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Flor-de-Cera: Capítulo 08

Novela de Carlos Mota
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FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 08


Joaquim separa uma peça de roupa para vestir, e depois de arrumado, respira fundo, senta-se na cama, se despede daquela casa, dos deliciosos beijos da mulher que mais amou na vida. Ao retornar ao sertão, levará consigo aquele hálito ardente, aquela boca... Meu Deus! Os desejos permanecem vivos dentro dele!
– Pensando em minha MULHER, Matuto? Pois você conhecerá a mãe dela agora...
A arma dispara.


Rubens entra no quarto de Joaquim, vê George baleado, põe as mãos na cabeça e pergunta completamente ensandecido:
– Por que fez isso, meu rapaz? Ninguém merece uma coisa dessas, nem mesmo esse canalha.
Com a arma em mãos, o chofer tenta se explicar:
– Não fui eu, doutor Rubens... Foi ele quem fez isso! Ele atirou em si mesmo!
– CO-CO-MO POSSO ACREDITAR NUMA COISA DESSAS? CRISTO! VOCÊ ERROU, CONFESSE! O PESO DA CULPA SERÁ MENOR.
– NÃO FUI EU... – insiste, com os olhos da cor do sangue.
George está caído, gemendo de dor, com o braço direito perfurado por uma bala; o sangue jorra assim como as lavas de um vulcão. Os portões da mansão se abrem, as sirenes da polícia soam em pânico, o delegado pula da viatura, sendo recepcionado pela empregada.
– O que aconteceu, dona?
– Ainda bem que chegaram... Eu não me aguentava mais de aflição.
– Foi a senhora que nos ligou? Onde está a vítima do suposto crime?
– Lá... – aponta para os fundos da propriedade. – O disparo veio do quarto do empregado. Acho que o vereador o matou... – sufoca-se com a agitação.
– Quem matou quem? A senhora se refere ao vereador George Dumont? Ele é o dono dessa propriedade, não é? E por que ele feriria um... um empregado?
– ELE TÁ FUGINDO, DOUTOR! PEGA! PEGA! – grita um policial ao avistar Joaquim correndo em direção ao muro.
O temporal passa, apenas uma garoa fina permanece sobre a cidade.
Rubens contém o sangramento com o lençol da cama do empregado e, pelo celular, solicita uma ambulância.
Joaquim é capturado, jogado ao chão como um animal e algemado a pontapés. Vendo-o pelas costas, Ernestina imagina que seja o vereador, mas ao se defrontar com o motorista, surta.
– VO...VOCÊ??? Meu Deus do Céu, por que fez isso com sua vida? – inquire, descontrolada.
– Ainda bem qui num fartei nu sirviçu hoji... magina eu perdê um fuzuê desse? – diz Moacir, empolgado.
– Não fui eu, Ernestina! – repete diversas vezes, sem dissuadi-la dos pensamentos ruins. – Não fui eu! Me ajude, por favor! Diga a eles quem eu sou...
– Ajuda ele, Ernestina! – pede o jardineiro. – Eu vô visitá ocê na cadeia, pode dexá... fique trunquilo! Será qui a cumida di lá é boa?
– CALE A BOCA, MOACIR! – enfurece-se com as palavras do empregado.
– Leve-o para a viatura! O criminoso será interrogado na delegacia – ordena o delegado.
– Doutor, a vítima está lá dentro, toda ensanguentada. E há uma testemunha, que se diz médica da família.
O delegado entra no quartinho, avista George e comenta consigo mesmo:
– Que tragédia! Logo com um homem tão bom como o vereador George Dumont? Isso deve ter sido a mando da oposição, pelo fato dele ter conseguido o posto de saúde para a cidade. Não querem vê-lo prefeito de Vila dos Princípios... Que coisa! –volta-se para o médico e pergunta:– O senhor viu tudo, não é?
Rubens o encara e não responde.
– O SENHOR VIU COMO TUDO ACONTECEU, DOUTOR...DOUTOR...?
–...Rubens Arraia! – completa. – Sim, senhor! Eu vi!
– O MOTORISTA É O AUTOR DO DISPARO?
Com o balançar positivo da cabeça, ele o sentencia à cadeia.
– Muito bem! Acompanhe-me até a delegacia, preciso lavrar o boletim de ocorrência.
