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A Deusa Bandida: Capítulo 25

Novela de Carlos Mota
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A DEUSA BANDIDA - CAPÍTULO 25

— No que foi que o senhor se meteu, seu Eufrásio? — inquire Enrico, veementemente, com uma caneta dançando entre os dedos. — Diga-nos! A verdade é libertadora! Vamos! Se não for pelo senhor, que o faça pelos seus; veja o quanto também sofrem!

— Pai, fale, não tenha medo; sei que está envolvido com coisas muito erradas, não precisa ser nenhum expert no assunto para saber que isso iria acontecer… Quantas vezes a mamãe não o alertou? Preferiu ignorá-la a tentar se curar, não é? — ajeita a criança, que dorme, no ombro.

— Qual parte da história eu perdi? — pergunta o delegado, com os olhos astutos correndo-o da cabeça aos pés. — Cura? Não entendi! Do que está falando? Aproveitando, qual é mesmo o seu nome, rapaz? O verdadeiro, por favor, porque já ouvi de tudo!

— Pode me chamar de Pedro, doutor! — responde o jovem de olhos e cabelos castanhos, barba aparada, bem-vestido, com mais de 1,80 de altura.

— Não fale nada, meu filho! Fique quieto! — pede o homem, envergonhado, encolhendo-se na cadeira.

— Vou falar sim, o delegado tem que saber que o senhor nunca teve uma vida digna.

— Não fale nada, é coisa nossa! — insiste.

— Senhor, meu pai… — enche o peito de ar e o libera num misto de raiva e decepção — … ele… ele… é viciado em jogo; por um truco, um pôquer, um blackjack ou mesmo uma roleta, é capaz de vender toda a família. Minha mãe lutou para que se libertasse, fez até promessa, não teve jeito, empenhou tudo o que tínhamos, ainda que isso custasse a destruição de todos que tanto o amavam. E não foi só!

— Pare, Pedro! — enfurece, elevando a voz. — Eu estou mandando! Ouviu?

— E quem é o senhor para mandar em alguma coisa? — os olhos marejam. — Não bastasse o desejo louco pela aposta, deitava-se com todas as mulheres que via pela frente, como se a labareda da libertinagem o consumisse por dentro e nunca encontrasse um paradeiro. Coitada da mãe que o aguardava até tarde da noite, pensando que um acidente houvesse ocorrido. Salafrário da pior espécie, perdia-se nos braços das putas, a quem entregava todo o salário do mês, sem pensar nos filhos e na esposa, que dependiam de favores alheios para sobreviverem! — revolta-se. — Por mim, morreria na cadeia!

— NÃO FALE ASSIM COMIGO, SOU SEU PAI!!! SEU PAI!!! ENTENDEU? POR PIOR QUE FOSSE, NUNCA LHE NEGUEI AMOR! — tenta se justificar.

— Fale baixo, seu neto está dormindo! — repreende-o, tapando os ouvidos da criança. — E quem sobrevive só de AMOR, pai? Se não fosse a mãe, estaríamos hoje catando lixo para sobreviver, porque o senhor, com o dinheiro que ganhava, passava a noite – quando deveria estar com a família – na mesa de carteado, vendendo a própria alma ao capeta, ou se roçando na cama de alguma rapariga. Não tem vergonha? Deveria! Pois é o que sinto do senhor… VERGONHA! E se chegou aonde está, é porque mereceu.

— Acalme-se! — pede Chiara, ao perceber que a exaltação dele acordaria a criança. — Já sabemos que seu pai lhe faltou, daí a estar envolvido em crimes mais graves há uma enorme distância.

— Onde estão os seus outros irmãos? — indaga o delegado.

— Cada um tem sua família, mas todos querem estar longe deste… deste… — a palavra parece não querer sair — … deste traste.

— Veja como fala comigo, seu moleque atrevido!!! — perde a paciência, levantando-se para agredi-lo; só não o faz por Clóvis o contém, arremessando-o de volta à cadeira. — Mereço respeito!

