Matilde aproveita-se da algazarra e se dirige ao quarto de
Luara, no segundo andar; após checar-se de que não há ninguém por perto,
aproxima o ouvido da porta e ouve o que se passa. Sofia, encostada ao vidro que
separa o aposento da sacada, dá um gritinho:
— Nossa!!! Que isso? Nunca vi tanto favelado junto! E estão gritando por sua mãe! Olhe, tem até pipoqueiro no meio… Meu Deus! — impressiona-se, dando uma risadinha. — A coisa é mais louca do que eu imaginava — aponta para uma barraca que havia sido montada no meio da rua —, estão até vendendo camisetas com o rosto dela estampado junto a uma frase que não consigo ler direito.
— Isso é coisa da maluca da Cleide, que transformou aquela
megera em influencer. Deu no que deu, o Lago Sul infestado pelas pragas de
Ceilândia.
— Deixe-me ver o que está escrito… — vai até a sacada,
prende- se nos detalhes da roupa, arregala os olhos, depois recua, fecha o
vidro, puxa a cortina e diz à amiga:
— Sua mãe pode ser o que for, mas que a bicha tem seguidores
fanáticos, disso não tenho dúvida. Sabe o que está escrito? Não vai nem
acreditar!
— Não quero saber! O problema é dela! Se não tivesse dado
ouvidos à maluquete da cozinheira – que de cozinheira não tem nada, porque não
a vejo fritar um bife que seja –, isso não estaria acontecendo. E se não der um
chega pra lá nessa gente, logo a casa será invadida e saqueada — está
contrariada. — Pobre não tem limite, adora fazer-se de amigo íntimo, e não
adianta pedir, põe a mão em tudo, porque não vê com os olhos, mas com as mãos bobas.
E numa dessas, carrega uma taça, um castiçal, um arranjo ou mesmo uma estatueta
de prata. Pra eles que não tem nada, tudo vale uma grana; é o tal do mercado
negro na ativa.
— Cara, é de dar risada, sua mãe foi aceita no BBB.
— De onde tirou esta ideia?
— Está na camiseta que li…
— Deu para mentir agora, Sofia? Como aquela despirocada
seria aceita pelo Boninho?
— Isso já não é da minha conta, mas esta é a torcida organizada dela… Leonor Forever! Acredita? — gargalha. — Em inglês, pra ser mais chique.
— Você só pode estar de brincadeira.
— Pois veja você mesma, querida! Dona Leonor tem um
verdadeiro fã-clube.
Abre a porta da sacada, de onde confirma a informação.
— Caralho! Ela vai estragar meus planos… Como pode? —
retorna ao quarto.
— Que planos, querida? Tornar-se bandida? Você já é! Depois
de tudo que aprontou, ainda se imagina da turma do bem? Só você!
— Cuidado com as palavras…
— Por quê? O que fará? Vai me matar também? — brinca.
— E por que não? — os olhos dela, injetados de ódio, causam
estranheza na amiga, que recua.
— Porra, Luara! Estou apenas brincando, meu! Você leva tudo
ao pé da letra.
— Luara? Luara está morta! — abre um sorriso de uma orelha a
outra.
— Pare com isso!
— Se prestar bem a atenção nas entrelinhas, perceberá que
ela jamais existiu.
— Verdade? Então quem é que está à minha frente? Um espírito
perdido?
— DIANA!
— DI-A-NA??? — pergunta a governanta a si mesma, assustada
com o rumo da conversa. — Do que ela está falando?
— Não acha que está indo longe demais com esta brincadeira?
— continua a amiga. — Seu nome é Luara…
— … Foi! Sinto-me agora a encarnação de Diana, com arco e
flecha em mãos, pronta para abater a primeira caça… E ao acertá-la, quero vê-la
tombar, com a ponta rasgando cada vez mais o coração, até o sangue, ainda
quente, jorrar pelo chão, sem paradeiro — os olhos se perdem no vazio. — É o
que mais desejo! Não vejo a hora! Ainda vão me temer nas ruas. Escreva o que
estou dizendo!
“Meu Deus!!! Quem é este ser???” — Matilde está
completamente horrorizada. “Como podemos ter nos enganado tanto? Dona Beatriz
deve estar se revirando no túmulo” — arfa. “E ela ainda diz ter o desejo de
matar? Não é possível!”
