— No que foi que o senhor se
meteu, seu Eufrásio? — inquire Enrico, veementemente, com uma caneta dançando entre
os dedos. — Diga-nos! A verdade é libertadora! Vamos! Se não for pelo senhor,
que o faça pelos seus; veja o quanto também sofrem!
— Pai, fale, não tenha medo; sei
que está envolvido com coisas muito erradas, não precisa ser nenhum expert no
assunto para saber que isso iria acontecer… Quantas vezes a mamãe não o
alertou? Preferiu ignorá-la a tentar se curar, não é? — ajeita a criança, que
dorme, no ombro.
— Qual parte da história eu
perdi? — pergunta o delegado, com os olhos astutos correndo-o da cabeça aos
pés. — Cura? Não entendi! Do que está falando? Aproveitando, qual é mesmo o seu
nome, rapaz? O verdadeiro, por favor, porque já ouvi de tudo!
— Pode me chamar de Pedro,
doutor! — responde o jovem de olhos e cabelos castanhos, barba aparada,
bem-vestido, com mais de 1,80 de altura.
— Não fale nada, meu filho! Fique
quieto! — pede o homem, envergonhado, encolhendo-se na cadeira.
— Vou falar sim, o delegado tem
que saber que o senhor nunca teve uma vida digna.
— Não fale nada, é coisa nossa! —
insiste.
— Senhor, meu pai… — enche o
peito de ar e o libera num misto de raiva e decepção — … ele… ele… é viciado em
jogo; por um truco, um pôquer, um blackjack ou mesmo uma roleta, é capaz de
vender toda a família. Minha mãe lutou para que se libertasse, fez até
promessa, não teve jeito, empenhou tudo o que tínhamos, ainda que isso custasse
a destruição de todos que tanto o amavam. E não foi só!
— Pare, Pedro! — enfurece,
elevando a voz. — Eu estou mandando! Ouviu?
— E quem é o senhor para mandar
em alguma coisa? — os olhos marejam. — Não bastasse o desejo louco pela aposta,
deitava-se com todas as mulheres que via pela frente, como se a labareda da
libertinagem o consumisse por dentro e nunca encontrasse um paradeiro. Coitada
da mãe que o aguardava até tarde da noite, pensando que um acidente houvesse
ocorrido. Salafrário da pior espécie, perdia-se nos braços das putas, a quem
entregava todo o salário do mês, sem pensar nos filhos e na esposa, que dependiam
de favores alheios para sobreviverem! — revolta-se. — Por mim, morreria na
cadeia!
— NÃO FALE ASSIM COMIGO, SOU SEU
PAI!!! SEU PAI!!! ENTENDEU? POR PIOR QUE FOSSE, NUNCA LHE NEGUEI AMOR! — tenta
se justificar.
— Fale baixo, seu neto está
dormindo! — repreende-o, tapando os ouvidos da criança. — E quem sobrevive só
de AMOR, pai? Se não fosse a mãe, estaríamos hoje catando lixo para sobreviver,
porque o senhor, com o dinheiro que ganhava, passava a noite – quando deveria
estar com a família – na mesa de carteado, vendendo a própria alma ao capeta,
ou se roçando na cama de alguma rapariga. Não tem vergonha? Deveria! Pois é o
que sinto do senhor… VERGONHA! E se chegou aonde está, é porque mereceu.
— Acalme-se! — pede Chiara, ao
perceber que a exaltação dele acordaria a criança. — Já sabemos que seu pai lhe
faltou, daí a estar envolvido em crimes mais graves há uma enorme distância.
— Onde estão os seus outros
irmãos? — indaga o delegado.
— Cada um tem sua família, mas
todos querem estar longe deste… deste… — a palavra parece não querer sair — …
deste traste.
— Veja como fala comigo, seu
moleque atrevido!!! — perde a paciência, levantando-se para agredi-lo; só não o
faz por Clóvis o contém, arremessando-o de volta à cadeira. — Mereço respeito!
— Se merecesse mesmo, não estaria
preso.
