentira… não deem ouvidos a ela… se eu conseguir falar com o ministro…
— Os senhores serão levados ao posto policial do aeroporto para os devidos esclarecimentos — determina um agente da Polícia Federal à paisana, achegando-se.
— Que horrooorrrrr! Uma mulher da minha estirpe em uma delegacia? Isso é o fim! Que a imprensa não saiba.
No carro, Luara acompanha a bela paisagem do Lago Sul, região nobre de Brasília, ainda não acreditando no que os pais fizeram.
— Desculpe, Eufrásio, mas aqueles dois me endoidecem… Eu precisava sair de lá!
— Não se preocupe, senhorita, a vida é mesmo muito complicada.
— Com certeza! Se eu pudesse, estaria longe…
— Mas a senhorita acabou de chegar; quer viajar de novo?
— Não! Não é isso… eu estaria em outro lugar, outro mundo, não sei…
— A senhorita queria era… — dá uma arranhada na garganta, antes de continuar — … estar morta?
Ela não responde, abaixa a cabeça, enquanto as lágrimas escorrem desordenadas pela pele macia.
— Não fique assim, olhe, veja pelo lado bom, a senhorita é bonita, tem uma boa casa, dinheiro no banco, se quiser, pode mandar todo mundo às favas e desaparecer por gerações; o que só não pode é desistir de viver… Ah, isso nunca, até porque, a vida é um dom único e deve ser cultuado até o último grão escapulir pela ampulheta.
Luara abre um leve sorriso, comovida com as palavras do empregado.
Sem que percebam, são seguidos por um veículo preto, em que há dois estranhos. Enquanto um dirige, o outro fotografa todo o trajeto, como se fizesse o reconhecimento da região.
— Eufrásio… — um sentimento estranho lhe invade a alma e deixa estragos.
— Sim, senhorita! Está tudo bem? — indaga, vendo-a, pelo retrovisor, acariciando a face.
— Na verdade, não sei! Algo está me incomodando há dias, uma sensação estranha, de vazio no peito.
— A senhorita não sabe??? — assusta-se o empregado.
— Não entendi! Aconteceu alguma coisa? — desconfia. — Aconteceu?
— Bem… como posso dizer, Dona Beatriz, sua avó, teve… teve um AVC há poucos dias.
— AVC??? COMO ASSIM??? E NINGUÉM ME FALOU??? AGORA ESTOU ENTENDENDO ESSA COISA ESTRANHA QUE ESTOU SENTINDO !!! E CO-CO-MO E-ELA ESTÁ??? MO-
MORREU??? — questiona, numa voz embargada, não conseguindo conter o desespero.
— Não, não, senhorita, ela está em casa…
— Meu Deus! Ela não está bem, não é? Pode falar, eu prefiro saber antes das coisas… Fale!
— Bem, senhorita… Como posso lhe dizer? Seu pai teve de montar uma UTI dentro de casa porque sua mãe se negava a visitar sua avó no hospital; dizia que algum abutre do jornalismo poderia filmá-la eventualmente sem maquiagem e postar o vídeo nas redes sociais.
Não contendo a dor, Luara é acometida por uma crise de ansiedade, obrigando o chofer a parar o carro no acostamento.
— Senhorita… senhorita… ei… — chacoalha-a, assustado, ao perceber que ela estava tão gélida como os mortos. — Senhorita, ei, volte, é Eufrásio, eu estou aqui — constatando que o problema era grave, deixa o veículo para pedir socorro.
Acena para que alguém pare, atraindo a dupla, que estava a alguns metros.
— O que houve, meu amigo? — questiona um dos comparsas, abrindo a porta, numa voz aveludada, enquanto a mão encontra a pistola, que está presa à cintura. _ Em que posso ser útil?
Antes que Eufrásio contasse a história, uma viatura da polícia invade o local, trazendo os pais da garota, agora liberados por força da extensa influência da família junto ao Ministro da Justiça, o que termina por afastar o estranho, que se recolhe à companhia do outro suspeito e desaparece.
— O que você fez com minha filhiiinha??? — brada Leonor, ao avistar a garota desfalecida sobre o banco.
— Eu… eu nada, senhora! Quando ela soube do estado de dona Beatriz, começou a passar mal.
— O que você diiisse para ela? — volta-se, inconformada, para o marido. — Martim, despeça imediatameeente este pé-rapado. Ele contou à nossa fiiilha sobre a doença da velha… quer dizer, de sua mãe!
— Mas… mas por quê? Ele não fez por mal! — o marido tenta defender o funcionário, que emudece diante da nova discussão.
— Que horrooorrrr! Não acredito no que estou vendo… Você vai mesmo me afrontar?
— Ele não fez por mal, Leonor, nossa filha teve apenas uma crise, como tantas outras.
O policial assiste a tudo, horrorizado.
— Oficial, prenda o motorista, ele feriu minha filha.
— Prender por quê? Eu não feri ninguém, isso é mentira! — defende-se, Eufrásio. — Senhor policial, ela começou a passar mal assim que soube do estado de saúde da avó dela.
— Que horrooooooorrrr!!! Como mente bem, deve ser outra melancia e dessa raça quero distância. Pois ele colocou minha filha em perigo e deve ser esquartejado em praça pública como Tiradentes e suas partes jogadas aos quatro cantos, para que aprendam que a filha de Leonor Moreira Vaz não é qualquer uma, mas descendente de uma das famílias mais respeitadas da capital deste país. Vamos, policial, faça o que estou mandando!
— A SENHORA SÓ PODE ESTAR LOUCA… NÃO DIZ COISA COM COISA! SE INSISTIR, SOU BEM CAPAZ DE LEVÁ- LA DE VOLTA PARA A DELEGACIA, QUEM SABE ALGUNS DIAS NO XILINDRÓ LHE DEVOLVAM A SANIDADE —
esbraveja o agente, deixando o local.
— Aonde o senhor vai??? Volte!!! Pois vou ligar ao seu chefe, ele há de puni-lo com gosto — ameaça, completamente ensandecida.
— Ligue para quem a senhora quiser, não tenho tempo a perder com gente louca.
— Martim, contate agora o Ministro da Justiça e peça a cabeça deste canalha numa bandeja de prata — continua a mulher, cada vez mais possuída por uma grandeza absurda.
— Eu não vou contatar ninguém! — o homem se volta para a filha, que recobra aos poucos a consciência. — Filha, filha, é o papai, tudo bem? Precisamos de um copo d’água…
— Eu tenho uma garrafa que levo sempre comigo, o senhor aceita? — oferece Eufrásio.
— É claro! Pois a pegue logo!
— Que horrooooooorrrr!!!! Como tem a coragem de dar da água do serviçal para minha filha??? Isso é uma afronta!
— E qual o problema??? — o homem enfrenta a esposa com toda a ira do mundo. — Responda-me, criatura! Deve estar possuída pelo espírito de Maria Louca³, só pode, não há outra explicação.
— COMO OUSA??? — adverte a mulher.
— PAREM!!! PAREM!!! PELO AMOR DE DEUS, PAREM!!!
— suplica a garota, quase recuperada. — Quero ver minha avó, por favor! Estou com um pressentimento ruim… por favor!
Os dois, enfim, se calam, penalizados com o estado emocional da jovem.
Minutos depois…
Ao abrir a porta da bela mansão em estilo contemporâneo, Luara encontra uma das cuidadoras, que abaixa a cabeça, tentando esconder os olhos marejados.
— Onde está minha avó? — pergunta, com medo da resposta. — Ela… ela… diga-me a verdade… como ela está?
— Sinto muito, mas ela acabou de partir. Esperou pela senhora o quanto pôde, mas… mas… não deu tempo, não é? — responde, visivelmente comovida.
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1. Arquiteto brasileiro, considerado uma das figuras-chave no desenvolvimento da arquitetura moderna, mais conhecido pelos projetos de edifícios cívicos para Brasília, uma cidade planejada que se tornou a capital do Brasil em 1960.
2. O termo é comumente usado por militares da direita para se referir aos de esquerda, que seriam verdes por fora (cor da farda) e vermelhos por dentro.
3. Apelidada de “a Louca”, Maria I foi a Rainha de Portugal e Algarves de 1777 a 1815, e também Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves a partir do final de 1815 até sua morte. A partir de 1792, seu filho mais velho, João, atuou como regente do reino em seu nome porque ela literalmente enlouqueceu.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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