— Você só pode estar louca, Luara! É uma barbaridade atrás da outra, como se o juízo lhe faltasse. Se eu pudesse, a levaria ao psiquiatra. Como pode uma moça de sua estirpe, acostumada a tudo do bom e do melhor, que já viajou o mundo inteiro, interessar-se pelo crime, ter a sanha de um malfeitor, querer matar, ver o derramamento de sangue e se deleitar de tamanha maldade? Acho que já chega, né, amiga? Para tudo há um limite e o seu chegou! Não quero vê-la mofando atrás das grades, apesar de que é isso que aparenta procurar.
— É justamente por ter quase tudo que anseio este mundo tão
misterioso, em que se exige tanta coragem e adrenalina no sangue.
— Quase tudo? E o que lhe faltou? — exige a garota. — Não vá
usar como justificativa a ausência de carinho de sua mãe, não vê que ela não
bate bem, não diz coisa com coisa? Ah, deve ser por conta dos trigêmeos! Você
está cansada de saber…
— Cale a boca! Cale a boca! — ordena aos berros. — Você não
tem o direito de falar sobre aquilo que desconhece.
— E o que seria? Eu praticamente morei nesta casa, sou sua
melhor amiga — pelo menos eu acho —, e compactuei de seus planos mais insanos,
como o de ofertar um teco ao Nicholas, lá na Hedonê, mesmo sabendo que ele se
fartaria da bebida e isso o deixaria completamente fora de si, porque era isso
que almejava, não era? Para que o criminoso pudesse salvá-la, seria necessário
que a visse sofrendo… Coitadinha! — acende um cigarro e dá uma tragada. —
Nicholas poderia estar vivo, mas você tramou tudo, era preciso sacrificá-lo
para que o seu “príncipe bandido” acreditasse que a donzela dele estivesse
mesmo em perigo… Hum! O garoto foi a maior vítima dessa história! Conduzido à
forca sem que lhe dessem qualquer explicação, não teve a oportunidade de se
defender. Não se arrepende?
— Você fala demais! Isso é passado! — ignora a narrativa e,
contrariando qualquer pensamento racional, passa a se despir. — Agora todos
culpam o meu “príncipe bandido” pelo ocorrido. E não bastasse, você mesma, em
um ato de “solidariedade”, confirmou tal história à polícia. Sabe, falso
testemunho também é crime! — debocha.
— Eu… eu fiz isso por você!
— Por mim? Não diga! — ironiza. — Fez isso é por você!
— Você sabe que não… Fiz só por você! Foi um gesto de…
— … Amor? Coitada! — zomba. — Não colo velcro!
— Vo-vo-cê… — balbucia, admirando o corpo da garota, que
ficava nua diante de si — … é de uma maldade que dói na alma.
— Gostou do material? — exibe-se, ao perceber os olhos desejosos de Sofia. — Jamais será seu, imbecil! O que eu gosto, você não tem!
— Isso não pode ser real… — desespera-se Matilde, que se
apoia à porta para não cair, fazendo um barulho, que atrai a atenção das
garotas.
— O que foi isso? Veja o que é! — determina a filha dos Vaz.
— Será que invadiram a casa? Ai que medo! — teme Sofia.
Abrem a porta. Não há ninguém. Matilde havia entrado no
antigo dormitório de Dona Beatriz; ofegante, arrasta-se com dificuldade até a
cama. Não era possível ter ouvido tanta crueldade. Pior que dona Leonor, Luara…
Diana… sabe-se lá quem, era repleta de uma coisa ruim, que germinava no centro
de sua própria alma. Uma criatura monstruosa que se alimenta das dores dos
homens. Dessas que as escrituras contam e que, muitas vezes, em nossa ingênua
desconfiança, acreditamos não passar de histórias inventadas pelos antigos para
que uma turba se mantivesse sob o domínio do medo; na verdade, o que estava
escrito, hoje se revela, e cada vez mais macabro, na forma de uma garota
perversamente frágil, bela, de um sorriso cativante, que ilumina, seduz e MATA…
Quem acreditaria? Nem a própria avó. E isso tudo, agora tinha certeza,
originava-se da mentira que sustentaram a vida toda, para que Leonor pudesse
ter alguém a quem culpar por suas desgraças. Todos daquela família, inclusive
ela, erraram e o preço por tal ato, infelizmente, seria o desajuste da pequena,
que sempre se viu ignorada pela mãe. Está aí o resultado! Criaram um monstro,
que insaciável, buscava no crime a seiva que a completaria. E como impedir? Uma
vez desvirtuada em sua essência pela voracidade da erva daninha, uma planta
ganha novos contornos e apodrece. Seria o caso de Luara?