As palavras mexem com o homem,
que se revolta contra si mesmo:
— Você tem razão, não presto! E
eu era quem deveria ter morrido, não sua mãe! Sei que errei, mas o que posso
fazer? Sou doente!
— Sem-vergonhice agora tem outro
nome! — ironiza o filho.
— Você não sabe o que está
dizendo, quando pequeno, ao pegar um baralho nas mãos pela primeira vez, senti
que uma coisa dentro de mim havia mudado, não sei explicar bem o que é, mas por
um momento era como se o mundo estivesse sob meus pés e eu fosse o seu dono, o
seu ÚNICO dono! Que maravilha! A sensação de prazer era inquietante, enchia a
alma e a tornava cada vez mais refém de uma outra dose de tensão, que só as
apostas eram capazes de me oferecer. E cada vez mais dependente, eu apostava,
apostava e apostava, sem perceber a porcaria que estava fazendo, porque, pra
mim, o que mais importava era sentir outra vez aquela sensação de poder que só
vinha quando eu batia na mesa e gritava truco ou quando a bolinha, naquela
roleta que girava insana, parava no número que eu havia deixado toda a grana da
comida do mês. É desesperador? Sim! Mas não consigo me controlar. Entenda,
quando o jogo começa, esqueço-me de comer, de beber, de voltar para casa, de
cuidar dos que me amam; é uma sina miserável, um castigo dos Céus! Se eu
pudesse apagar tudo e voltar no tempo, é certo que eu estaria ao lado de vocês,
não com uma biscate no colo e um baralho nas mãos. Estou errado, eu sei, mas
não há como reparar o que fiz, a não ser me desculpando.
— E quantas vezes se desculpou
antes? É um mentiroso compulsivo! Pô, tudo bem que o jogo lhe é uma cruz, mas
as vagabundas também? Responda!
— Elas me instigavam… como se uma
droga necessitasse da outra para que a “felicidade” estivesse completa!
— Cara de pau! — indigna-se. — O
senhor não muda!
— Eu quero mudar desta vez,
acredite em mim!
— Quer mesmo? Então que faça o
certo uma vez na vida e diga a estes agentes o que de fato aprontou, porque
Tiquinho, ao contrário do que contou, jamais foi um filho seu; era o meu
cachorro, que se perdeu no mundo ao cair do caminhão, durante nossa última mudança.
Sabe — limpa as lágrimas —, eu não queria dizer, mas é preciso… Todo filho tem
orgulho de seu pai; comigo é o oposto, morro de vergonha. Vergonha de que
surjam em minha casa e tomem o que temos, como fizeram com a mãe ainda viva.
Foi humilhante demais! Todos os vizinhos assistindo ao choro dela ao lhe
confiscarem a tevê, o fogão, a geladeira, o ferro de passar roupas enquanto o
senhor, sem qualquer remorso, entregava-se a um copo de cachaça no boteco da
rua de cima, onde sempre fazia uma fezinha no jogo do bicho.
— O que queria que eu fizesse?
Sou doente… DOENTE!!! Já lhe disse! — reitera, irado.
Enrico e Chiara assistem ao
embate em silêncio; é preciso saber até onde cada um seria capaz de ir para
defender o seu lado.
— Dê o menino! — pede a esposa de
Pedro, entrando na sala, após ouvir o descontrole do sogro. — Ele não merece o
avô que tem!
— E quem é você para falar alguma
coisa? — diz, sendo ignorado pela mulher, que lhe dá as costas. — Vá cuidar de
seu pai alcoólatra.
— É o sujo falando do mal-lavado!
Pelo menos ele lutou contra o vício, foi para a igreja e está são há quase três
anos. E o senhor? Responda! — cobra, com os olhos sobressaltados. — Hum! Tome vergonha
nesta cara, homem, e pelo menos uma vez na vida, haja como tal. Não é possível
que mesmo de algema, ainda tenha a proeza de ofender quem apenas lhe quer bem.
