FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 09
– Estava tudo correndo bem! Que droga! – branda, comprimindo o gesso do braço. – Precisamos aniquilar aquela criatura, ela é a passagem para o nosso futuro tranquilo... ou se esqueceu?
– Claro que não, meu filho! Mas o quer que eu faça? – tosse. – Ave! Preciso de um saquê!
– Estamos em um hospital, Tanaka! O que pensa que servem aqui?
– Pelo menos um saquê aos convidados. Tô com a goela seca, seca!
– E por acaso isso aqui é alguma festa para receber convidados? Você é um irresponsável. Eu deveria ter acabado com aquele infeliz quando tive a oportunidade, mas preferi ouvir seus conselhos...
– Que deram certos! Veja, veja, já está eleito prefeito da cidade, a maioria da população grita o seu nome.
– Que se dane essa gentalha, o que eu queria mesmo era aquele motorista MORTO!
Catharine abre a porta e o surpreende.
Homens armados descem das viaturas que chegam de Vila Bonita. A multidão berra, o confronto é inevitável; balas de borracha perdem-se no céu anuviado, bombas de efeito moral tentam conter os manifestantes, mas arredios, eles não se afastam, como se ganhassem algo por enfrentar a polícia. O comandante da operação, um senhor grisalho de uns cem quilos, com um megafone à mão, ameaça com prisão aos que insistirem na arruaça. Vaias se mesclam a risadas. Descrente na instituição, o povo não cumpre as ordens da autoridade, arremessando não só pedras e porretes, como pedaços de uma construção à delegacia.
Com a situação fora de controle, resta ao oficial disparar para o alto e berrar aos subordinados:
– PRENDAM TODOS! Essa cambada verá como é bom dormir no xadrez.
A cacetadas, os policiais irrompem a multidão, que se refugia atrás dos muros e dos postes. Na correria, uma senhora é pisoteada e grita por misericórdia. Dezenas de manifestantes são algemados e lançados às viaturas a pontapés, nem as crianças são poupadas – as capturadas são enviadas às autoridades judiciais. Os poucos que sobram permanecem escondidos, à espera de uma oportunidade para voltar para casa.
Escoltado, Joaquim é levado para um furgão, que o aguarda com as portas escancaradas.
– Me soltem! Eu não fiz nada! Por favor, acreditem em mim! – berra, em desespero, acompanhado pelos olhos apiedados de Rubens Arraia.
– O senhor vem com a gente também, seu depoimento será colhido pelo doutor Paineiras Ken em nossa delegacia, pois essa está interditada até última ordem – comunica o oficial ao médico.
– Como está, George? – pergunta Catharine ao esposo.
– Um pouco sonolento e com dor de cabeça – faz-se de vítima, percebendo que ela não havia ouvido a conversa dele com Tanaka. – Que bom que chegou, querida, senti muito sua falta!
– Vou me retirando, sabe como é, os pombinhos precisam ficar a sós... – graceja o prefeito.
– POMBINHOS? – ironiza a mulher. – Às vezes penso que lhe faltam alguns miolos, Tanaka. Não percebe que entre nós não há mais qualquer resquício desse sentimento, e se houver, deve estar enterrado em algum lugar tão sombrio que nós mesmos desconhecemos.
– Pombinhos, sim – insiste –, vejam, são lindos, até parecem saltados das telas de alguma telenovela de Glória Perez¹. Não há em Vila dos Princípios quem não os inveje, afinal, são ricos, cultos, elegantes e, principalmente, humildes.
– HUMILDES? – pergunta a mulher, num misto de surpresa e deboche. – Não sei qual é seu conceito de humildade, prefeito, talvez tenha de voltar aos bancos escolares e conhecer um pouco mais a fundo o léxico de nossa língua. Somos, se me permite a ironia, a aversão da humildade.
– Aversão da humildade? Então somos arrogantes? – revolta-se o vereador. – Perdoe-me, querida, mas nossa estirpe jamais padecerá de um mal como esse; às vezes somos vítimas da excentricidade, do luxo desvairado, daí à arrogância?
A herdeira dos Dumont percebe o mal-estar e se cala.
– Desculpe-a pela brincadeira, Tanaka! Catharine tem um humor rasteiro, de uma acidez peculiar.
– E quem não conhece as “farpas sutis” de dona Catharine Dumont? Não há nessa cidade quem ainda não tenha sido vítima dessa sua “acidez peculiar”.
O homem se retira exasperado com a postura da mulher.
– Por que está tão irritada? O que fez com Tanaka foi...
– Não vim até aqui para perder tempo com aquele beberrão – interrompe-o com aspereza.