— Se merecesse mesmo, não estaria preso.

As palavras mexem com o homem, que se revolta contra si mesmo:

— Você tem razão, não presto! E eu era quem deveria ter morrido, não sua mãe! Sei que errei, mas o que posso fazer? Sou doente!

— Sem-vergonhice agora tem outro nome! — ironiza o filho.

— Você não sabe o que está dizendo, quando pequeno, ao pegar um baralho nas mãos pela primeira vez, senti que uma coisa dentro de mim havia mudado, não sei explicar bem o que é, mas por um momento era como se o mundo estivesse sob meus pés e eu fosse o seu dono, o seu ÚNICO dono! Que maravilha! A sensação de prazer era inquietante, enchia a alma e a tornava cada vez mais refém de uma outra dose de tensão, que só as apostas eram capazes de me oferecer. E cada vez mais dependente, eu apostava, apostava e apostava, sem perceber a porcaria que estava fazendo, porque, pra mim, o que mais importava era sentir outra vez aquela sensação de poder que só vinha quando eu batia na mesa e gritava truco ou quando a bolinha, naquela roleta que girava insana, parava no número que eu havia deixado toda a grana da comida do mês. É desesperador? Sim! Mas não consigo me controlar. Entenda, quando o jogo começa, esqueço-me de comer, de beber, de voltar para casa, de cuidar dos que me amam; é uma sina miserável, um castigo dos Céus! Se eu pudesse apagar tudo e voltar no tempo, é certo que eu estaria ao lado de vocês, não com uma biscate no colo e um baralho nas mãos. Estou errado, eu sei, mas não há como reparar o que fiz, a não ser me desculpando.

— E quantas vezes se desculpou antes? É um mentiroso compulsivo! Pô, tudo bem que o jogo lhe é uma cruz, mas as vagabundas também? Responda!

— Elas me instigavam… como se uma droga necessitasse da outra para que a “felicidade” estivesse completa!

— Cara de pau! — indigna-se. — O senhor não muda!

— Eu quero mudar desta vez, acredite em mim!

— Quer mesmo? Então que faça o certo uma vez na vida e diga a estes agentes o que de fato aprontou, porque Tiquinho, ao contrário do que contou, jamais foi um filho seu; era o meu cachorro, que se perdeu no mundo ao cair do caminhão, durante nossa última mudança. Sabe — limpa as lágrimas —, eu não queria dizer, mas é preciso… Todo filho tem orgulho de seu pai; comigo é o oposto, morro de vergonha. Vergonha de que surjam em minha casa e tomem o que temos, como fizeram com a mãe ainda viva. Foi humilhante demais! Todos os vizinhos assistindo ao choro dela ao lhe confiscarem a tevê, o fogão, a geladeira, o ferro de passar roupas enquanto o senhor, sem qualquer remorso, entregava-se a um copo de cachaça no boteco da rua de cima, onde sempre fazia uma fezinha no jogo do bicho.

— O que queria que eu fizesse? Sou doente… DOENTE!!! Já lhe disse! — reitera, irado.

Enrico e Chiara assistem ao embate em silêncio; é preciso saber até onde cada um seria capaz de ir para defender o seu lado.

— Dê o menino! — pede a esposa de Pedro, entrando na sala, após ouvir o descontrole do sogro. — Ele não merece o avô que tem!

— E quem é você para falar alguma coisa? — diz, sendo ignorado pela mulher, que lhe dá as costas. — Vá cuidar de seu pai alcoólatra.

— É o sujo falando do mal-lavado! Pelo menos ele lutou contra o vício, foi para a igreja e está são há quase três anos. E o senhor? Responda! — cobra, com os olhos sobressaltados. — Hum! Tome vergonha nesta cara, homem, e pelo menos uma vez na vida, haja como tal. Não é possível que mesmo de algema, ainda tenha a proeza de ofender quem apenas lhe quer bem. Sou seu filho, mas quem vê de longe, acha que sou o pai; as figuras estão invertidas aqui, porque quem deveria olhar por nós, está sentado em uma cadeira de madeira, diante do delegado, com os pulsos presos, com mentiras escapulindo por todos os poros. Se alguém de meu emprego souber, tenho até medo, vão me mandar para a rua… Quem, nos dias de hoje, quer empregar o filho de um presidiário? Quem? Quem, pai? Responda!