Sou seu filho, mas quem vê de longe, acha que sou o pai; as figuras estão
invertidas aqui, porque quem deveria olhar por nós, está sentado em uma cadeira
de madeira, diante do delegado, com os pulsos presos, com mentiras escapulindo
por todos os poros. Se alguém de meu emprego souber, tenho até medo, vão me
mandar para a rua… Quem, nos dias de hoje, quer empregar o filho de um
presidiário? Quem? Quem, pai? Responda!
O homem se cala.
— O senhor faz o quê da vida? —
Enrico está repleto de curiosidade, afinal, o jovem é bem articulado.
— Sou consultor de marketing.
— Por isso se expressa de modo
tão preciso! — completa Chiara.
— Que eu ajudei a pagar… — diz
Eufrásio.
— Mentiroso! Se hoje sou alguém,
é devido ao suor derramado de minha mãe. Não disse — fita as autoridades —, é
um mentiroso contumaz — está inconsolável. — E ela morreu por sua culpa! Isso
não vou perdoar jamais. Jamais!
— Como assim? — indaga o
delegado.
— Depois que o flagrou sem roupa,
bebido até o último fio de cabelo, em meio a putaiada, pegou todos nós e
embrenhou-se pelas casas dos parentes, à procura de abrigo. O único que nos
estendeu as mãos era ainda mais pobre. Ficamos todos em um barraco com apenas
um quarto e um banheiro, mas firme em seu propósito, ela não falhou, foi à
guerra, era preciso sustentar suas crias, enquanto o senhor — volta-se para o
pai — só percebeu nossa falta quase uma semana depois. Já era tarde. A mãe não
voltou atrás. E enquanto estudávamos, ela trabalhava mais de doze horas por dia
para nos dar o que comer… E pensa que isso mexeu com o senhor? O choro e as
promessas de mudanças dos primeiros dias logo se perderam nas curvas de alguma
sirigaita ou na mesa de algum cassino clandestino. Mas a desgraça ainda era
pouca, né? Devendo mais do que nunca, os caras procuraram a mãe e lhe tomaram
todo o dinheiro; que ficassem por aí. Mas não, era preciso dar o recado de que
se o senhor permanecesse insistindo no erro, alguém pagaria com a própria vida.
E foi o que fizeram. Bateram tanto nela, mas tanto, que quando a encontraram,
não a reconheceram. E só conseguiram graças ao anelzinho de prata que carregava
no dedo com o nome dos três filhos gravados — emociona-se.
— Acalme-se! — pede Chiara,
comovida com a história. — Quer um copo d’água?
— Não precisa, doutora! Não
precisa!
— Tenha calma, você tem um filho
para criar e ele chora lá fora… Está ouvindo?
— Chora de vergonha, assim como
chorei tantas vezes — limpa as lágrimas. — Os senhores me desculpem, mas eu
queria reencontrar meu pai de outra forma, em outro lugar, talvez numa casinha
bem simples, com todos os filhos sentados à mesa, rindo da vida…
— Tome! — Clóvis lhe entrega a
água.
— Então, seu Eufrásio, está na
hora de mudar, não acha? A vida lhe dá outra chance, é pegar ou largar — diz
Enrico, também mexido.
— Eu quero morrer! — responde,
numa voz quase inaudível, para a revolta do filho, que não perde a
oportunidade.
— MORRER??? É ISSO MESMO QUE
OUVI??? ISSO NÃO É UM CASTIGO; É UM PRESENTE DE DEUS!!!
— E o que quer que eu… eu…
diga??? Não valho nada!!! Sou um bosta, moleque!
— Disso não tenha dúvida, mas
apesar disso, é meu pai!!! E ninguém escolhe o pai que tem. E se pudesse,
certamente, o senhor não seria o meu!
As palavras, arremessadas com
tamanha mágoa, esfacelam o coração do motorista, que cabisbaixo, derruba a
primeira lágrima, para o estremecimento do rapaz, que se segura, porque,
diferentemente do que dizia, no fundo o amava… Era um amor franzino, machucado,
cheio de cicatrizes, cambaleante, mas era Amor. E como se explicava isso? Não
sabia! Apenas sentia e isso o manteria conectado ao homem até que o laço da
vida se rompesse.