– Pelo que vejo, está insatisfeita por me ver bem?
– Não! – balbucia.
– Vejo em seus olhos, queria-me um defunto, pronto para ser engolido pelos vermes, não é?
– Fale-me com sinceridade – se é que conheça a essência dessa palavra, como tudo isso começou? Eu ainda não entendo o porquê de um criado sacar-se de uma arma e disparar contra o patrão... A não ser que esse mesmo patrão lhe tenha feito algo, talvez uma ameaça...
– COMO ASSIM? Ameaça? Que tipo de ameaça? Está louca, Catharine? Meu Deus, além de uma bala no braço, ainda tenho de ouvir tal sandice? Que piada de mau gosto! Todo mundo sabe, aquele matuto pulou em mim e passou a me espancar, parecia dominado por um espírito ruim.
– Não foi o senhor que o desafiou, dando-lhe, inclusive, uma surra em nosso hall de entrada?
– Quem lhe disse isso? Ah, já sei, deve ter sido aquela criada dos infernos, mas ela me paga, ah se paga!
– Por que insiste em mentir, George? O que ganha com isso?
– NÃO ESTOU MENTINDO! – grita. – Sou a vítima, não o acusado. Por que duvidas de mim, criatura?
– Continue berrando, o povo e a imprensa que o aguardam adorarão conhecer sua outra versão, aquela em que zelar pela família ou nascer pobre é defeito genético. Seus eleitores podem se revoltar, imagine invadirem o hospital e lhe cobrarem pelos votos das últimas eleições?
– Ainda não entendi... Aonde quer chegar?
– Você sabe! – afirma, não acreditando ser esposa de um homem tão vil.
– Por que está me olhando assim? – estranha. – O que lhe fiz, Catharine?
– Como pode ser tão dissimulado? Não é à toa que é um político em ascensão! Se não fosse de carne e osso, diria que é a reencarnação de Macunaíma, ou o modelo a quem Mário de Andrade se ateve para criá-lo.
– Se eu pudesse levantar dessa cama...
– ...e o que faria? Espancar-me-ia de novo? – desafia. – Ó, George, só agora percebo o quanto é previsível!
– O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? NÃO VÊ, ESTOU EM UM HOSPITAL, RECUPERANDO-ME DE UMA CIRURGIA! CADÊ SUA... SUA SOLIDARIEDADE?
– Sou a sua imagem, incapaz de emitir qualquer sentimento, ainda não percebeu?
– Por que me ofende tanto, mulher?
– Porque não entendo o que faz um homem que se intitula defensor dos mais humildes arruinar a vida de um coitado como Joaquim! Se não gostava dele, demitisse-o; agora, forjar uma situação para ele perder a cabeça e quase cometer um assassinato? Isso é cruel, melhor, desumano!
George acompanha-a com os olhos admirados.
– Sabe do que estou dizendo, não sabe, vereador? Aquele coitado não seria capaz da monstruosidade de que o acusa, não é?
– Os fatos mostram o contrário! – aponta para o braço. – Ele não é o anjo que imagina, aliás, de anjo ele não tem nada, basta roçar aqueles cabelos arrepiados para se encontrar os chifres.
– O QUE VOCÊ FAZIA NO QUARTO DELE??? – exige com veemência. – RESPONDA-ME: O QUE FAZIA NO QUARTO DELE?
George engole a saliva.
– O QUE VOCÊ FAZIA NO QUARTO DELE? – insiste.
– Eu... eu não estava...lá...quer dizer...
– E onde foi baleado? Em nossa casa? Não, no quartinho do empregado. Estou errada?
– Ele... bem...ele me levou para lá...
– Marcilio Ficino² estava mesmo certo, “a mentira arruína rapidamente o mentiroso”.
– MENTIROSO? – os olhos inflamam de raiva. – VOCÊ ESTÁ ME CHAMANDO DE MENTIROSO? QUE AUDÁCIA!
– Deixe o cinismo de lado, George, Moacir me contou tudo durante o caminho, ele o viu entrando no quarto de Joaquim por livre e espontânea vontade.
– Moacir lhe disse isso? Não me faça rir! Acredita mesmo naquele velho maluco? – zomba. – E o que mais ele lhe contou?
– Que em suas mãos estava uma arma – completa, surpreendendo o vereador, que arregala os olhos.
– Então foi ele quem disparou a arma contra o vereador? – interroga o delegado Paineiras Ken, já na delegacia de Vila Bonita.
– Fale tudo... tudo!
– Bem, eu o vi apontando a arma para ele, então... – responde doutor Rubens.
– ...então foi ele mesmo! – entrecorta-o o delegado, para a surpresa até do escrivão. – Foi ele, é claro! Deve ser inveja! Hum!
– Inveja de quê? – pergunta o médico, estranhando a parcialidade da autoridade.
– Bem... – tosse, desconversando. – É modo de dizer, doutor. O senhor é muito apegado às palavras.
– As palavras têm peso, senhor.
– ISSO É VERDADE! – concorda o escrivão, que se encolhe, ao ser repreendido pelos olhares indignados do delegado.
– O senhor viu ou não o motoristazi...o motorista atirando no vereador George Dumont?
– Atirando não, mas apontando a arma para ele.
– É a mesma coisa! Tudo acaba no tiro...
– Não é a mesma coisa. Não assinarei esse testemunho se não estiver do modo como relatei.
– Como o senhor é encrenqueiro, doutor Rubens! Estou apenas cumprindo a rotina. Um dos cidadãos mais ilustres de Vila dos Princípios fora baleado, portanto é justo que a polícia esclareça o fato para que o Judiciário sentencie a pena... – volta-se para o subalterno -... aliás, veja nos arquivos se o tal criado tem licença para portar uma arma e se ela está registrada no nome dele.
Corrigido o depoimento, ele faz a sua leitura minuciosa do termo e o assina.
– Não sou encrenqueiro, senhor delegado, apenas justo, porque se eu disser algo de que não seja a VERDADE, o pobre poderá passar anos atrás das grades, injustamente.
– Esse bicho ainda vai dar trabalho! Hum! Se eu fosse o prefeito, acabaria é com ele! – resmunga Paineiras, vendo-o deixar a delegacia.
– Um Abacataré³ – caçoa um presidiário, vendo Joaquim se aproximar.
– Entra aí, vagabundo! – o policial retira as algemas e o empurra para dentro de uma cela em que há outros quarenta detentos – um covil de lobos preparado para devorar a nova ovelha.
– Tá puxando cana por que, irmão? – inquire um crioulo de pouca idade, com bigode rasteiro e sem os dois dentes dianteiros, aparentando ser o líder da cela.
O medo o impede de responder, para o delírio da bandidagem, que bate nas paredes, pedindo o seu sangue. A vida ali, infelizmente, é uma moeda depreciada.
– É fruta? Se for, hoje não tem pra ninguém, é só meu – diz outro detento.
– E meu também!!! – gritam duas ou três vozes diferentes.
– O irmão tá tirando o muquifo? Por que não responde? – o suposto chefe prensa Joaquim contra a parede. – O que ele aprontou, Zelão? – volta-se para o policial, que está à grade, rindo da desgraça alheia.
– 121.
– É um dedo mole⁴? Hum! E aí, cambada, vamos jantar esse noia? – zomba o rapaz.
– Noia? Arguém me chamô? – pergunta um amarelo, ao fundo, encostado a uma cama de concreto.
– Não, Vacão! Chera queto o teu fubá aí... – responde, virando-se, em seguida, para o chofer. – Fala, se não eu te furo.
– Então quer dar um de vichenzo⁵? Pois vamos ver! Estou louco para rasgar esse desgraçado! Se você não furar, eu furo– deleita-se o detento mais velho da cela, ao se aproximar, com um punhal feito com escova de dentes às mãos.
– Cê aguenta, Messias? Pois eu pago pra vê o arranca rabo – diz o policial, gargalhando.
– Por favor, não me mate! Por favor! – implora, Joaquim, com a mente elevada às orações ensinadas pela mãe.
– Ernestina?! – pergunta o médico, ao entrar em sua casa. – O que faz aqui a essa hora? Aconteceu alguma coisa com Catharine?
– Precisava falar com o senhor, o assunto é de seu interesse.
Entrega-lhe o envelope.
– Que brincadeira é essa, Ernestina? – assombra-se ao rever a letra de Franceline. – Não estou entendendo nada! Essa letra é de... de..., mas... mas...COMO?
– Abra-o e entenderá! – determina, não contendo a ansiedade.
Encerra com a música (Victory - Two Steps From Hell).
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1. Uma das principais escritoras de novelas brasileiras. É de sua autoria O Clone (2001) e Caminho das Índias, esta última, vencedora do Emmy 2009 (a maior premiação da televisão), na categoria de Melhor Novela.
2. Filósofo italiano. Traduziu obras de Platão e difundiu suas ideias.
3. Segundo a linguagem dos presos, caipirão, bobo.
4. Assassino.
5. Pessoa boba, honesta.
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