O homem se cala.

— O senhor faz o quê da vida? — Enrico está repleto de curiosidade, afinal, o jovem é bem articulado.

— Sou consultor de marketing.

— Por isso se expressa de modo tão preciso! — completa Chiara.

— Que eu ajudei a pagar… — diz Eufrásio.

— Mentiroso! Se hoje sou alguém, é devido ao suor derramado de minha mãe. Não disse — fita as autoridades —, é um mentiroso contumaz — está inconsolável. — E ela morreu por sua culpa! Isso não vou perdoar jamais. Jamais!

— Como assim? — indaga o delegado.

— Depois que o flagrou sem roupa, bebido até o último fio de cabelo, em meio a putaiada, pegou todos nós e embrenhou-se pelas casas dos parentes, à procura de abrigo. O único que nos estendeu as mãos era ainda mais pobre. Ficamos todos em um barraco com apenas um quarto e um banheiro, mas firme em seu propósito, ela não falhou, foi à guerra, era preciso sustentar suas crias, enquanto o senhor — volta-se para o pai — só percebeu nossa falta quase uma semana depois. Já era tarde. A mãe não voltou atrás. E enquanto estudávamos, ela trabalhava mais de doze horas por dia para nos dar o que comer… E pensa que isso mexeu com o senhor? O choro e as promessas de mudanças dos primeiros dias logo se perderam nas curvas de alguma sirigaita ou na mesa de algum cassino clandestino. Mas a desgraça ainda era pouca, né? Devendo mais do que nunca, os caras procuraram a mãe e lhe tomaram todo o dinheiro; que ficassem por aí. Mas não, era preciso dar o recado de que se o senhor permanecesse insistindo no erro, alguém pagaria com a própria vida. E foi o que fizeram. Bateram tanto nela, mas tanto, que quando a encontraram, não a reconheceram. E só conseguiram graças ao anelzinho de prata que carregava no dedo com o nome dos três filhos gravados — emociona-se.

— Acalme-se! — pede Chiara, comovida com a história. — Quer um copo d’água?

— Não precisa, doutora! Não precisa!

— Tenha calma, você tem um filho para criar e ele chora lá fora… Está ouvindo?

— Chora de vergonha, assim como chorei tantas vezes — limpa as lágrimas. — Os senhores me desculpem, mas eu queria reencontrar meu pai de outra forma, em outro lugar, talvez numa casinha bem simples, com todos os filhos sentados à mesa, rindo da vida…

— Tome! — Clóvis lhe entrega a água.

— Então, seu Eufrásio, está na hora de mudar, não acha? A vida lhe dá outra chance, é pegar ou largar — diz Enrico, também mexido.

— Eu quero morrer! — responde, numa voz quase inaudível, para a revolta do filho, que não perde a oportunidade.

— MORRER??? É ISSO MESMO QUE OUVI??? ISSO NÃO É UM CASTIGO; É UM PRESENTE DE DEUS!!!

— E o que quer que eu… eu… diga??? Não valho nada!!! Sou um bosta, moleque!

— Disso não tenha dúvida, mas apesar disso, é meu pai!!! E ninguém escolhe o pai que tem. E se pudesse, certamente, o senhor não seria o meu!

As palavras, arremessadas com tamanha mágoa, esfacelam o coração do motorista, que cabisbaixo, derruba a primeira lágrima, para o estremecimento do rapaz, que se segura, porque, diferentemente do que dizia, no fundo o amava… Era um amor franzino, machucado, cheio de cicatrizes, cambaleante, mas era Amor. E como se explicava isso? Não sabia! Apenas sentia e isso o manteria conectado ao homem até que o laço da vida se rompesse.