— Eu também tenho vergonha de
quem sou, de quem fui; nunca fiz nada de caso pensado! Se houver uma forma de
reparar os meus erros, que fale.
— Diga a verdade pelo menos uma
vez! — os olhos gritam de esperança. — Assim como meus irmãos, a mãe – onde
quer que esteja e que tanto o amou – e eu sentiremos um pouco de paz.
Eufrásio levanta a cabeça e ao
encontrar o semblante sereno do filho, toma a decisão que daria início ao
desenrolar de uma trama, cujo tecido, apesar de puído, mostrava-se resistente,
impedindo que a Justiça identificasse e prendesse os verdadeiros mandantes.
— O senhor afirmou que dona Luara
não presta. O que quis dizer? — interpela o delegado, analisando
meticulosamente cada movimento dele. — Ela está envolvida com o próprio
sequestro, não é isso?
O motorista engasga-se com a
saliva. De volta à mansão dos Vaz…
— Português? Que Português? Todos
que nascem em Portugal são portugueses. Não entendo! — pergunta Sofia,
intrigada.
— É o homem mais gentil que já
conheci, de uma inteligência peculiar, que tentou me levar para a cama, mas não
obteve êxito, até porque, só me deito com aqueles que podem me despertar algum
interesse carnal e o velho não se enquadra nesta lista.
— Ele é um idoso? — cai na
risada. — Você de casinho com um “vovô”? Essa eu pagaria pra ver.
— Qual parte não entendeu do que
eu disse? — está contrariada.
— Não sou cuidadora, querida! Só
me entrego a quem me acelera o coração, me faz tremer a base, perder o chão e
salivar de desejo como uma fera diante de um suculento pedaço de carne em que
se possa enfiar os dentes e devorar até o último fiapo.
— Tá! Tá bom! Se você diz… —
franze a testa, desconfiada…
— Então o que prometeu a este
homem para que ele ofertasse apoio aos seus planos? Apenas amizade?
— O que ele mais deseja.
— E NÃO SERIA VOCÊ?
— Óbvio!
— Mas não acabou de dizer que não
é “cuidadora”? Não te entendo! Que loucura, meu!
— Oferecer, até posso; cumprir,
já é outra coisa.
— Pô, tá maluca, e se o cara
resolve ter um acerto de contas com você? — preocupa-se. — Mas vamos por parte
– está cada vez mais confusa –, como o conheceu? Fale! Não me esconda nada!
— Curiosa! — diante de um espelho
oval, à direita da cama, um pouco antes do closet, passa nos lábios um batom
vermelho da cor do sangue. — Vou lhe contar tudo… — dá um sorrisinho
sarcástico. — Ao chegar ao Aeroporto de Lisboa, lá estava o entojado do Tomás,
o namorado de um conhecido meu, esperando-me, com aquela vestimenta horrenda,
de cores berrantes. Não havia quem não nos notasse. Que horror! Se vergonha
matasse, eu estaria debaixo da terra. Fomos em direção ao estacionamento,
entramos no carro, passamos pela cancela e percorremos as belas avenidas da
Capital. Foi quando ele me alertou de que um carro luxuoso nos acompanhava
desde a saída do aeroporto. Virei-me para ver e, de cara, reconheci o
motorista. Era um velho!
— Como assim? E o que ele queria?
— No mesmo voo em que eu estava,
percebi que um senhor distinto, em um terno sob medida, tomando uma dose de
whisky com duas ou três pedras de gelo, ao som de uma melodia local, me
observava. Não dei moral, até porque, quem gosta de “cacaria” é casa de repouso
ou cemitério. Pois, acredite se quiser, era ele. Foi eu bater o olho e
reconhecer.
— Que capacidade de observação…
Gostei! Mas, e daí?