– O que faremos com o chofer, doutor? – pergunta um subordinado.
– É flagrante! Artigo 121. – XADREZ NELE!
– De que se trata esse artigo, seu delegado? – investiga o doutor, penalizado com o destino de Joaquim.
– HOMICÍDIO! E DOLOSO¹! – sentencia o oficial.
A conversa é encerrada com a chegada da ambulância. Joaquim é posto à força no camburão. Chora, dizendo-se inocente, para a tristeza de Ernestina, que nada mais pode fazer, a não ser assisti-lo em prantos. Como acreditar em sua inocência se a testemunha é o doutor Rubens, um homem reconhecido pelo ilibado caráter?
– O que há aqui? – indaga a espavorida Catharine, achegando-se.
– O que faz aqui, senhora? Pelo amor de Deus, volte para seu quarto.
– Quem levou Joaquim? Não estou entendendo! Fale, Ernestina, o que houve? – exige.
– Levaram Joaquim, senhora!
– Quem?
– A POLÍCIA! – cala-se, cobrindo os olhos marejados com o avental.
– A senhora tem que ser forte, dona Catharine – consola o médico. – Seu esposo foi baleado.
George é levado para a ambulância.
– O que acon-acon-ACONTECEU?
– JOAQUIM TENTOU MATÁ-LO!
Catharine abaixa a cabeça e chora, não acreditando que aquela boa alma fora capaz de tal atrocidade. Parecia sublime; não o monstro que agora lhe desenham. Como pôde se enganar?
– Um furacão passou por aqui? – interroga o delegado ao vento, após vistoriar o hall de entrada. – O meliante é mesmo perigoso! Vou alertar meus homens.
Rubens está chocado, não consegue pronunciar uma palavra em defesa do acusado. E quem acreditaria? Joaquim estava mesmo com a arma apontada para o edil quando ele entrou no quarto, então, como desdizer o óbvio? Mentir e ser conivente? Isso não! Não era de seu caráter! Entregar as barbáries cometidas pelo vereador contra a esposa, na intenção de justificar o crime? E o que adiantaria? Se Catharine, a vítima, não havia prestado qualquer queixa, quem seria ele para revelar as intimidades de uma família, ainda mais como aquela, a fundadora de Vila dos Princípios? Infelizmente, ante à situação, faria como Pôncio Pilatos!
Catharine beija o marido, as portas se fecham e o veículo parte. Assim que a primeira viela é cruzada, George abre um enorme sorriso.
– Eu não disse que acabaria com essa história??? – sussurra consigo mesmo, com ar de satisfação.
– O senhor quer alguma coisa, vereador? – pergunta a enfermeira, vendo-o se mexer.
– Pensando em minha MULHER, Matuto? Pois você conhecerá a mãe dela agora... – relembra.
– Não faça isso, seu George! Estou indo embora, não é o que deseja?
– Você ama minha esposa, não é? Fale, MATUTO! Se não falar, eu atirarei e todos os seus sonhos irão para o espaço, assim como os miolos dela também...
– Não lhe faça mal, por favor! Dona Catharine não merece isso!
– Então confesse: VOCÊ A AMA? FAAALLLEE!!!!
– SIM! EU A AMO!
Os olhos do homem, exasperados, reluzem como faróis na escuridão.
– É corajoso em assumir isso, peão de sítio! O que pensa que é? GENTE? – gargalha. – Não! É um simples verme do sertão em terras fartas, não percebe? Catharine nunca o amaria e sabe por quê? Porque você é chulo, pobre, incapaz de ver as pessoas com os olhos d’alma...
– E o senhor consegue, doutor? – afronta o criado, usando-se das últimas forças do coração. – Vê além da alma? E se realmente vê, por que não percebeu que sua mulher sofre com a perda da menina? Por que não lhe ofereceu o ombro para ela chorar, enquanto Alana estava naquele quartinho de hospital, sendo devorada pelo câncer? Fale, doutor!
George aproxima a arma da cabeça do motorista e suspira bem fundo, enquanto o suor, desordenado, corre-lhe o rosto até molhar a camisa.
– Você teve alguma coisa com ela? Fale!!!
– Apenas nos beijamos... no cemitério; na verdade, EU a beijei!
– E se arrepende?
Os olhos do vereador crescem à medida que as palavras são pronunciadas.
– JAMAIS! – responde o destemido chofer, como se quisesse mesmo levar um tiro.
George dá uma gargalhada, depois se afasta devagar, arrosta-o com a empáfia de um marido traído e atira contra o próprio braço. A arma cai no chão.
– MEU DEUS! – grita o criado, aterrorizado. – Por que fez isso?
Descontrolado, saca-se do mesmo revólver e mira o vereador com a sanha de um apaixonado em ruínas. A lucidez lhe escapa das mãos e o destino se encarrega de dar um final distinto à história de cada um dos rivais.
– Por que fez isso, meu rapaz? Ninguém merece uma coisa dessas, nem mesmo esse canalha... – entra o médico no quarto, atraído pelo barulho.
– O senhor quer alguma coisa, vereador? – pergunta novamente a enfermeira, estranhando o silêncio dele. – Fale, o senhor está bem?
– Nunca estive MELHOR, querida! – responde à mulher, resgatando-se das lembranças.
Joaquim desce da viatura e é escoltado até a entrada da delegacia. Uma multidão o aguarda com pedras e porretes. Querem o couro dele, afinal, havia mexido com o quase santificado vereador George Dumont! Alguém em meio à multidão solta um berro ensurdecedor:
– VAMOS MATAR ESSE PESTE!!!
A polícia se arma com escudos para protegê-lo.
Ernestina ouve pelo rádio os disparos em frente à delegacia. Há quem especule que Joaquim não sairá vivo do tumulto, talvez porque a polícia de Vila dos Princípios nunca conviveu com uma situação delicada como a que o levou ao xilindró.
– Ernestina!? – pergunta Catharine. – O que aconteceu dessa vez? Por que chora dessa forma?
– JOAQUIM VAI MORRER! – apregoa.
– Mas... mas... não, como assim? A polícia não deixará!
– E o que são alguns policiais diante de uma multidão em fúria? Os próprios repórteres acham estranho o delegado ainda não ter solicitado o apoio de Vila Bonita. Sei lá! Há algo de estranho no ar, minhas costas estão pesadas! – contorce-se. – Ainda me pergunto como Joaquim, aquele homem sensível, de bom coração, fora capaz de comprar uma arma e escondê-la sem que ninguém nunca a percebesse. Não pode ser o monstro que desenham; convivo com ele há meses e nunca percebi algo que o desabonasse... Nada! Sequer um deslize!
Catharine emudece.
– O único erro dele foi... – olha para a patroa, enche os pulmões de ar e os esvazia bem devagar – ... pisar em terreno minado. Tentei avisá-lo, mas parecia possuído por uma força maior que a dele. E talvez estivesse mesmo, afinal, quem consegue vencer o AMOR quando se manifesta? Nem Sansão! Se ao menos eu pudesse vê-lo uma vez mais, abraçá-lo, dizer-lhe algumas palavras de esperança... Nem isso posso, porque se for à delegacia defendê-lo, poderei também ser linchada. Mas a senhora pode, é uma Dumont, tem o respeito da comunidade. Ajude-o, dona Catharine! Eu lhe peço, por favor!
– EU...? – inquieta-se a patroa. – Mas ele alvejou meu marido... O que direi à polícia? Que o solte sem mais nem menos? Isso é loucura!
– Loucura é a senhora permanecer casada com um tipo feito aquele. Um homem incapaz de um gesto de carinho! É por essa criatura que se doe? Logo por ela? Olhe sua face, ainda está marcada pelas agressões...
– Você não entende, Joaquim tentou matá-lo, o que poderei alegar em sua defesa? Que a arma surgiu do nada, que ele cometeu o crime por um motivo torpe?
– E desde quando amá-la é um motivo TORPE?
– Do que está falando, criatura? AMAR-ME?
– A quem quer esconder a verdade, dona Catharine? Da sociedade, de seu esposo, de mim ou de si mesma? Aquele homem cometeu apenas um crime: o de amá-la com a ALMA. E está pagando caro por isso! Talvez com a própria vida. E o que recebe em retribuição por tanta dedicação? Nem sequer um apelo seu de misericórdia!
– Você enlouqueceu, Ernestina?
– Quantas vezes eu o flagrei admirando-a no hall de entrada, enquanto o vento da manhã esvoaçava seus fios de cabelos louros, ou mesmo na varanda, quando a senhora se deleitava com o chá de rosas vermelhas, na companhia do pôr-do-sol... Cheguei a pensar que talvez fosse alguma divindade, tal a devoção daquele coitado. Nunca percebera o quanto ele a amava?
Cabisbaixa, a mulher permanece em silêncio.
– Até mesmo em minha cama, quando esteve acometida pela ira de seu George, ele não a deixou! Foi contra todas as intempéries do destino, correu todos os riscos, simplesmente porque a amava.
– Na sua cama? E... e o que você viu? – espanta-se.
– Um homem apaixonado aos pés de sua deusa.
– Seja clara, mulher! Chega de enigmas, o que você viu? – enerva-se.
– Ele lhe roubando um beijo... Enquanto comprimia o ferimento, provava um pouco da essência que lhe alçava à ruína. Quer maior demonstração de amor?
– Ele fez isso? CRETINO! Abusou de mim enquanto estava desacordada.
– Abusar? Como pode dizer tal coisa? Aquele homem a ama e o que fez o tempo todo foi defendê-la das garras de seu esposo. Pela senhora, Joaquim quase morreu... Só não se foi, porque o doutor Rubens e eu chegamos a tempo de evitar uma tragédia ainda maior, que condenaria o sobrenome de que tanto preza às sombras da história.
– O que está dizendo, CRIADA? – enraivece.
– CRIADA? – ironiza. – É assim que me enxerga? Como uma criada qualquer, daquelas que se desfaz sem um mínimo de constrangimento? Esquece-se de que eu a peguei no colo, de que a levei à escola em seu primeiro dia de aula, de que estava à sua direita durante o casamento e de que fui a pessoa a quem confiou os banhos de Alana, assim que nasceu? Esquece-se de tudo isso, dona Catharine?
– NÃO! – contém a ira. – Não esqueci, mas isso não lhe dá o direito de me cobrar de nada...
– Cobrá-la de quê, mulher? Apenas estou lhe fazendo um pedido, o homem está com a cabeça à forca, prestes a morrer, e uma simples ligação da senhora ao delegado lhe amenizaria a dor. Não entende, só a senhora pode salvá-lo agora! Todos estão contra ele, pensam que queria matar mesmo o vereador...
– Mas... mas...ele atirou contra George.
– E deveria ter matado! Afinal, quem sentiria a falta daquele infeliz? Era bem capaz de eu soltar rojões de felicidades.
– Pare de ironia, Ernestina!
– A senhora tem a coragem de defender aquele traste? Merece mesmo o marido que tem!
– Respeite-me, criatura! Com quem pensa estar falando? Sou uma Dumont...
– ... ISSO NÃO! – interrompe-a com fervor. – A senhora pode até posar como a última dos herdeiros desse clã, mas é pouco para que se consagre como uma DUMONT. Os Dumont que conheci, à exceção de seu pai, eram sensíveis, enxergavam-nos com os olhos d’alma e ouviam-nos com os ouvidos do coração. Que seres! Mas estão extintos! A mulher que está à minha frente, não passa de uma dessas fraudes, até porque, que Dumont negaria ajuda se chamado à guerra, ainda mais quando o que se está em jogo é a vida de um homem humilde em cujo crime há apenas as digitais do mais nobre dos sentimentos, o AMOR?
– INSOLENTE! – Catharine perde a noção do respeito e lhe desfere um tapa. – SOU UMA DUMONT SIM! RESPEITE-ME, CRIADA!
– A senhora não é uma Dumont! – repete a mulher, alisando a face latejante. – NUNCA SERÁ!
Os olhos encolerizados de Catharine explodem, querem devorá-la a qualquer custo.
– DUMONT ERA SUA MÃE E, OLHE, NUNCA O TINHA SIDO ANTES DE SE CASAR COM SEU DILERMANDO. APESAR DISSO, ERA DE UMA NOBREZA ÍMPAR, E ISSO INQUIETAVA AQUELES QUE A CONSIDERAVAM UMA PLEBEIA, INDIGNA DE RECEBER TAL SOBRENOME.
– Por que você insiste em desenterrar os mortos? Essa cadela, traidora, está morta! E deve estar queimando nos quintos dos infernos. O que ganha me provocando dessa forma, CRIADA? – exige, pegando-a pelos ombros.
– Ernestina, ele vai me matar! Ajude-me, por favor! – rememora a empregada.
– Quem vai lhe matar, dona Franceline? O seu Dilermando? Mas por quê?
– Ele descobriu toda a verdade. Como temi esse dia, Ernestina! – confessa a mulher, em lágrimas. – Por que Catharine sofreu aquela queda do cavalo? Por quê? O que fiz a Deus para merecer tal castigo?
– Senhora, acalme-se, está muito agitada! Não estou entendo nada do que diz...
– Dilermando descobriu tudo... E vai me matar! – gesticula muito.
– Ao cair daquele maldito cavalo, Catharine sofreu ferimentos graves, perdeu muito sangue e precisou de uma transfusão. Colheram nosso sangue e ao compararem com a tipagem sanguínea dela, chegaram à conclusão de que Dilermando não era seu pai.
– Senhora, o que está me dizendo? – treme. – Dona Catharine não é uma DUMONT?
A mulher se cala, percebe ter falado demais.
– Fale, senhora! Não precisa ter medo, minha boca é um túmulo!
Um prato desaba da cristaleira da mansão, é o presságio da tragédia que se aproxima.
– Não, Ernestina! Catharine não é e NUNCA foi filha de Dilermando. Eu estava tão atordoada com a possível perda dela que não percebi a ponta que puxaria o novelo de meu segredo...
– Mas... mas...de quem ela é filha?
– Agora você vai me dizer de quem aquela PESTE é filha! – vocifera Dilermando, aproximando-se, completamente fora de si. – Diga-me, de quem Catharine é filha? DIIGA-ME!
– Fale, Ernestina, por que defende tanto aquela peste? – insiste a esposa de George.
– Bem se vê... – responde a empregada, libertando-se do fosso das lembranças. – A senhora jamais seria uma DUMONT! Dona Franceline seria incapaz de um gesto tão agressivo como esse! Ela era uma mulher de classe cuja supremacia vernacular fora, por vezes, notícia nas páginas dos periódicos principienses. Não havia quem não a invejasse... Que mulher! E, diferentemente do que diz, ela não é uma TRAIDORA, porque jamais amou seu pai! Casou-se com ele por obrigação. Fez todo esse sacrifício em benefício do seu avô que padecia de uma grave enfermidade! Então, se ela não amava seu Dilermando, que traição é essa a que se refere?
– ELA É O VERME DE NOSSA HISTÓRIA!
– VERME? – debocha a criada, fixando-a com mágoa. – Guarde as palavras, mulher, pois não sabe da missa a metade. Tenho pena da senhora, porque além de não aceitar o AMOR reluzente de Joaquim, ainda se volta contra as únicas pessoas que a amam ou a amaram de verdade nessa vida.
– Aonde vai? – pergunta, percebendo que ela se esvaía.
– Arrumar as minhas coisas! Peço demissão desse trabalho, a senhora é mesmo ingrata!
– Vô-cê não pode me deixar em um momento como esse.
– E por que não, senhora? Sou apenas uma CRIADA! Há muitas em Vila dos Princípios como eu, basta publicar um anúncio no “Tributo ao Povo”, que acordará o dia de amanhã com uma fila à porta.
– ER-ER-ERNES-ERNESTINA!!!!!!!!!!! – berra, quando esta lhe dá as costas. – ME perdoe... Não foi minha intenção! Eu estou arrependida...
– “É possível repousar sobre qualquer dor de qualquer desventura, menos sobre o arrependimento. No arrependimento não há descanso nem paz, e por isso é a maior ou a mais amarga de todas as desgraças”, disse, certa vez, o brilhante Giacomo Leopardi² – dirige-se à patroa, com profundo desgosto. – Não é a mim que a senhora deve desculpas. É a Joaquim! Enquanto estamos aqui nos digladiando, ele está naquela delegacia, sendo apedrejado como um marginal; logo ele, um doce de homem... E tudo porque ousou amar sua patroa, cuja frieza espanta!
Catharine assusta-se com as palavras.
– FRIA... EU?
– Não é o nome que se dá à pessoa que não estende a mão a um semelhante à beira do precipício? – suas palavras caem como bombas no âmago de Catharine.
– O remorso não a devora? Aquele homem humilde cruzou o estado em busca de novas oportunidades, agora está atrás das grades, à espera de seu apoio, seja na forma de um telefonema ou de um abraço.
– EU NÃO POSSO FAZER ISSO! – repete.
– Anne-Louise Germaine Necker³, ou simplesmente Madame de Staël, se assim preferir, estava iluminada pelos deuses quando disse que “o remorso é a única dor da alma, que nem a reflexão nem o tempo atenuam”. Quer viver para sempre com a culpa a lhe pesar os ombros ou prefere a sensação de paz – a serotonina dos justos – a lhe correr o corpo? A decisão é sua!
Ela opta outra vez pelo silêncio.
– O que a senhora precisa é aceitar os fatos como eles são!
– E que fatos são esses? – pergunta, confusa.
– De que se for àquela delegacia, não resistirá mais à tentação e se renderá às teias da paixão, porque dentro de si, bem lá no íntimo, sabe que também o AMA!
– VOCÊ ESTÁ LOUCA? EU...
– Olhe firme em meus olhos e diga com toda a sinceridade: A SENHORA AMA MESMO GEORGE? AMA?
O telefone toca. Catharine tenta atendê-lo, mas é impedida pela empregada, que o segura preso à base.
– A senhora não o ama, não é? Por isso está gélida como os mortos! AMA Joaquim, mas teme os comentários vilipendiosos da sociedade... Quanta bobagem!
Um arrepio percorre o corpo de Catharine, que se recorda dos beijos no cemitério. Ernestina libera o aparelho e faz as malas, sendo acompanhada de longe pela patroa.
A polícia dispara balas de borracha contra a multidão, cujo desejo é dar cabo daquele que ousou pôr as mãos sobre a honra imaculada do vereador George Dumont. Portas estouram, janelas retorcem, vidros estilhaçados voam para todos os cantos... Nada resiste àquela violência.
– Delegado, o senhor deve manter a integridade do rapaz – solicita o médico, recolhido junto à autoridade e sua equipe a um quarto nos fundos, onde a porta é revestida por aço.
– Ele infringiu a lei, deve pagar pelo erro, doutor Rubens!
– O que quer dizer com isso? Que cruzará os braços e o deixará entregue à própria sorte? Que tipo de autoridade é o senhor que se julga incapaz de defender a integridade moral e física de um acusado? O que faz, se me permite a crueldade, é se vestir de juiz e decretar a condenação de um cidadão em cujos ombros ainda não recai qualquer condenação.
– Acusa-me de negligente? Olha aqui, se me desacatar outra vez, dar-lhe-ei voz de prisão – ameaça, ainda que visivelmente atordoado com as palavras do doutor.
– Pois o faça, delegado! – desafia. – Imagine sua cabeça amanhã, quando chegar à capital a notícia de que um acusado de homicídio fora apedrejado em frente à delegacia com o seu suposto consentimento e que a testemunha do caso está presa por DESACATO, apenas por exigir o devido cumprimento da lei, que assegura àquele homem o direito pleno de defesa. Será um escândalo! O senhor não só responderá a uma sindicância, como será PRESO.
– E o que quer que eu faça? Meus homens já estão lá fora... Não está ouvindo os disparos?
– Peça ajuda a outra jurisdição. Vila Bonita fica bem perto daqui, se o senhor solicitar apoio ao delegado de lá, outros homens virão; juntos, conterão a ira do povo, que, se duvidar, mal sabe o que faz aqui. Não podemos é ficar reféns desse estado de sítio, pois isso seria, no mínimo, uma sandice.
– Ele tem razão, delegado! – concorda um investigador. – Se nada fizermos, a imprensa pensará que estamos a favor do vereador e contra o motorista; isso seria imoral, até porque, não nos é atribuição o poder de julgar, mas o de cumprir a lei. Se não nos mexermos, o homem morrerá, passando de réu a mártir.
– O que os senhores afirmam é que nenhuma providência eu tomei? Isso não é verdade! Meus homens estão lá fora... – repete.
– Cristo! O que queremos dizer é que são poucos para conterem aquele mundaréu de gente – reforça o médico.
– Fiquem aqui! – Vendo-se contra a parede, o delegado se retira da toca, e busca, à revelia, proteger a vida do chofer.
– O que eu faço? Não posso cumprir suas ordens, pelo menos por enquanto, senhor. Aqui está um tal “doutorzinho”, a testemunha dos fatos, pronto para por a boca no mundo se eu não solicitar reforços – comenta a situação com alguém pelo celular.
– E por acaso esse “doutorzinho” atende por Rubens... doutor Rubens Arraia?
– SIM SENHOR! O que faço? Devo acionar o plano B? Arriscamo-nos muito já, não seria melhor pedirmos ajuda a ser denunciados como negligentes? Porque o senhor sabe, se minha cabeça rolar...
– Isso é uma ameaça, Paineiras? – pergunta o estranho ao delegado.
– Era meu marido no telefone, Ernestina! Ele quer minha presença – diz Catharine, entrando no quarto da empregada. Você me deixará mesmo? – olha as malas prontas sobre a cama e se assusta. – Já lhe pedi perdão, querida! O que mais preciso fazer para que mude de ideia?
– A senhora precisa ir, seu marido a espera!
– Não se vá, Ernestina! Por favor! – abraça-a com força. – Me perdoe!
– Catharine precisará muito de seus ombros, Ernestina! Nunca lhe falte, por favor... – o pedido de Franceline lhe corre à mente.
A empregada ama-a como uma filha! Então, que AMOR seria esse se não a perdoasse? Perdoar é difícil, exige a coragem de vencer todas as mágoas para voltar a ser feliz na companhia de alguém que se ama; mas vale a pena! Aquelas lágrimas de mulher arrependida lhe compensavam qualquer dor! Quem nunca errou na vida que atire a primeira pedra... Então por que ir embora? Termina por abraçá-la com imenso carinho.
– Não esqueça de Joaquim, por favor! – pede-lhe aos sussurros. – Ele não merece tamanho castigo.
Depois que Catharine parte para o hospital, ela retoma o envelope às mãos em cujas dobras há uma pequena marca de violação.
– Está na hora de acabar com todo esse sofrimento. Vou entregá-lo ao doutor Rubens Arraia, como me pediu dona Franceline. Saberemos, enfim, o que guarda de tão importante. Tomara que consiga ao menos salvar Joaquim... Pobre homem!
A chuva para, os desabrigados que se engalfinhavam por uma cobertura de lona, comemoram. Já para o desespero de Zé dos Cobres, um principiense da periferia, os bombeiros encontram a esposa, grávida de seis meses, morta embaixo dos escombros. Os gritos se misturam às lágrimas e são ouvidos à distância.
– Quem era no celular, Tanaka? – pergunta George, contemplando pelas frestas da janela a multidão que o aguarda.
– O delegado Paineiras Ken!
– E o que ele queria? O motorista já bateu com as botas, como planejamos?
– Não! – ressabia-se o prefeito. – Estragaram nossos planos.
– E quem fez isso? Por acaso isso não tem nada a ver com aquele doutorzinho... tem?
– Refere-se ao doutor Rubens Arraia?
– E quem mais? – estressa-se.
– Pois é! Aquele indivíduo fez uma ameaça velada ao Paineiras, daí a coisa ficou complicada.
– Estava tudo correndo bem! Que droga! – branda, comprimindo o gesso do braço. – Precisamos aniquilar aquela criatura, ela é a passagem para o nosso futuro tranquilo... ou se esqueceu?
– Claro que não, meu filho! Mas o quer que eu faça? – tosse. – Ave! Preciso de um saquê!
– Estamos em um hospital, Tanaka! O que pensa que servem aqui?
– Pelo menos um saquê aos convidados. Tô com a goela seca, seca!
– E por acaso isso aqui é alguma festa para receber convidados? Você é um irresponsável. Eu deveria ter acabado com aquele infeliz quando tive a oportunidade, mas preferi ouvir seus conselhos...
– Que deram certos! Veja, veja, já está eleito prefeito da cidade, a maioria da população grita o seu nome.
– Que se dane essa gentalha, o que eu queria mesmo era aquele motorista MORTO!
Catharine abre a porta e o surpreende.

Encerra com a música (Star Sky - Two Steps From Hell).
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1.Homicídio doloso é aquele que tem “dolo”, ou seja, intenção de matar.
2. Giacomo Leopardi foi um dos maiores poetas da lírica italiana. Sua obra revela muito pessimismo, melancolia e ceticismo.
3. Anne-Louise Germaine Necker, baronesa de Staël-Holstein, mais conhecida como Madame de Staël, foi uma escritora francesa que incorporou como poucas mulheres o espírito do Iluminismo francês.


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