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Feriadão WebTV: O Dia em que Acordei Morto

Conto de Paulo Luís Ferreira
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Sinopse: O Dia em que Acordei Morto, a princípio é uma paródia ao memorável romance de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Indivíduo ao acordar, encontra-se dentro de um ataúde funeral, dentro de seu quarto, envolto por diversos castiçais de velas e flores já murchas e cheiros de incensos. Quando ele mesmo fica na dúvida se está vivo ou morto. A partir daí passa a fazer mil conjeturas sobre sua vida passada e o provável futuro como morto/vivo. Até que se decide a sair do caixão para verificar sua real situação, e passa a se deparar com uma série de situações inusitadas. E um final...



O Dia em que Acordei Morto
de Paulo Luís Ferreira

 

Riam! Podem rir à vontade! Pois eu também ri muito na manhã daquele dia. Quero dizer, pensei em rir, mas não pude, pois não conseguia nem me mexer. Achava-me atado. Sentia-me como se estivesse embalsamado, envolto em flores, cravos, incenso e velas. Este cenário eu vi, quando, após muito esforço, abri uma frestinha de uma das pálpebras para encarar a cruel realidade. Paralisei por completo, sem antes não me apavorar com a situação. Inacreditável! Vivo e acordado, porém morto. Você deve estar se perguntando: como veio isso acontecer, acordar morto!?... Mas foi isso o que aconteceu. Acordei mortinho da silva.

Por muito tempo relutei em contar este sucedido. Pois, como é sabido, defunto não tem memória, e muito menos escreve. Com exceção de alguns espectros miraculosos a serviço de charlatães. — que não é o meu caso—. No entanto, estou eu aqui narrando esta atípica história que, por mais inverossímil que pareça, acredite! Pois, como bem disse Machado de Assis, eu também esclareço: a franqueza é a primeira virtude de um defunto. E os fatos estão descritos conforme o acontecido e sentido no dia em que acordei morto.

E como bem dedicou o mestre em suas memórias póstumas, eu também dedico este relato àquele que primeiro empunhar a alça do meu caixão; o que provavelmente já deverá estar com a fértil imaginação a deslumbrar os vermes a passear sobre e por entre meu cadáver. Contudo, deixarei uma luz às evidências; avisando que usei do mesmo recurso do qual recorreu o Machado, para expor no papel suas memórias. Entretanto, como ele, também me recuso a dar maiores esclarecimentos. Quem quiser saber minudências a respeito de tão refinada técnica: escrever após a morte, que o faça como fiz eu e o Assis. Morra e decifre o enigma. Mas isso fica por conta de vocês. Não serei eu a dar luz a tão primoroso e excepcional recurso.

Mas, enfim, como diz o dito: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe”, agora o que importa mesmo é que eu não tenho mais credores. Que maravilha! Que beleza!... Não devo mais pensão alimentícia... E o melhor: adeus dívidas com cartão de créditos! Tchau amantes exploradoras dos bens alheios! Pois, como bem diz aquela velha piada: Mulher é como furacão: quando chega é molhada, selvagem e devastadora. E quando se vai leva tudo o que é seu: casa, carro, livros, discos, cuecas!” Mas agora, de corpo novo, espírito leve, sem o cansaço das homéricas ressacas, poderia começar tudo de novo. Finalmente, zerado!

Entretanto, uma coisa ainda me incomodava. Eram os resquícios do velório. O forte cheiro de flores e cravos murchos, restos de incenso queimado, tocos de velas nos castiçais ainda acesos. O ataúde apertado me estorvava o corpo. Estaria eu inchado? Resolvi me levantar, sair do ataúde. Antes, porém, alarguei um pouco mais a fresta das pálpebras e olhei dissimuladamente em volta, e o sobressalto: dei com a fatídica figura da morte e sua afiada foice, aos meus pés, na ponta do caixão com um sorrisinho de deboche safado. Não tive a divina coragem de me mexer, muito menos de me levantar. Procurei me tranquilizar. De repente, um tremorzinho:

O véu que cobria o meu rosto fazia uma cócega irritante nas ventas. Arrisquei fazer um biquinho, forçando um soprinho para afastar uma mosca que acabara de pousar em cima do lábio superior. A sensação de inércia no corpo era assustadora. Muito embora eu não estivesse com medo, pois como diz o provérbio: Quem não morre não vê Deus!” Logo eu que enfrentei a ditadura nos anos de chumbo de poesia na cabeça e papeiro na mão, não seria uma desconfiançazinha de que estava morto que iria me borrar as calças. Até já imaginava o epitáfio na lápide do meu túmulo: Minha vida não passou de um reles plágio de outras tantas e iguais vidas triviais e obscenas que pululam esse mar de mediocridades chamado de humanidade.

Naquele instante, o que me contentava era a perspectiva de uma vida nova que despontava. Mas também me apavorava a ideia de ter morrido realmente. Logo agora que as coisas estavam dando certo pra mim. Depois de três anos, enfim acabara de escrever meu novo livro de contos, e foi publicado; deleitava-me com minha namorada nova; havia aprendido a beber cerveja, pois a ressaca era menor que a do velho uísque e da vodka de segunda categoria. As coisas iam de vento em popa, tudo caminhando bem, supimpa!

Mas, no momento, o que irritava mesmo era aquela posição incômoda de paralisia. Sentia a bunda achatada, dormente; os dedos duros e frios como os de estátuas de cemitério, ou como os próprios da morte: com seus dedos de ossos ou os ossos dos seus dedos — perdão pela redundante gracinha —. E aquela mosca cada vez mais azucrinando, pois descobrindo que não despertava reação em mim, usou e abusou de seus voos e zumbidos, ziguezagueando dos olhos para o nariz, do nariz para as orelhas. Ameaçou olhar até dentro do ouvido, e circundou com aquele som horroroso zuim, zuim...”. Filha de uma rameira... Comecei achar meio estranho: onde estavam as pessoas? Já havia acabado o velório? Há quanto tempo eu estava morto? A que horas seria o enterro? E se eu começasse a feder a ponto de eu mesmo não me aguentar, não suportar o odor da minha própria podridão? Não, não pode ser, esse tipo de controle sobre a vida de ontem e a morte de hoje... Como escritor, sim, poderia manipular a personagem. Porém, tratava-se de minha própria vida, ou como queiram, de minha morte. Já dizia Heráclito de Éfeso, há quinhentos anos antes de Cristo: “A verdadeira constituição das coisas gosta de ocultar-se”, quem sou eu então para duvidar da experiência de morto/vivo que experimentava naquela oportunidade que a existência me proporcionava? Mamãe disse certa vez quando pilava café: “Bom dia, pilão!” e o pilão respondeu: “Bom dia, dona Maria!” A partir daí, claro, eu acredito em tudo.

Dei mais uma espiada com a frincha dos olhos. A coisa já não estava mais me espreitando. Então, sem delonga, sem mais especulações sobre as circunstâncias, e com o espírito leve, quase flutuando, saí do ataúde e caminhei claudicante, escorando-me pelos móveis, assustado e curioso. Quando ouvi um sonoro: “Aonde vais tu, oh garboso infante?” Era a cretina dona morte, a serial killer, a desumana e sanguinária vampira, a macabra dos infernos, com seu sorrisinho cínico, encostada à parede, e a queixada de ossos sobre a gadanha. E, num estardalhaço de rá, rá, rá, sumiu num tufo de fumaça, a grandessíssima filha da puta! Ah, ah, ah”, digo eu, sua idiota! — disse sem nem um tico de medo. . E não lhe dei mais trela. Então resolvi tirar uma com a cara dela, brincando de fantasminha. Atravessei a parede do quarto; subi para o teto do corredor e andei de ponta-cabeça até chegar à sala. Quando meu olfato foi aguçado.

Era o aroma inebriante do charuto de papai. Era mais que reconhecível aquele cheiro/sabor de Havana. Papai datilografava em sua velha Remington. Num ímpeto de emocionante alegria, eu gritei: “Pai!... Papai!” O vulto não respondeu. Aproximei-me e vejo que escreve alguma coisa.  Pois, como eu, papai também fora escritor. Melhor dizendo, como papai, eu também sou escritor. Com a diferença que papai era cronista dos bons. Não eu, um reles narrador de historietas inverossímeis. Um beletrista escrevinhador. Adiantei-me um pouco e li no alto da página o título da crônica que escrevia: “O DIA EM QUE MEU FILHO ACORDOU MORTO. Tentei apoiar minha mão em seu ombro para indagar o que se sucedia; debalde. Só encontrei o vazio da incorpórea matéria. Era apenas um espectro no espaço vazio.

Perscrutei a ampla sala com minuciosa atenção. Clara, muito clara a luz que invadia pela janela aberta. Luminosa luz branca. Olho lá fora, mas nada vejo. É tudo tão branco. Estou cego?... O que vejo, porém, não é a negritude da cegueira; é um branco leite... Não! Isso é pura influência do Saramago, no tratado sobre a cegueira, que acabara de ler recentemente.

Apavorado, volto o olhar para dentro da casa. Agora vejo o corredor, que bom!... A morte é familiar; a casa de infância, meu pai, minha mãe, o delicioso cheiro do café, os passarinhos cantando no quintal; o Romeu, nosso velho e estimado gato, lambendo os beiços do leite bebido; Xuxa, nossa cadela querida, roendo seu osso na entrada do canil; o longo corredor. Lá no fundo uma luz. Imagino que seja a velha cozinha. Sinto o gosto no cheiro do café da mamãe. Vou lá, vou assustar a mamãe. Vou dizer: “Mamãe voltei!... Veja, olhe!... Sou eu, seu filho!...”

Emocionado e feliz da vida, segui pelo corredor rumo ao delicioso sabor cheiroso do café passando pelo coador. A decepção foi instantânea. No fim do corredor não havia cozinha, não havia café nem mamãe. Era só um vazio. Quimeras. Atordoado, na volta da cozinha tropecei em algo. Eram livros espalhados pelo chão, caídos ao pé da estante. Agachei-me e peguei o primeiro que me veio à mão. Rá... Rá... Era exatamente meu último livro de contos. Abri e li a dedicatória: “Este é para ti, Laura Maria, de quem espera a leveza do teu ser...” Era o exemplar que ia dar a minha nova namorada... Que alegria senti... Arrumei os outros na prateleira.

Foi então que as coisas voltaram ao normal. Os móveis na ordem, em seus lugares como dantes. Teria sido um pesadelo? Meu pai já não escrevia à máquina. A sala mergulhada numa tênue penumbra, a janela fechara-se. Abri-a, olhei a rua e senti o burburinho. A realidade, a vida de volta. Lógico, nada daquilo tinha o menor sentido, só poderia ter sido um sonho! Afrânio Barbalho, morrer aos trinta e nove anos! Não, isto não tinha cabimento mesmo. Isso era totalmente fora de propósito. Tanta vida para viver, tantas ilusões, tantas visagens a serem decifradas. Seria melhor assim. Continuar vivo mesmo devendo o cartão de crédito, a pensão, enfrentar as críticas sobre o livro.

Fui ao banheiro. Lavei o rosto. Escovei os dentes. Voltei ao quarto para trocar de roupa. Precisava sair, pois ainda continuava assustado, era preciso dar uma desanuviada no espírito. Tudo fora um pesadelo, e me deixara extenuado. Ao entrar no quarto, o inopinado; deparei-me com o mesmo caixão onde estivera deitado antes, quando pensava estar morto. O soalho, alastrado de flores pisoteadas, estrias de cera escorria dos castiçais. Com cautela me aproximei do esquife, e estupefato constatei que era nada mais, nada menos, do que eu mesmo.

Sim! Era eu, o próprio, que continuava morto. Mortinho dentro do ataúde. Espichado. Toquei o dedo em uma das mãos. Dura como pão esquecido na farinha. Tantas flores; jasmim, cravos despetalados, espalhados pelo chão. O quarto exalava um odor cada vez mais repugnante. Teria havido ali uma turbamulta? Aterrorizado voltei para a sala. Outra vez tudo ficara vazio. Sem móveis, sem nada. Um mundo oco. Corri para a garagem em desespero. Liguei o contato do carro, quis sair imediatamente dali.

          Enquanto esquentava o motor, liguei o rádio. No primeiro dial, a notícia: “Morreu hoje em decorrência de falência dos órgãos devido uma crônica cirrose hepática, o escritor, contista e poeta, Afrânio Barbalho. Tido pelos críticos como maldito e eminência parda, por ele mesmo intitulado...” Alguém dedicou ao meu desaparecimento precoce à música Hallelujah. Eu ouvia o rádio com os olhos vítreos, esbugalhados; deitei a cabeça no encosto do banco. Em devaneio, quase adormeci. Voltei-me, olhei no espelho do quebra-luz e, pasmem!... Meu reflexo sumira! Empalideci, tremi. Estava amarelado como um pedaço de jornal velho. Ao término da música, entre confuso e atônito, ouvi a conclusão da notícia: “A família ainda não definiu o local do velório, nem o cemitério onde se dará o sepultamento. Entretanto, os amigos e acadêmicos estão organizando um sarau para hoje às 17h00, no Boteco da Graça, onde serão lidos em homenagem, seus últimos escritos em forma de poesias, contos e crônicas.”

Meu ar de estupefação ia do assombro ao medonho. A realidade da morte começou a entrar-me pelas entranhas e pelos sentidos. Outra vez encostei a cabeça no banco e me pus a pensar. E, subitamente, senti uma geleira percorrer meu espinhaço. Algo acorreu clareando. O que me acudiu tirando-me da obscuridade e do mistério. Um presságio esquentou o suor que brotava frio dos meus poros.

Num sobressalto, a clarividência: claro, o enigma estava resolvido. Alvíssaras! Tudo não passava de uma brincadeira extravagante daqueles perdulários amigos meus, que gostavam de pregar peças como estas.  Era o lançamento do meu livro de contos. Os amigos queriam fazer uma troça comigo. Um auê!... Daí o anúncio pago no rádio, claro. Era só para chamar a atenção da imprensa. Estava evidente! Era isso. E desta vez eles estavam ajudando. Que bacana! Eu tinha mais era que agradecer. É, agradecer!... Mas eu vou agradecer do meu modo. Vou dar o troco com a mesma moeda, ou melhor, eles me deram em prata, vou devolver em ouro.

Contratarei um grupo de atores, outro tanto de figurantes. Farei uma cópia de mim mesmo em cera, do meu tamanho, da minha largura. Deixe estar! Na hora do sarau mandarei o préstito em meu funéreo cortejo para o Boteco da Graça com todas as pompas e circunstâncias que um defunto do meu quilate merece! Com a instrução de lá se fazer o velório, pois foi o desejo expresso pelo falecido — no caso eu — em seu último estertor moribundo na vida e gemido de morte, perante o testemunho dos familiares. O funeral deveria de ser no Boteco da Graça.

Decidido, abri a porta do carro já na intenção de dar execução ao plano. Um ar fuliginoso escapava pelo carro em profusão. Tudo se tornara escuro e fumarento dentro da garagem. Já não se definia mais nada. Quando respirei fundo para reerguer o corpo, não consegui: foi meu último suspiro. Sufoquei-me no terrificante e venenoso gás carbônico do escape. Caí em colapso. E não mais acordei. Nem vivo, nem morto.


Conto escrito por
Paulo Luís Ferreira

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Márcio André Silva Garcia
Ney Doyle
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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