— Pedi que parasse o carro, mas
Tomás teve medo, podia ser um desses malucos que gostam de violentar mocinhas
frágeis como eu, dizia ele — caçoa. — Só faltava eu ser atacada em terras
camonianas e logo pelo “irmão do Noé”… Que luxo! Zombei com gosto, para a ira
do cara, que afetado ao extremo – você sabe como bicha é, não sabe? –, falou-me
um monte de bobagens antes de fazer o que eu havia mandado. O homem também o
fez. Assim, estava um carro ao lado do outro. Então ele abriu a porta, ajeitou
a roupa e os cabelos, conferiu o bafo e se aproximou bem devagar; tinha o gesto
de um nobre! Confesso! Por um momento, senti uma atração, o cara tinha uma
coisa esquisita, enigmática, não sei explicar; como princesinha do papai,
mantive a personagem. Até que ele chegou à janela, bateu no vidro e fez sinal
para que eu o abaixasse; ainda que contrariando os olhares amedrontados da
gazela, o fiz. Ele me cumprimentou com aquela voz forte, rouca, num sotaque
nativo encantador, apesar de seu português ser bem próximo do brasileiro… E
sabe o que ele queria, minha filha?
— Continue — pede a garota,
deitada na cama, com a cabeça apoiada às duas mãos. — Na certa queria lhe
passar o rodo…
— Até imaginei! Mas, naquele
momento, depois de ter nos seguido, o que mais desejava era apenas me devolver
o celular, que havia caído durante o trajeto compreendido entre a aeronave e a
Imigração.
— E você acreditou nisso?
Certamente o cara lhe furtou o celular e forjou toda esta cena. O bicho é
esperto! O que não é capaz de fazer por uma foda?
— Aí que se engana — o sorriso
vai de um canto ao outro da orelha —, estou sempre um passo à frente em tudo,
quem deixou o celular cair fui eu.
— Você armou para o Matusalém?
— O que acha? — ironiza. — De
santa não tenho nem o nome.
— Mas… mas… por quê?
— Dentro da aeronave, como o
velho não tirava os olhos de mim, um passageiro que estava ao meu lado, um
desses fofoqueiros de plantão que gosta de cuidar da vida alheia, disse-me que
eu havia conquistado a atenção de um dos varões mais concorridos da terrinha.
— Não pode ser! O cara deve ter
sido pago para dizer isso a você!
— Até pensei nisso, não fosse por
um detalhe…
— Qual?
— Ele estava com uma Bíblia nas
mãos…
— E…? Estes são os piores, pregam
a palavra de Deus pela frente e metem o garfo por trás. Não acredito que caiu
neste papinho furado.
— Posso ser leiga em escrituras,
mas de uma coisa eu entendo bem… Sei fisgar um bom partido como ninguém!
— Hã?
— Devolvi o olhar, desta vez,
profundamente sedutor, a ponto de o homem perder o fôlego. Ou eu mantinha o
controle da situação ou ele morreria de infarto…
— Como assim?
— Ele não me desejava? Então,
abaixei a alça da blusinha e deslizei a mão sobre os seios, insinuando um
desejo desenfreado. Ele ficou vermelho! — ri. — Pensei que teria um ataque
cardíaco, pois o material é de primeira.
— Mas o que pretendia com tudo
isso?
— Ter o velho na palma de minha
mão.
— Juro que não entendo!
— O velho era podre de rico, mas
segundo o fofoqueiro, também desfrutava de uma fama terrível. Era acusado de
estelionato, corrupção política, além de mandante de muitas mortes misteriosas
em terras lusitanas. Apesar dos esforços das autoridades policiais, nada foi
provado contra ele. Uma figura mítica, desejada e temida pela elite, maltratada
pelos editoriais dos periódicos mais respeitados e aplaudida nos saraus
entediantes da alta sociedade portuguesa. A farsa de sempre, como se no Brasil
fosse diferente.
— Tá… adiante-se!
— Ele me convidou para sair, como
imaginei, e chamou-me – imagine você –, de DEUSA! Eu, deusa? Estou mais para
Demônio… — diz, eufórica.