— Eu também tenho vergonha de quem sou, de quem fui; nunca fiz nada de caso pensado! Se houver uma forma de reparar os meus erros, que fale.

— Diga a verdade pelo menos uma vez! — os olhos gritam de esperança. — Assim como meus irmãos, a mãe – onde quer que esteja e que tanto o amou – e eu sentiremos um pouco de paz.

Eufrásio levanta a cabeça e ao encontrar o semblante sereno do filho, toma a decisão que daria início ao desenrolar de uma trama, cujo tecido, apesar de puído, mostrava-se resistente, impedindo que a Justiça identificasse e prendesse os verdadeiros mandantes.

— O senhor afirmou que dona Luara não presta. O que quis dizer? — interpela o delegado, analisando meticulosamente cada movimento dele. — Ela está envolvida com o próprio sequestro, não é isso?

O motorista engasga-se com a saliva. De volta à mansão dos Vaz…

— Português? Que Português? Todos que nascem em Portugal são portugueses. Não entendo! — pergunta Sofia, intrigada.

— É o homem mais gentil que já conheci, de uma inteligência peculiar, que tentou me levar para a cama, mas não obteve êxito, até porque, só me deito com aqueles que podem me despertar algum interesse carnal e o velho não se enquadra nesta lista.

— Ele é um idoso? — cai na risada. — Você de casinho com um “vovô”? Essa eu pagaria pra ver.

— Qual parte não entendeu do que eu disse? — está contrariada.

— Não sou cuidadora, querida! Só me entrego a quem me acelera o coração, me faz tremer a base, perder o chão e salivar de desejo como uma fera diante de um suculento pedaço de carne em que se possa enfiar os dentes e devorar até o último fiapo.

— Tá! Tá bom! Se você diz… — franze a testa, desconfiada…

— Então o que prometeu a este homem para que ele ofertasse apoio aos seus planos? Apenas amizade?

— O que ele mais deseja.

— E NÃO SERIA VOCÊ?

— Óbvio!

— Mas não acabou de dizer que não é “cuidadora”? Não te entendo! Que loucura, meu!

— Oferecer, até posso; cumprir, já é outra coisa.

— Pô, tá maluca, e se o cara resolve ter um acerto de contas com você? — preocupa-se. — Mas vamos por parte – está cada vez mais confusa –, como o conheceu? Fale! Não me esconda nada!

— Curiosa! — diante de um espelho oval, à direita da cama, um pouco antes do closet, passa nos lábios um batom vermelho da cor do sangue. — Vou lhe contar tudo… — dá um sorrisinho sarcástico. — Ao chegar ao Aeroporto de Lisboa, lá estava o entojado do Tomás, o namorado de um conhecido meu, esperando-me, com aquela vestimenta horrenda, de cores berrantes. Não havia quem não nos notasse. Que horror! Se vergonha matasse, eu estaria debaixo da terra. Fomos em direção ao estacionamento, entramos no carro, passamos pela cancela e percorremos as belas avenidas da Capital. Foi quando ele me alertou de que um carro luxuoso nos acompanhava desde a saída do aeroporto. Virei-me para ver e, de cara, reconheci o motorista. Era um velho!

— Como assim? E o que ele queria?

— No mesmo voo em que eu estava, percebi que um senhor distinto, em um terno sob medida, tomando uma dose de whisky com duas ou três pedras de gelo, ao som de uma melodia local, me observava. Não dei moral, até porque, quem gosta de “cacaria” é casa de repouso ou cemitério. Pois, acredite se quiser, era ele. Foi eu bater o olho e reconhecer.

— Que capacidade de observação… Gostei! Mas, e daí?