Longe dali…
Numa fazenda, nos cafundós de Ceilândia, aos pés da Sol
Nascente, Luizinho prepara os últimos detalhes do plano que libertará Álvaro
das garras da polícia, tendo Egídio à sua companhia, bastante contrariado.
— Não entendo o porquê do Português o querer vivo! —
resmunga. — É um filhote de cobra peçonhenta, que deveríamos esmagar até que a
cabeça estourasse; não resgatar, como se fosse um salvador. Pra mim já deu,
esta Família está indo para o ralo ou estamos todos doidos.
— Cale essa boca! — repreende-o. — Ele faz isso para me peitar. Sabe que não tenho escolha: é salvá-lo ou me entregar ao Carrasco. E o pior é que sabe do que Aurora sente pelo canalha, até me chamou de corno. Como pode? Alguém lhe está passando tudo o que acontece em nossa casa, Egídio. Mas quem seria?
— E o senhor ainda tem dúvidas, patrão? — dissimula. — Deve ser o mesmo pilantra! O cara é muito ambicioso e, não duvido nada, se não quiser o seu lugar. Álvaro nunca teve nada, sempre viveu escanteado, com aquela cara de bobo; mas basta conhecer um pouco da história dele para saber que é um dos piores bandidos que já conheci, que trai a cartilha da própria Família – se necessário for – para alcançar os próprios objetivos e um deles, certamente, é o de ser o Patrão de todos nós, com o apoio do Português, que lhe deve conceder algum por fora. Veja, senhor, o lusitano é seu desafeto desde o dia em que pôs a perder aquele assalto em Sousa e esta cigana não lhe desce desde o fracasso em Piracaia, então, é óbvio que irá levá-los à lona, para isso, conta com a ajuda de Álvaro, que muito esperto, controla seu amuleto. É apenas questão de tempo para que o infeliz se torne o novo chefão do crime! Se eu fosse o senhor — envolve-o como uma cobra a sua presa —, começava a colocar ordem na casa, mandando esta vagabunda para o quinto dos infernos… Lembre-se, se não fosse a magia dela – e que magia –, o bandido estaria fedendo a esta hora, devorado pelos vermes. Hum! Nunca vi nada igual, ela travou sua arma e o senhor…
— Tenho de me livrar dela, mas como?
— Ainda gosta daquela piranha?
— Veja como fala de Aurora! — adverte-o com o sangue nos
olhos. — Quem pensa que é para falar assim dela?
— Bem, patrão, até o Português tirou um barato, logo a
bandidagem o chamará também de corno manso, afinal, a mina apronta e o senhor
só lhe dá uns tapinhas? — provoca. — Sei não! É muito perigoso! E se alguém
resolve desafiá-lo? Se amansa para uma putinha, terá coragem de enfrentar um
rival?
— Do que está falando? — não entende.
— Já ouvi dizerem por aí que o senhor não é mais o mesmo,
sabe como é, depois de uma chifrada, está inseguro, incapaz de pegar numa arma
e de meter bala em quem o “sangrou”… Hum! Só estou avisando, melhor dar cabo
logo de quem lhe causa alguma rachadura, a ver toda a casa despencar, não acha?
— Onde está Aurora? — diz, pegando uma arma e conferindo as
balas do estojo.
— No lago, nos fundos da propriedade… Vá, patrão, mire bem na nuca e dispare sem pensar, quando der por conta, a vagabunda já estará no chão, encoberta por uma poça de sangue.
Luizinho sai da casa, enquanto Egídio, rasteiro, acompanha-o à distância, preparando-se para o espetáculo tão aguardado. Enfim, a cigana cairia, para a tristeza de Álvaro, que tanto a estima, e do patrão, que a ama mais do que qualquer outra coisa, apesar de jamais assumir. Com a morte da bruxa, o homem certamente ficaria mais vulnerável, e era com isso que o comparsa contava! E se tudo corresse como desejava, logo seria o novo mandachuva, como lhe havia prometido o Português. Luiz percorre o trajeto de pedras, adentra a um perfumado jardim de rosas brancas, circula o tronco de uma árvore centenária – cuja sombra beija a terra –, até chegar ao lago, que tem um deque e uma canoa com leme à beirada.
Aurora está de cócoras, banhando-se nas águas, enquanto o
sol, faceiro, toca-lhe com desvelo o lindo cabelo encaracolado.
— Você veio… — diz ela, de costas, pressentindo a presença
do inimigo.
Ele não responde, apenas aponta a arma para a cabeça dela,
para a alegria de Egídio, que à espreita, sorri, aguardando a conclusão de seu
plano.
“Isso… Vamos, corno, mate logo esta piranha. É só apertar o
gatilho, nem perceberá quando a bala furar a cabeça dela… São apenas alguns
segundos e estará livre pra sempre desta peste”. — vibra.
— Se vai atirar, que o faça; não o impedirei, meu querido! —
a cigana continuava a se banhar para a estranheza do homem, que mesmo não
admitindo, parecia fraquejar em suas intenções, diante daquela beldade que se
mostrava diante de si.
“Vamos, corno, atire…” — continua o comparsa, impacientando-se.
— O que faz? — pergunta Luizinho.
— Estou preparando-me para minha morte! Ou não foi isso que você veio fazer aqui?
— Hã??? — assusta-se.
— Já disse, não irei impedi-lo, faça o que tenha em mente.
Leva o dedo ao gatilho.
“Isso!” — Egídio sorri. “Chegou a hora”.
A mulher levanta-se bem devagar, enxuga a face delicadamente com as mãos, e quando o encontra, sorri como os anjos, para o desespero de Luizinho, que se arrepia todo, porque atrás dela, iluminada pelo clarão do sol e contornada pelas cores mais vivas da Natureza, havia uma legião; eram homens e mulheres, de todas as idades, cores, tamanhos e gerações, preparados para a guerra. Aurora nunca esteve sozinha. Pôde ter errado em suas decisões; como errou! Mas o tempo se encarrega de curar todas as feridas, de restabelecer as pontes necessárias para que o Bem reencontre o seu trono, no mais alto dos vales, ao lado do Céu, sobre o olhar cuidadoso do Criador.
— Não vai atirar? — desafia, avançando alguns passos,
acompanhada dos seres iluminados.
“Por que ele não atira?” — Egídio não entende, a cada passo
que ela dá, Luizinho recua ainda mais, horrorizado com o que via. “A mulher o
está desafiando! Como pode? A não ser que… puta merda! A bruxa deve estar
evocando algum feitiço! Pois vou dar um jeito nisso já!” — saca de sua pistola
e a aponta para ela; ao apertar o gatilho, a arma torna-se uma serpente, que o
ataca, sem sucesso.
— Não será de mim que este traste receberá o tiro de
misericórdia!
— diz Aurora a si mesma, vendo-o sumir no matagal adjacente,
envolto em seu próprio delírio. — O que é dele está guardado!
— O que… que está acontecendo? — pergunta o patrão,
transtornado. — Essa gente toda… não… não… não é real… que bruxaria é essa?
Aurora… Aurora… mande-os se afastarem! Vamos! Vaaamos!!! — dá outro passo para
trás, tropeça num tronco, cai, enquanto a arma é arremessada a alguns metros. —
Pare!!! Segure essa gente!!! — grita, cerrando os olhos.
— Do que está falando? — indaga a mulher, dando-lhe a mão.
— O sol está a lhe causar confusões.
— Não… não… tem um monte de gente me olhando…
— Monte de gente? Onde? Estamos só nós dois!
— Não! — abre os olhos e não avista ninguém. — Não pode ser!
Como fez isso? Vo-você…
— Não o entendo! — sorri, com ar de superioridade. — Se
puder ser mais claro.
Sem fôlego, o homem segura-se nela, ainda confuso; o que ele
viu era real, pessoas saíam do lago, iluminadas por um feixe de luz, com arco,
flechas, pedras e paus às mãos; se ficasse ali por mais tempo, seria linchado,
disso não tinha dúvida. Aquela cigana havia feito algo… Sentia dentro de si! E
a passos largos retorna ao casarão, esquecendo-se da arma.
Ao pegá-la, Aurora lança-a ao lago, desfazendo-se dela para sempre.
— Patrão — pergunta Ribeiro, um dos criminosos mais
procurados da localidade, vendo-o falando sozinho. — Patrão!
— O que foi??? — berra, vistoriando cada canto, como se
alguém fosse surgir do nada e o atacar.
— Zangado tá na linha… — entrega-lhe o celular.
— Que Zangado?
— O anão da Sol Nascente. Não é com ele que o senhor queria falar?
Na delegacia…
— Delegado? O que faz aqui? — pergunta Clóvis, pegando uma rosquinha bem açucarada de um pacote. — O senhor deveria estar se recuperando.
— Ele é teimoso, oficial! — responde Chiara, segurando-o por
um dos braços. — Não conhece o seu chefe? Mas deixe de comer um pouco e me
ajude aqui, o homem é pesado demais.
Ele a ajuda a colocá-lo na sua cadeira.
— Traga-me Eufrásio.
— Quem? — pergunta o subordinado. — Sei quem é não!
— O motorista dos Vaz. Minutos depois…
— Seu Eufrásio, como é bom reencontrá-lo! A cadeia está lhe
fazendo bem? — é sarcástico.
— Não senhor! — o homem estranha a abordagem.
— E como está seu filho?
— Geraldi… digo, Tiquinho não está bem! Pelo que me
disseram, pede o tempo todo por minha presença, mas o que posso fazer? Preso
nesta gaiola, não o posso visitar, a não ser que o senhor…
— Eu…? Eu o quê?
— Me deixe sair para reencontrá-lo… Será por apenas algumas
horas.
— E o que eu ganho com isso?
— O senhor praticará um bem maior, que é o de permitir que
um
pai reveja seu filho antes da morte. Prometo voltar! — o
descaramento impressiona.
— Posso até pensar nisso, tenho uma viatura aí fora à
disposição; a depender de suas informações, posso permitir que o levem a
Planaltina… É lá que seu filho está, não é?
— Planaltina? Não senhor! Ele está em Nova Gama!
— Uau! Está longe! Mas algo está errado, seu Eufrásio, em
seu depoimento afirmou que o garoto estava em Goiânia… Esqueceu-se?
— Go-Goiânia??? Ah, claro! Que cabeça a minha, meu Deus! É a
preocupação, o senhor nem imagina como estou sofrendo pela ausência do garoto —
os olhos enchem-se de lágrimas.
— De que garoto o senhor está falando? — o semblante de
Enrico é perturbador. — De que garoto, seu Eufrásio? Responda-me!
— De… de… de meu Tiquinho! E de quem mais seria?
— O senhor é um ator nato — aplaude. — Se continuar deste
jeito, passará bons anos na Papuda.
— EEEUUUU??? Por conta de uma simples informação???
— Não! Por encobertar os crimes de uma quadrilha.
— CO-CO-COMO???
— Não existe Tiquinho, muito menos Rodriguinho, Geraldinho,
Paulinho… Minha equipe fez o trabalho direitinho! Veja, Chiara — chama pela
delegada substituta —, até rimou!
— Incrível!!! — ri a mulher.
— Não estou entendendo…
— Não mesmo? Até onde pretende ir com esta mentira?
— O senhor está errado…
— Nossos investigadores estiveram no hospital e não há
entrada de qualquer criança em estado terminal… Em visita à sua residência,
aquela que nos indicou nos autos do inquérito, descobrimos que ninguém morava
lá há anos. O senhor acha que pode nos enganar por quanto tempo mais, seu
Eufrásio?
— Eu… eu…
— Falta a cereja do bolo: sua mulher é falecida e seu filho
caçula tem a minha idade, ou seja, é um homem-feito. Ah, e Tiquinho era o nome
do cachorro que ele tinha quando criança, não é mesmo, rapaz?
— a porta se abre, para o desespero do motorista, que não
consegue respirar.
— Exato! — confirma o filho de Eufrásio, com o neto dele, de
poucos meses, no colo.
— Foi o senhor que teve câncer ou o seu cachorro? Estou
confuso assim como seu pai. Vamos lhe reavivar a memória?
De volta à mansão dos Vaz…
Leonor sai à garagem, quando é ovacionada pela multidão.
— Crendiospai! O povo te ama, dona Leonor! — sorri a cozinheira, levantando o braço dela, para a alegria da galera, que aplaude, ensandecida. — A senhora acredita que eles fizeram uma vaquinha para ajudar com o resgate?
— VA-QUI-NHA??? Que coooisa de pooobre!!! O que não dirão
minhas amiiigas da socialite??? Leonor, musa dos favelados, recebe ajuuuda para
pagar o resgate da própria filha… Opa! — cai em si. — Mas não pagamos o
resgate! Com quem está a graaana arrecadada?
— A… a… grana? — dá um sorrisinho sem graça, ao perceber ter
falado demais. — A grana tá comigo!
— E queeem lhe deu este direeeito? Pois quaaanto eles
arrecadaram??? — exige a mulher.
— Não foi muito, dona Leonor! Deixa quieto! — tenta
desconversar.
— Deixar quieeeto uma pinoia!!! Pois vá falaaando, minha
fiiilha! Do jeito como me amam, deve ser uns trêêês milhões e olhe lá, daí pra
cima, certameeente!
— Sabe, o povo tá com a barriga na miséria — simula um
sofrimento —, mas como sou uma mulher digna, honesta, guardei cada centavo para
lhe dar no momento certo — retira do bolso nove reais e quinze centavos. — Tó!
Guardei com todo o carinho possível!
— O QUÊÊÊÊÊÊ??? Tudo isso???? — pergunta a mulher, num misto
de ironia e revolta. — Pois você e sua Ceilândia estão de sacanaaagem. O valor
do resgate era de quarenta e cinco milhões… E me veeem você com esta mixariiia?
— Dava pra pagar a gasolina do carro que levaria o resgate? — treme.
— Cleeeide, fale-me a verdaaade, quanto esta gente doou? Sei que está mentiiindo! E se eu resolver abrir minha boooca, sei que se sairá muuuito mal.
A fofoqueira fica sem reação.
— Que bagunça é essa? Já chamei a polícia! — anuncia o
general, achegando-se, com os olhos de quem havia acordado. — É uma loucura
atrás da outra, mal consigo curtir minha filha que, graças ao bom Deus,
regressou a esta casa.
— Não se meta, Melanciiia!!! A coooisa aqui é entre Cleeeide
e eu!!! — pega-a pelo braço e a empurra contra um pilar próximo. — Ou vai me
dizer por beeem ou esta gente há de escalpelá-la.
— Do que você está falando, mulher? — não entende o homem.
— Que temos raaatos em casa!
— Ra-ra-tos??? Onde??? Onde??? Cruzes!!! Morro de medo
desses bichos… — diz, aos gritinhos, subindo numa cadeira de área para a
alegria do povo, que mesmo não ouvindo a conversa, gargalha da atitude do
homem.
— VAAAMOS!!! ESTOU ESPERAAANDO!!! QUANTO ESTA GENTE DOOU???
Cleide engole a saliva com dificuldades. No segundo andar…
— Confirmado! Será hoje à noite! — diz Luara, fechando o
último botão do vestido largo, um pouco abaixo do joelho. — Logo estarei de
volta aos braços daquele puto.
— E como farão? — pergunta Sofia.
— A viatura que o levará para a Papuda sairá da delegacia às
22h e será escoltada por outras duas equipes…
— Então…? Será muito difícil resgatá-lo!
— A não ser que ecloda uma guerra do tráfico na Sol Nascente
pouco antes, pondo em risco toda a capital do país.
— LU-A-RA!!! Isso é…
— MA-RA-VI-LHO-SO!!! — gargalha. — Ele cumpriu com o que me
prometeu!
— Ele??? Ele quem???

com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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