— Ah, isso está mesmo…
— Mas tudo tem seu preço, o cara
devorava cultura assim como quem engole um naco de carne, e me levava a muito
lugares ecléticos, chatos pra burro! E o pior, tive de fingir que também estava
a fim. Porra! E quem quer saber da história de José Saramago? Pois estive na
Casa dos Bicos, uma espécie de Museu, na zona ribeirinha, que fica, imagine, na
Rua dos Bacalhoeiros… Me segurava para não rir do imbecil! Ele, achando que eu
realmente apreciava toda aquela merda, contou-me toda a vida e a obra do
infeliz, inclusive que seu livro, uma coisa chamada Ensaio sobre a Cegueira – que
tédio –, terminou nas telas do cinema mundial. E sabe qual é a moral do filme?
“Dentro do caos instituído pela cegueira, o indivíduo se revela insensível
diante dos problemas alheios, ficando cada vez mais egoísta…” — dizia ele,
esfuziante, como se eu estivesse interessada em papo de cego. Pra mim, um gato
cagando e um monte de cego junto é a mesma coisa — inconforma-se. — E não parou
por aí, depois me levou ao Castelo de Óbidos¹…
— Castelo de quê…? “Óbitos”?
— Mas a bicha é burra! Óbidos,
minha filha, que significa cidade fortificada. Quando a gente pensa que você
vai ganhar mais miolos, é só decepção, hein, dona Sofia? É assim que quer me
conquistar? Com essa ignorância toda jamais botará as mãos sobre esta beldade —
despreza, vendo-a irritar-se pelo reflexo do espelho. — Vá estudar um pouco!
Quem sabe um dia, quando todos os homens sumirem da terra, eu lhe dê uma
chance, porque já disse, de velcro eu não entendo. Cruzes! Dá até nojo!
— Pare, Luara!!!
— QUANTAS VEZES EU JÁ LHE DISSE
QUE LUARA MORREU? EU SOU DIANA, DI-A-NA, ENTENDEU? DIANA!
— Tenho dó de você… — abaixa a
cabeça.
— DÓ? E QUEM PENSA QUE É PARA ME
DIZER TAL DESATINO? ENXERGUE-SE PRIMEIRO, SAPATÃO!
— Eu mereço respeito! — os olhos
enchem-se de lágrimas. — Não tenho culpa de te amar…
— E eu muito menos! Por mim, o
Português lhe passava fogo e entregava seus restos aos canibais da Amazônia —
termina de se maquiar.
— Está cada vez mais parecida com
sua mãe, dizendo coisas sem sentido…
— Não me compare com aquela
doente! — vira-se para Sofia.
— Me desculpe! — o amor que sente
por Luara a sufoca, fazendo-a se humilhar. — Continue a história, por favor!
— Nem sei se quero mais… —
aproxima-se, transtornada com a comparação. — Você é um verme, sabia? Não sei
como ainda a aturo!
— Me desculpe! Me desculpe! Não
quero perder sua amizade! Por favor! — beija-lhe as costas das mãos.
— Assim está melhor! — diz,
recolhendo-as e as limpando na roupa, como se tivesse nojo. — Bem melhor!
Então… o tal castelo serviu como fortaleza para proteger a região durante as
inúmeras batalhas medievais, acho que é isso. Imagine, está localizado em um
penhasco, foi construído em estilo gótico, românico e, atualmente abriga um
hotel. Andei que nem uma “camela” com aquele imbecil, porque tudo queria me
explicar. Aff! Poderia estar na praia, me exibindo para os machos, mas não,
atentada que sou e fiel aos meus objetivos, preferi a companhia de um retardado
recheado de grana que adora mitologia romana, músicas clássicas – credo! –,
literatura brega e religião. É uma coleção de mau gosto pra ninguém botar
defeito. Acredita que passei uma parte da tarde ouvindo Ária na Corda Sol, de
Bach²? Não é pra morrer? Aquela coisa medonha me embrulhou o estômago, a ponto
de eu ir ao banheiro e vomitar todo o arroz de pato que havia comido…
— Mas pelo jeito aprendeu alguma
coisa boa, a história de Óbido foi interessante! — provoca.