— Pedi que parasse o carro, mas Tomás teve medo, podia ser um desses malucos que gostam de violentar mocinhas frágeis como eu, dizia ele — caçoa. — Só faltava eu ser atacada em terras camonianas e logo pelo “irmão do Noé”… Que luxo! Zombei com gosto, para a ira do cara, que afetado ao extremo – você sabe como bicha é, não sabe? –, falou-me um monte de bobagens antes de fazer o que eu havia mandado. O homem também o fez. Assim, estava um carro ao lado do outro. Então ele abriu a porta, ajeitou a roupa e os cabelos, conferiu o bafo e se aproximou bem devagar; tinha o gesto de um nobre! Confesso! Por um momento, senti uma atração, o cara tinha uma coisa esquisita, enigmática, não sei explicar; como princesinha do papai, mantive a personagem. Até que ele chegou à janela, bateu no vidro e fez sinal para que eu o abaixasse; ainda que contrariando os olhares amedrontados da gazela, o fiz. Ele me cumprimentou com aquela voz forte, rouca, num sotaque nativo encantador, apesar de seu português ser bem próximo do brasileiro… E sabe o que ele queria, minha filha?

— Continue — pede a garota, deitada na cama, com a cabeça apoiada às duas mãos. — Na certa queria lhe passar o rodo…

— Até imaginei! Mas, naquele momento, depois de ter nos seguido, o que mais desejava era apenas me devolver o celular, que havia caído durante o trajeto compreendido entre a aeronave e a Imigração.

— E você acreditou nisso? Certamente o cara lhe furtou o celular e forjou toda esta cena. O bicho é esperto! O que não é capaz de fazer por uma foda?

— Aí que se engana — o sorriso vai de um canto ao outro da orelha —, estou sempre um passo à frente em tudo, quem deixou o celular cair fui eu.

— Você armou para o Matusalém?

— O que acha? — ironiza. — De santa não tenho nem o nome.

— Mas… mas… por quê?

— Dentro da aeronave, como o velho não tirava os olhos de mim, um passageiro que estava ao meu lado, um desses fofoqueiros de plantão que gosta de cuidar da vida alheia, disse-me que eu havia conquistado a atenção de um dos varões mais concorridos da terrinha.

— Não pode ser! O cara deve ter sido pago para dizer isso a você!

— Até pensei nisso, não fosse por um detalhe…

— Qual?

— Ele estava com uma Bíblia nas mãos…

— E…? Estes são os piores, pregam a palavra de Deus pela frente e metem o garfo por trás. Não acredito que caiu neste papinho furado.

— Posso ser leiga em escrituras, mas de uma coisa eu entendo bem… Sei fisgar um bom partido como ninguém!

— Hã?

— Devolvi o olhar, desta vez, profundamente sedutor, a ponto de o homem perder o fôlego. Ou eu mantinha o controle da situação ou ele morreria de infarto…

— Como assim?

— Ele não me desejava? Então, abaixei a alça da blusinha e deslizei a mão sobre os seios, insinuando um desejo desenfreado. Ele ficou vermelho! — ri. — Pensei que teria um ataque cardíaco, pois o material é de primeira.

— Mas o que pretendia com tudo isso?

— Ter o velho na palma de minha mão.

— Juro que não entendo!

— O velho era podre de rico, mas segundo o fofoqueiro, também desfrutava de uma fama terrível. Era acusado de estelionato, corrupção política, além de mandante de muitas mortes misteriosas em terras lusitanas. Apesar dos esforços das autoridades policiais, nada foi provado contra ele. Uma figura mítica, desejada e temida pela elite, maltratada pelos editoriais dos periódicos mais respeitados e aplaudida nos saraus entediantes da alta sociedade portuguesa. A farsa de sempre, como se no Brasil fosse diferente.

— Tá… adiante-se!

— Ele me convidou para sair, como imaginei, e chamou-me – imagine você –, de DEUSA! Eu, deusa? Estou mais para Demônio… — diz, eufórica.

— Ah, isso está mesmo…

— Mas tudo tem seu preço, o cara devorava cultura assim como quem engole um naco de carne, e me levava a muito lugares ecléticos, chatos pra burro! E o pior, tive de fingir que também estava a fim. Porra! E quem quer saber da história de José Saramago? Pois estive na Casa dos Bicos, uma espécie de Museu, na zona ribeirinha, que fica, imagine, na Rua dos Bacalhoeiros… Me segurava para não rir do imbecil! Ele, achando que eu realmente apreciava toda aquela merda, contou-me toda a vida e a obra do infeliz, inclusive que seu livro, uma coisa chamada Ensaio sobre a Cegueira – que tédio –, terminou nas telas do cinema mundial. E sabe qual é a moral do filme? “Dentro do caos instituído pela cegueira, o indivíduo se revela insensível diante dos problemas alheios, ficando cada vez mais egoísta…” — dizia ele, esfuziante, como se eu estivesse interessada em papo de cego. Pra mim, um gato cagando e um monte de cego junto é a mesma coisa — inconforma-se. — E não parou por aí, depois me levou ao Castelo de Óbidos¹…

— Castelo de quê…? “Óbitos”?

— Mas a bicha é burra! Óbidos, minha filha, que significa cidade fortificada. Quando a gente pensa que você vai ganhar mais miolos, é só decepção, hein, dona Sofia? É assim que quer me conquistar? Com essa ignorância toda jamais botará as mãos sobre esta beldade — despreza, vendo-a irritar-se pelo reflexo do espelho. — Vá estudar um pouco! Quem sabe um dia, quando todos os homens sumirem da terra, eu lhe dê uma chance, porque já disse, de velcro eu não entendo. Cruzes! Dá até nojo!

— Pare, Luara!!!

— QUANTAS VEZES EU JÁ LHE DISSE QUE LUARA MORREU? EU SOU DIANA, DI-A-NA, ENTENDEU? DIANA!

— Tenho dó de você… — abaixa a cabeça.

— DÓ? E QUEM PENSA QUE É PARA ME DIZER TAL DESATINO? ENXERGUE-SE PRIMEIRO, SAPATÃO!

— Eu mereço respeito! — os olhos enchem-se de lágrimas. — Não tenho culpa de te amar…

— E eu muito menos! Por mim, o Português lhe passava fogo e entregava seus restos aos canibais da Amazônia — termina de se maquiar.

— Está cada vez mais parecida com sua mãe, dizendo coisas sem sentido…

— Não me compare com aquela doente! — vira-se para Sofia.

— Me desculpe! — o amor que sente por Luara a sufoca, fazendo-a se humilhar. — Continue a história, por favor!

— Nem sei se quero mais… — aproxima-se, transtornada com a comparação. — Você é um verme, sabia? Não sei como ainda a aturo!

— Me desculpe! Me desculpe! Não quero perder sua amizade! Por favor! — beija-lhe as costas das mãos.

— Assim está melhor! — diz, recolhendo-as e as limpando na roupa, como se tivesse nojo. — Bem melhor! Então… o tal castelo serviu como fortaleza para proteger a região durante as inúmeras batalhas medievais, acho que é isso. Imagine, está localizado em um penhasco, foi construído em estilo gótico, românico e, atualmente abriga um hotel. Andei que nem uma “camela” com aquele imbecil, porque tudo queria me explicar. Aff! Poderia estar na praia, me exibindo para os machos, mas não, atentada que sou e fiel aos meus objetivos, preferi a companhia de um retardado recheado de grana que adora mitologia romana, músicas clássicas – credo! –, literatura brega e religião. É uma coleção de mau gosto pra ninguém botar defeito. Acredita que passei uma parte da tarde ouvindo Ária na Corda Sol, de Bach²? Não é pra morrer? Aquela coisa medonha me embrulhou o estômago, a ponto de eu ir ao banheiro e vomitar todo o arroz de pato que havia comido…

— Mas pelo jeito aprendeu alguma coisa boa, a história de Óbido foi interessante! — provoca.

— Eu te conheço, naja! É bom parar com essa ironia, antes que eu lhe parta os dentes!

— Não está mais aqui quem falou!

— Acho bom! E para terminar com chave de ouro, me levou para Fátima. E lá estava eu, diante de uma estátua de barro, fingindo acreditar em toda aquela mentirada regada a dízimos e ofertas de um bando de carolas, que carregava velas enormes, acesas, de joelhos, pagando pelos ditos milagres. Olha, só não abandonei tudo porque aquele velho era a minha salvação, sabia que ele poderia me ajudar; apesar de tão carismático, tinha um coração selvagem e, às vezes, deixava transparecer todo o seu mal. Eu mesma o ouvi dando ordem para que matassem alguém… Não foi apenas uma vez, mas várias, e sempre usava frases de efeito, conectadas à História ou à Bíblia, como se sentisse prazer em humilhar os mais frágeis com o conhecimento que fazia questão de exibir. Mas, de uma coisa ele tem razão, quem conhece o livro sagrado, domina o mundo! Quando me disse isso, não entendi; agora, depois do que vi no Brasil, com aquele bando de loucos orando para um pneu e pedindo intervenção militar, do que mais duvidar? Aff!

— E mesmo sabendo do que o cara era capaz, ainda permaneceu ao lado dele? Veja, você não está bem, é como se procurasse morrer um pouquinho por dia com as loucuras que pratica…

— Não entendi!

— Lu… digo, Diana, você não pratica – por incrível que pareça – mal apenas aos outros, mas também a si mesma, porque, em algum momento, talvez no silêncio da noite, com a cabeça deitada no travesseiro, um remorso lhe bate, sufocando seus pensamentos…

— Você não me conhece! — diz, com os olhos agigantados e injetados de cólera. — Eu não sou tão fraca assim!

— E desde quando sentir remorso ou arrependimento é sinal de fraqueza? No mínimo, de nobreza.

— Meus Deus! — aplaude. — Falei tanto de igreja que acabou convertida. Idiota! Como diz o Português, o que seria de nós se não existissem os tolos?

— Português! Hum! E qual o verdadeiro nome deste “homem de bem”?

Ela não responde.

— Não sabe ou não quer falar?

— Isso não importa!

— Sei! E como acabou tudo isso? Fale!

— Levou-me à noite a um clube de swing. De dia um puritano para ninguém colocar defeito; de noite, um formidável devorador de almas. Com um copo de whisky nas mãos, veio para cima de mim, naquele pequeno quartinho, com uma parede de vidro, em que era possível acompanhar duas vagabundas se lamberem. Rejeitei-o uma, duas e na terceira vez o estapeei. O homem me pegou pelo pescoço e só não o estrangulou porque o enfrentei, com os olhos reluzindo o ódio que havia dentro de mim. Soltou-me, peguei a bolsa e me fui… ele veio atrás que nem um cachorrinho sem dono, implorando perdão. Peguei o táxi e desapareci dali. Então endoideceu e, nas duas semanas seguintes, inundou o apartamento de meu conhecido e do namorado insuportável dele com centenas de milhares de buquês de rosas, de todas as cores, tamanhos e aromas. Ele me queria, era certo! E sua deusa, como gostava de dizer, era mais caro do que imaginava e para adentrar ao seu trono, além de flores, teria de renunciar a própria arrogância e servir-se como um cordeiro. Até porque, uma deusa não se sacia apenas com oferendas, é necessário sacrifício! E qual foi o meu preço? Que atendesse aos meus caprichos. Hum! Então fui morar na casa dele, após tanto implorar, com a condição de que não me tocasse, porque se realmente me quisesse, seria quando eu permitisse. Era isso ou dar o fora, assim como faço com você, Sofia! Quer-me? Sonhe! Sou de todos e não sou de ninguém! — espezinha, gargalhando. — Bastaram alguns dias para que eu descobrisse que ele era realmente o criminoso que diziam. Sobre seu comando há uma extensa rede de larápios, apoiada por políticos de todas as esferas e empresários de todos os ramos, que se vendem de heróis durante o dia e agem como anjos da morte à noite. E a partir daí, eis que fiz minha morada. O sequestro foi apenas um dos primeiros caprichos…

— Ué? E teve outro?

— Claro! Apagar o Tomás.

— O QUÊ? VOCÊ MANDOU MATAR O CARA? — horroriza-se com a revelação. — E POR QUÊ?

— O bicha, além de me provocar, ainda tentou pôr meu amigo contra mim — diz, sem qualquer tipo de arrependimento. — Acabou com a boca cheia de formiga.

— Meu Deus! Estou com medo de você!

— É bom ficar mesmo — ri.

— Bem, se ele é tudo isso que realmente diz, não parece ter sido fácil demais descobrir a sua outra face? Talvez ele tenha deixado você enxergar apenas o que quisesse mostrar… O cara é perigoso! Comprou os seus sonhos, bastam agora o corpo e a alma…

— O que quer dizer?

— Que ele virá atrás de você e não terá como escapar. Ou se entrega ou morre. Ele não ficará no prejuízo.

— Antes eu o MATO! — sentencia, com uma determinação de arrepiar.

— LEONOR!!! LEONOR!!! LEONOR!!! — a gritaria do lado de fora interrompe a conversa.

— Aquela louca ainda não mandou os favelados picarem a mula? — pergunta Luara, incomodada, aproximando-se da janela. — O que é isso? A polícia entrou em confronto com a gentalha — dá uma risada insana. — Veja, tem até cachorro mordendo os agentes. Meu Deus! Como me divirto! Além de pobres, são burros!

— Peça para irem embora, Leonor! Vamos! Eles só atendem você! — solicita Martim, no andar debaixo, assustado com a violência.

— Só chamei a autoridade para que os dispersasse, não para espancá- los! Faça alguma coisa, mulher, são seus seguidores.

— É, dona Leonor, Ceilândia está aqui em peso, tem na senhora a esperança de uma vida melhor.

— Não sou saaanta para fazer milagres, minha fiiilha!!! Se pensa que vai me escapar, Cleeeide, está muuuito enganada! Pois diga! Onde está a graaana dessa gente???

— Mulher, alguém vai morrer aqui!!! — alerta o general, vendo a multidão enfrentar a Força com pedras e tijolos roubados de uma construção, nas proximidades. — Faça alguma coisa! Eles estão fora de controle!

— Verdade, dona Leonor!!! Olha, a coisa tá fedendo!!! — Cleide tenta distrai-la, mas a mulher está obcecada, quer respostas às suas indagações.

— A única coisa que vai feder aqui será sua fuuuça se não me disser a verdade. Vamos, Cleeeide, responda, onde está a doação deles???

A empregada, sem saída, simula uma crise de choro.

— Dona Leonor, aconteceu uma tragédia, o dinheiro sumiu!!! SUMIIIU!!! — e chora. — Meu Deus!!! Não sei como isso pôde ter acontecido!!! 

_____________

1. O Castelo de Óbidos localiza-se na freguesia de Santa Maria, São Pedro e Sobral da Lagoa, vila e município de Óbidos, no distrito de Leiria. Está classificado como monumento nacional desde 1910. Atribui-se ao castelo origem romana. Foi posteriormente fortificação sob o domínio árabe. Depois de conquistado pelos cristãos (1148) foi várias vezes reparado e ampliado. No reinado de D. Manuel I, o seu alcaide manda construir um paço e alterar algumas partes do castelo.

2. Johann Sebastian Bach (1685-1750) foi um músico, compositor e organista alemão. Considerado um dos mais importantes artistas da história da música, faz parte da tríade dos maiores músicos eruditos ao lado de Beethoven e Mozart.

autor
Carlos Mota

com ilustrações de
Andrea Mota
 
elenco
Luara
Álvaro
Aurora
Diana
Martim Vaz
Leonor Moreira Vaz
Beatriz Vaz
Matilde
Cleide
Eufrásio
Sofia
Luizinho como Patrão e Camaleão
Egídio
Enrico
Português

trilha sonora
Immortal - Thomas Bergensen
 
produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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