— Eu te conheço, naja! É bom
parar com essa ironia, antes que eu lhe parta os dentes!
— Não está mais aqui quem falou!
— Acho bom! E para terminar com
chave de ouro, me levou para Fátima. E lá estava eu, diante de uma estátua de
barro, fingindo acreditar em toda aquela mentirada regada a dízimos e ofertas
de um bando de carolas, que carregava velas enormes, acesas, de joelhos, pagando
pelos ditos milagres. Olha, só não abandonei tudo porque aquele velho era a
minha salvação, sabia que ele poderia me ajudar; apesar de tão carismático,
tinha um coração selvagem e, às vezes, deixava transparecer todo o seu mal. Eu
mesma o ouvi dando ordem para que matassem alguém… Não foi apenas uma vez, mas
várias, e sempre usava frases de efeito, conectadas à História ou à Bíblia,
como se sentisse prazer em humilhar os mais frágeis com o conhecimento que
fazia questão de exibir. Mas, de uma coisa ele tem razão, quem conhece o livro
sagrado, domina o mundo! Quando me disse isso, não entendi; agora, depois do
que vi no Brasil, com aquele bando de loucos orando para um pneu e pedindo
intervenção militar, do que mais duvidar? Aff!
— E mesmo sabendo do que o cara
era capaz, ainda permaneceu ao lado dele? Veja, você não está bem, é como se
procurasse morrer um pouquinho por dia com as loucuras que pratica…
— Não entendi!
— Lu… digo, Diana, você não
pratica – por incrível que pareça – mal apenas aos outros, mas também a si
mesma, porque, em algum momento, talvez no silêncio da noite, com a cabeça
deitada no travesseiro, um remorso lhe bate, sufocando seus pensamentos…
— Você não me conhece! — diz, com
os olhos agigantados e injetados de cólera. — Eu não sou tão fraca assim!
— E desde quando sentir remorso
ou arrependimento é sinal de fraqueza? No mínimo, de nobreza.
— Meus Deus! — aplaude. — Falei
tanto de igreja que acabou convertida. Idiota! Como diz o Português, o que
seria de nós se não existissem os tolos?
— Português! Hum! E qual o
verdadeiro nome deste “homem de bem”?
Ela não responde.
— Não sabe ou não quer falar?
— Isso não importa!
— Sei! E como acabou tudo isso?
Fale!
— Levou-me à noite a um clube de
swing. De dia um puritano para ninguém colocar defeito; de noite, um formidável
devorador de almas. Com um copo de whisky nas mãos, veio para cima de mim,
naquele pequeno quartinho, com uma parede de vidro, em que era possível
acompanhar duas vagabundas se lamberem. Rejeitei-o uma, duas e na terceira vez
o estapeei. O homem me pegou pelo pescoço e só não o estrangulou porque o
enfrentei, com os olhos reluzindo o ódio que havia dentro de mim. Soltou-me, peguei
a bolsa e me fui… ele veio atrás que nem um cachorrinho sem dono, implorando
perdão. Peguei o táxi e desapareci dali. Então endoideceu e, nas duas semanas
seguintes, inundou o apartamento de meu conhecido e do namorado insuportável
dele com centenas de milhares de buquês de rosas, de todas as cores, tamanhos e
aromas. Ele me queria, era certo! E sua deusa, como gostava de dizer, era mais
caro do que imaginava e para adentrar ao seu trono, além de flores, teria de
renunciar a própria arrogância e servir-se como um cordeiro. Até porque, uma
deusa não se sacia apenas com oferendas, é necessário sacrifício! E qual foi o
meu preço? Que atendesse aos meus caprichos. Hum! Então fui morar na casa dele,
após tanto implorar, com a condição de que não me tocasse, porque se realmente
me quisesse, seria quando eu permitisse. Era isso ou dar o fora, assim como
faço com você, Sofia! Quer-me? Sonhe! Sou de todos e não sou de ninguém! —
espezinha, gargalhando. — Bastaram alguns dias para que eu descobrisse que ele
era realmente o criminoso que diziam. Sobre seu comando há uma extensa rede de
larápios, apoiada por políticos de todas as esferas e empresários de todos os
ramos, que se vendem de heróis durante o dia e agem como anjos da morte à
noite. E a partir daí, eis que fiz minha morada. O sequestro foi apenas um dos
primeiros caprichos…
— Ué? E teve outro?
— Claro! Apagar o Tomás.
— O QUÊ? VOCÊ MANDOU MATAR O CARA? — horroriza-se com a revelação. — E POR QUÊ?
— O bicha, além de me provocar,
ainda tentou pôr meu amigo contra mim — diz, sem qualquer tipo de
arrependimento. — Acabou com a boca cheia de formiga.
— Meu Deus! Estou com medo de
você!
— É bom ficar mesmo — ri.
— Bem, se ele é tudo isso que
realmente diz, não parece ter sido fácil demais descobrir a sua outra face?
Talvez ele tenha deixado você enxergar apenas o que quisesse mostrar… O cara é
perigoso! Comprou os seus sonhos, bastam agora o corpo e a alma…
— O que quer dizer?
— Que ele virá atrás de você e
não terá como escapar. Ou se entrega ou morre. Ele não ficará no prejuízo.
— Antes eu o MATO! — sentencia,
com uma determinação de arrepiar.
— LEONOR!!! LEONOR!!! LEONOR!!! —
a gritaria do lado de fora interrompe a conversa.
— Aquela louca ainda não mandou
os favelados picarem a mula? — pergunta Luara, incomodada, aproximando-se da
janela. — O que é isso? A polícia entrou em confronto com a gentalha — dá uma
risada insana. — Veja, tem até cachorro mordendo os agentes. Meu Deus! Como me
divirto! Além de pobres, são burros!
— Peça para irem embora, Leonor!
Vamos! Eles só atendem você! — solicita Martim, no andar debaixo, assustado com
a violência.
— Só chamei a autoridade para que
os dispersasse, não para espancá- los! Faça alguma coisa, mulher, são seus
seguidores.
— É, dona Leonor, Ceilândia está
aqui em peso, tem na senhora a esperança de uma vida melhor.
— Não sou saaanta para fazer
milagres, minha fiiilha!!! Se pensa que vai me escapar, Cleeeide, está muuuito
enganada! Pois diga! Onde está a graaana dessa gente???
— Mulher, alguém vai morrer
aqui!!! — alerta o general, vendo a multidão enfrentar a Força com pedras e
tijolos roubados de uma construção, nas proximidades. — Faça alguma coisa! Eles
estão fora de controle!
— Verdade, dona Leonor!!! Olha, a
coisa tá fedendo!!! — Cleide tenta distrai-la, mas a mulher está obcecada, quer
respostas às suas indagações.
— A única coisa que vai feder
aqui será sua fuuuça se não me disser a verdade. Vamos, Cleeeide, responda,
onde está a doação deles???
A empregada, sem saída, simula
uma crise de choro.
— Dona Leonor, aconteceu uma tragédia, o dinheiro sumiu!!! SUMIIIU!!! — e chora. — Meu Deus!!! Não sei como isso pôde ter acontecido!!!
_____________
1. O Castelo de Óbidos localiza-se na freguesia de Santa Maria, São Pedro e Sobral da Lagoa, vila e município de Óbidos, no distrito de Leiria. Está classificado como monumento nacional desde 1910. Atribui-se ao castelo origem romana. Foi posteriormente fortificação sob o domínio árabe. Depois de conquistado pelos cristãos (1148) foi várias vezes reparado e ampliado. No reinado de D. Manuel I, o seu alcaide manda construir um paço e alterar algumas partes do castelo.
2. Johann Sebastian Bach (1685-1750) foi um músico, compositor e organista alemão. Considerado um dos mais importantes artistas da história da música, faz parte da tríade dos maiores músicos eruditos ao lado de Beethoven e Mozart.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

Copyright © 2025 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: