— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! — desespera-se Álvaro, indo ao socorro da cigana, que aparenta não mais respirar. — AUROOORA!!! AUROOORA — dá-lhe tapinhas na face —, EI, VOLTE, POR FAVOR!!! POR FAVOOOR!!! FIQUE
COMIGO!!!
FIIIQUE!!! — corre as mãos pelo colo dela, manchando-as com o sangue, que jorra
de um furo próximo do coração. — VOLTE!!! VOLTE!!! NÃO SE VÁ!!! — cada palavra
é pronunciada em um tom mais elevado, como se perdesse um grande amor. —
VOOOLTE!!!
“O
QUE É ISSO??? ELE A AMA???” — questiona-se Diana, admirada com o sofrimento do
bandido. “ENTÃO AQUELA HISTÓRIA DE EU FUGIR COM ELE ERA TUDO MENTIRA!!!” — deduz,
quase fora de si. “COMO FUI IDIOTA!!! QUASE ACREDITEI!!! ERA UMA EMBOSCADA, NA
CERTA!!! MAS O
QUE
GANHARIA COM ISSO??? O QUÊ???” — não encontra uma resposta plausível.
—
AUROOOOOORA!!! — remexe-a, na esperança de que inspire, abra os olhos e lhe dê
um sorriso, por mais franzino que seja. Mas a mulher não reage. Então se
levanta, encara a fera, que à frente, aponta-lhe a arma, como se quisesse
também acertá-lo, mas não consegue puxar o gatilho, por mais desatinada que
estivesse. — VOCÊ NÃO DEVIA TER FEITO ISSO, ELA NÃO MERECIA!!! — os
olhos
agigantam-se à medida que se injetam de um vermelho rubro.
—
A MULHER QUE VOCÊ ACABOU DE MATAR ME SALVOU DIVERSAS VEZES DOS PERIGOS DA VIDA
E SABE POR QUÊ??? PORQUE ME AMAVA, DIANA… OU SEJA LÁ QUEM VOCÊ FOR!!! — as
lágrimas que descem se mesclam à baba, que corre pelos cantos da boca. — ELA ME
AMAVA!!! ME AMAVA COMO NENHUMA OUTRA!!! PORQUE SÓ QUEM AMA É CAPAZ DE ABDICAR
DA PRÓPRIA EXISTÊNCIA PARA SALVAR AQUELE A QUEM ESCOLHEU PARA MORAR NO TRONO DE
SEU CORAÇÃO…
—
Poético!!! — ironiza. — E você a amava??? — atira a isca, temendo a resposta.
—
INFELIZMENTE, NÃO!!! — grita. — QUEM EU AMO… — enche os pulmões de ar e o solta
em meio a uma risada de nervoso.
—
… ESTÁ À MINHA FRENTE, COM UMA ARMA APONTADA PARA MIM!!!
—
Mentira!!! — não consegue acreditar. — Você estava apenas brincando comigo,
assim como fizeram todos os outros.
—
Do que você está falando? Apesar de tudo que me aprontou, tratando-me inclusive
por estuprador, se precisar, morro por ti!
“Ele
mente! Mente muito! Portanto, não perca a oportunidade e mate-o já!” —
aconselha-a uma voz interior, que não se cala, desejosa de sangue e desgraça.
“Mate-o, Diana! O que espera? Vamos! Ele está na mira! Será rápido! Faça o
disparo!”
—
Não vê que se perdeu? — continua o bandido. — Se tinha alguma honra, esta,
infelizmente, desfez-se… E a troco de quê? A vida do crime é cruel, só está
nela quem não teve outro caminho, diferente de você, que parece apreciá-la com
a nítida intenção de cicatrizar as feridas de um passado dolorido… Não precisa
ser nenhum vidente para saber aonde tudo isso vai parar!
—
Exatamente! — interrompe o Português, contrariado com as palavras do rapaz. —
Não precisa ser nenhum vidente para saber que, a partir deste momento, você é a
nova Mandatária desta Família, aquela que dá as cartas, coordena as ações,
determina quem vive ou morre… Conseguiu o que tanto queria, minha Deusa
Bandida. O mundo é seu! Curta-o como quiser!
—
O… o que ele… ele… está dizendo??? — questiona-se Egídio, recobrando os
sentidos, enquanto pressiona a cabeça, que dói demais.
—
Ele não po-pode estar falando sério… Canalha! Me enganou direitinho! — tenta se
levantar, mas não consegue; tudo gira ao seu redor. — Filho da puta! O que está
fazendo com a garota é o mesmo que fez comigo… De início ele é a melhor pessoa
do mundo, oferece mundos e fundos, concorda com tudo, aceita cada proposta como
se realmente se importasse e, quando menos se espera, a rasteira vem e é fatal
— está revoltado. — O cara usa, abusa e joga fora! E do topo prometido da
Família, resta-me apenas o chão, onde estou. Mafioso desgraçado! Mas deixe
estar, ele acabou de assinar a própria sentença de morte.
—
O que cê tá falando, truta? — indaga Ribeiro, não compreendendo nada. — Esse
peste deve tá variando, também, depois da pancada que levou, não era pra menos…
Hum! Fique esperto, malandro! Desta vez foi por pouco! — chuta-lhe uma das
pernas e se afasta.
— O QUE ELE ESTÁ DIZENDO??? — assusta-se Álvaro. — NÃO ACEITE!!! POR FAVOR!!! VAMOS DAR O FORA DAQUI, REFAZER NOSSAS VIDAS EM OUTRO CANTO — insiste na proposta —, ENQUANTO HÁ TEMPO!
—
Querida, faça-me uma gentileza! — chama-a o lisboeta. — Para o bem de toda a
Família, o extermine! Não permita que ele aja como um gafanhoto, a oitava das
dez pragas do Egito, e devaste seu bondoso e singelo coração… É persuasivo e
terrivelmente passional… um perigo! — constata. — E o que quer, se ainda não
percebeu, é vingar a morte da ciganinha de Sousa, uma mulher sem estirpe, que
usou dos maiores truques para enganar um bando de criminosos abobalhados e
supersticiosos. Parar uma arma? — gargalha. — Só se estivesse com defeito ou
sem munição, porque nem o Cordeiro, no auge de seu poder, conseguiria tal
proeza.
Com
o dedo no gatilho e Álvaro na mira, Diana prepara-se para o disparo; em
silêncio, ele apenas a encara com os olhos de quem se decepcionou, não temendo
a bala que lhe tiraria a vida. Já a fera respira bem fundo, sua frio pelas mãos
e pela fronte, enquanto mordica uma ponta dos lábios, de onde saltitam algumas
gotículas de sangue.
—
Vamos, minha Deusa, agora tu és BANDIDA e conheces muito bem o gosto
maravilhoso de se tirar uma vida… Até hoje não me esqueço das 80 mortes que
carrego nas costas e tenho guardadas comigo a sensação irradiante e peculiar
que cada uma delas me proporcionou — abre outra garrafa, enche a taça e a
entorna de uma só vez. — “Eu adoro ouvir o som de cabeças estourando, isso
realmente me deixa em êxtase e faz minha vida ter sentido!”¹ — é de uma frieza
demoníaca.
—
O que está esperando? Mate-o!
Não
bastassem as investidas do Português, dentro da garota havia uma guerra. Se uma
voz pedia que o assassinasse, outra, mais sóbria e talvez tocada por um
sentimento que jamais teve a oportunidade de vivenciar, como é o AMOR, pregava
o contrário; que ela desistisse dessa loucura, e o deixasse partir, pois como
ela mesma ouvira, ele a amava como nenhum outro e por ela seria capaz dos
maiores absurdos, como renunciar à própria vida.
—
MAAAAAATE-O!!! — ordena, quase partindo a mesa de vidro com um murro.
—
Des-desculpe!!! — diz ela ao homem que tanto a ama, numa voz quase inaudível. —
A vida nem sempre é como a gente imagina!
Álvaro
fecha os olhos.
—
Senhor, senhor… — interrompe o piloto, em surto, procurando pelo lusitano, para
o alívio de uma deusa empalidecida, cujos cabelos encontram-se parcialmente
encharcados -, a polícia está vindo! Acabaram de me passar pelo celular.
—
E como nos descobriram? — estranha.
“Você
não tem mesmo imaginação, Portuga. Prepare-se! Isso é apenas o começo” — Egídio
dá uma risadinha, após passar uma mensagem a Zangado, informando que Luizinho
havia dado cabo da vida do velhote. Preso, inconformado por ter perdido o amigo
e sentindo-se traído, delata todo o esquema.
—
Não sei! Precisamos partir ou seremos capturados.
—
E o que faremos com os corpos? — pergunta Ribeiro, chutando o Camaleão. — Não
podemos carregá-los! E que serventia dois mortos teriam? Ainda se fôssemos
canibais…
—
Qual é a sua primeira ordem, minha querida e ousada senhora do crime? — exige o
temível lusíada. — Estou curioso para conhecer!
Os
olhos sem reação de Diana correm pela cigana até encontrarem o Patrão, um pouco
mais atrás; ao invés de arriscar uma decisão, opta pelo silêncio.
—
Minha deusa, o que eles devem fazer? — reitera, irritado. — Aguardam seu
comando!
—
Que os queimem! — devolve, como se realmente não se importasse.
—
Isso não será possível! — alerta o piloto, que havia recebido outra mensagem. —
Os oficiais estão a sete quilômetros, é o tempo que temos para nos livrar dos
“presuntos” e preparar a aeronave para a decolagem. Senhor, o caso é grave —
tenta convencê-lo —, temos de ser cirúrgicos agora, uma falha e todos nós
terminaremos atrás das grades.
—
Jogue-os na pista e passe por cima — brada o lusitano.
—
Não! Não farão isso com Aurora — diz Álvaro, completamente fora de si,
pegando-a nos braços. — Eu a deixarei acomodada em algum canto. É o mínimo que
posso fazer para retribuir tanta dedicação. E ninguém me impedirá, ouviram? A
não ser que me matem antes! Então vamos!
—
Liquide-o! — determina o lisboeta.
—
Deixe-o ir!!! — Diana não demonstra, mas no fundo está impressionada com o
coração do bandido, que se revela uma joia rara, dessas que se adquire apenas
para admirar.
—
Isso terá consequências, minha pequena princesa do crime! E o valor a ser
cobrado terá de ser pago na mesma moeda adotada às demais pendências ou se
esqueceu de nosso acordo? Tenho certeza que não! Mas calma, a fatura está
dentro do vencimento, portanto, será empenhada oportunamente. E lembre-se, sou
um homem que zela pelos termos contratuais; assim como os respeito, também os
executo com o mesmo vigor!
Álvaro
desce a escadaria, sendo acompanhado pelos olhares confusos da fera, e acomoda
o corpo a alguns metros do avião, ao lado de um poste de luz circundado por um
pequeno gramado.
—
Desculpe, mulher! Eu tentei, mas não consegui! Era para eu estar em seu lugar,
mas você, outra vez, me salvou… Que amor era este? — enche os olhos de
lágrimas. — Se eu pudesse retribui-lo, certamente, seríamos felizes, mas minha
alma pertence a outra pessoa, de índole perversa e mente desgraçada — arfa. — É
óbvio que se eu tivesse a oportunidade de mudar as coisas, escolheria ter-me nos
teus braços, porque você era diferente, tinha uma pureza de espírito, um
sorriso reluzente, uma feição carregada de bons sentimentos. Mas quem é que
manda no coração? Se alguém encontrar a fórmula, que a distribua, muitas
maldades seriam evitadas… — duas lágrimas partem de seus olhos em direção à
cigana; a primeira é colhida ainda no ar enquanto a outra cai sobre sua face.
—
“… Um cordeiro imolado não encontra o anjo da morte.” — a voz do avô de Aurora
é ouvida por Álvaro, que se vira, assustado, com os pelos dos braços
arrepiados, pensando ser a polícia.
—
Quem está aí? — levanta-se.
—
Sou eu, seu burro, vamos zarpar — avisa Ribeiro.
—
E o que fez com o Patrão?
—
Você quer dizer ex-patrão, correto?
—
Você entendeu! — responde, observando todos os lados, na intenção de encontrar
mais alguém.
—
Eu o deixei de ponta-cabeça na privada dos mecânicos das aeronaves — dá uma
forte risada —, vai pingar a noite toda e quando o encontrarem, estará mais
inchado que um porco abatido.
—
Quanta maldade! — aterroriza-se.
—
Isso é pouco pelo que ele fez pra tanta gente… A esta hora deve estar
cozinhando no caldeirão do inferno, recebendo garfadas do próprio demo.
—
Tu realmente escolheste um bom moço, minha querida menina! — diz o avô,
contornado por um forte lampejo, ao lado da neta, fixando-se em Álvaro, que
adentrava a aeronave, demonstrando forte inquietação. — Os caminhos dele foram
muito dolorosos, assim como estão sendo os teus. Mas diferente dele, tu não
estás sozinha. Nunca estiveste. E os ancestrais estão enobrecidos pelo grande
gesto de coragem que demonstraste; ao invés de deixá-lo levar o tiro,
sacrificaste a si mesma. É isso que se esperas de um cigano: que leias o
destino e se prepares, porque o que estás escrito, não se apagas… Mas graças ao
livre arbítrio, pode ser alterado. E foi o que fizeste! Alguém tinha de receber
o disparo e não pensaste duas vezes.
O
homem ajoelha-se, abre os braços e estende sobre ela as mãos, que alvas e
tranquilas, emitem feixes de luz de todos os tamanhos, formas e cores. Com os
olhos fechados, abaixa a cabeça, em oração, enquanto ao fundo, anjos, muitos
deles, talvez um exército inteiro, em filas indianas que não encontravam fim,
com trombetas à boca, aguardavam uma espécie de sinal para poderem entrar em
ação.
—
Chegaste a hora de ser recompensada! — anuncia o velho, com o semblante vívido
e sereno, percorrendo o corpo da mulher, que apresenta os primeiros sinais de
que a vida se esvaiu.
E
investido por uma autoridade celestial, invoca o poder de sua protetora, que
escoltado pela aragem, deixa o ponto mais alto do céu, onde brilha a estrela
mais bela, indo ao encontro do homem, que implora pela vida da neta, com todas
as forças de um coração iluminado:
“Farol do nosso
caminho!
Facho de Luz!
Paz!
Proteção!
Suave conforto.
Amor!
Hino de Alegria!
Abertura dos nossos caminhos! Harmonia!
Eu te imploro, livra minha neta dos cortes, afaste-a das perdas.
Dai-lhe a sorte!
Faça de tua vida um hino de alegria,
Por isso, aos teus pés a coloco, minha Sara, minha Virgem Cigana…
Tome-a como oferenda e a faça de flor profana o mais puro lírio, que orna e
traz bons presságios à Tenda.
Um relâmpago corta o céu, que se fecha; uma garoa fina cai, purificando a terra
e espantando os maus espíritos.
Santa Sara,
nós, filhos dos ventos, das estrelas, da Lua cheia e do Pai,
pedimos a tua proteção contra os inimigos.
Ilumine a vida de AURORA para que tenha um presente e um
futuro tão brilhantes,
como são os brilhos dos cristais.
Que dê a ela luz para que deixe a escuridão, Fé para que atravesse o mar das
desgraças, Força para que vença o medo,
Coragem para que regresse a este corpo tão machucado,
E assim como fizeste o Cordeiro com Lázaro, por misericórdia, Que lhe devolva a
Vida!
Devolva! Devolva, Senhora!
Eis que te imploras o coração de um avô apaixonado pela neta”.²
A
chuva vira uma tempestade, para o desespero do piloto, que já se prepara para
decolar.
—
Que estranho, o céu se fechou e de repente! A previsão do tempo estava furada!
Dá até medo!
—
Medo de quê? — pergunta Diana, desconfiada.
—
Não sei lhe explicar, mas meu coração está pesado…
—
Muitos pecados! — gargalha a garota. — E pare logo de conversa, a polícia está
a alguns minutos daqui, se nos pegarem, iremos todos à guilhotina.
—
Não pode ser!!! — diz Álvaro, da janela, com os olhos espantados presos à
cigana. — O que é aquilo?
A
ele é consentido o poder de enxergar além das muralhas do tempo… E lá está o
avô, compenetrado, clamando pela protetora.
—
O que você está vendo aí??? É a polícia??? — indaga a filha dos Vaz, vendo-o
perdido nos pensamentos. — Mas não há nada lá fora, a não ser o corpo daquele
lixo… Que apodreça!
—
Não! — responde.
—
Não o quê? — ela não entende.
—
Há um exército ao lado dela!
—
Exército? Onde? Tem lido muito a Bíblia como o Português, porque lá não há mais
ninguém… Por falar no infeliz, foi só ouvir que a polícia estava a caminho para
dar o fora. O bicho é rasteiro feito uma raposa!
Um
trovão treme a terra, amedrontando os tripulantes, menos Álvaro, que extasiado,
vê os anjos entoarem suas trombetas enquanto o sopro do Criador, advindo do
trono, por intercessão da padroeira dos ciganos, reassumia o corpo da pobre
cigana, resgatando-a das profundezas do esquecimento e lhe devolvendo o que
tanto almejava um avô tão apaixonado. Mas o milagre não se fazia pelo pedido
dele; decorria-se do grande gesto que ela teve. Havia compreendido o recado. Um
cordeiro imolado jamais encontra o anjo da morte!
—
O que é isso? Tá acontecendo alguma coisa lá em cima — diz o piloto, tapando os
ouvidos. — O tempo, misteriosamente, virou. Se continuarmos, poderemos ser
atingidos por um raio.
—
Deixe de histórias e levante voo imediatamente — ordena a nova mandatária,
temendo as forças policiais, que já se avizinhavam.
—
Mas, senhora…
—
É isso ou vai conversar com os demônios — aponta-lhe a arma.
O
barulho das sirenes ressoa, denunciando as viaturas, que invadem o aeródromo;
uma delas avista o corpo da cigana e para ao seu lado, enquanto as outras
atiram, tentando abater o avião, que corre pela pista, até ganhar o espaço e
desaparecer na imensidão.
—
Ela está muito ferida, respira com dificuldades — alerta Duarte, o responsável
pela operação, tentando se defender da chuva
—,
e os batimentos cardíacos estão muito fracos! Olhem isso — aponta para o colo
da cigana —, é a perfuração de uma bala, mas… como pode? Ela está cicatrizada!
—
Deve ser alguma marca antiga — arrisca outro agente.
—
E então o que é todo este sangue fresco em suas vestes? Tenho certeza, veio
desta ferida, que estranhamente, passou por uma cauterização. Mas deixemos de
suposições, ela tem de ser socorrida imediatamente. Chamem uma ambulância!!! —
ordena.
—
Senhor, estão todos ocupados com o inferno que se tornou a Sol Nascente.
—
Então teremos de levá-la na viatura. Vamos! Me ajudem! Está chovendo demais!
—
E quanto aos outros bandidos, senhor?
—
Acabei de encontrar o corpo de um deles na privada dos mecânicos — anuncia um
jovem soldado, bastante ofegante, achegando- se. — E pelas descrições do
Zangado, ele deve ser o tal do Patrão. O que fizeram com ele é bizarro! Deve
ter sido queima de arquivo! Só pode!
—
Mataram o Patrão, também conhecido como Camaleão? — espanta-se Duarte. —
Fizeram todo aquele espetáculo para recuperar o tal do Álvaro e matam logo o
mandante da quadrilha?
—
Mandante em partes, senhor; acima dele está o Português — corrige o jovem.
—
Toda esta história está muito confusa! Preciso de ajuda e só há uma pessoa
capaz de me dar o norte… Agora vamos, a moça não vai aguentar por muito tempo!
—
E quanto ao Patrão?
—
A Polícia Civil recolherá o infeliz! E assim é feito…
E
o avô ali permanece até a neta deixar o lugar.
—
A vida tem a duração ideal, então paciência, minha pequena, logo nos
encontraremos. Agora continues a tua jornada sem olhar para trás, porque há
muito o que reparar… Teu caminho até a redenção é estreito e ardil, mas
lembre-se, nunca estarás sozinha!
Minutos
depois, no hospital…
Duarte
está no leito de Enrico, quer acordar o delegado afastado e lhe pedir
conselhos, pois os criminosos, com uma audácia incomum, praticaram ataques
coordenados à Capital do país, com o intuito de espalhar o caos e a desordem,
enquanto promoviam o resgate de um dos membros da quadrilha. Mas lhe falta
coragem, então abaixa a cabeça e retorna à porta de saída, quando é
interceptado pela própria autoridade, que o interpela:
—
Então desiste tão fácil assim? Eu o estava acompanhando para ver até onde iria.
E olhe, surpreendeu-me pela falta de ousadia!
—
Desculpe, senhor! Volto outra hora! — está desconcertado.
—
Deixe de rodeios, se veio me ver, é porque está encurralado, não é isso? Ouvi
há pouco que estava liderando a força-tarefa responsável por capturar a
quadrilha do Camaleão; confesso, enchi-me de orgulho, afinal, trabalhamos
juntos.
—
Estou muito perdido! Preciso de sua ajuda!
—
Percebi desde o momento em que entrou aqui, mas acontece que estou suspenso
temporariamente de meu cargo.
—
Dê-me um norte! O Patrão foi assassinado.
—
Como assim? — se interessa.
Conta-lhe
tudo o que sabe, desde os primeiros ataques à delação de Zangado.
—
Fizeram tudo isso para resgatar o bandidinho, disso eu já sabia, até tentei
salvar Chiara e a equipe, mas, diante da ofensiva, se viram rendidas e
parcialmente assassinadas. Entretanto, a história não fecha. O que tinha de tão
importante aquele meliante? Parecia- me um bobalhão, apesar de que as
aparências enganam… Talvez ele guarde algum segredo, mas eu não acredito nisso!
E quanto ao Patrão, certamente armaram-lhe uma emboscada, mas por quê? De uma
coisa tenho certeza, foram inteligentes demais, atraíram a atenção das Forças e
da imprensa, simulando uma possível guerra entre facções rivais pelo controle
do tráfico de drogas na Sol Nascente. Se eu estivesse lá, poderia ter ajudado —
diz Enrico.
—
E como? Com essa perna assim? Esqueça! E por falar em equipe, Clóvis foi o
único que se salvou!
—
Eu sei e tenho dó do coitado! Deve estar em transe.
—
Aí que se engana! Está obstinado em desvendar o sumiço dessa bandidagem, até me
pediu para avisá-lo de que conseguiu a quebra dos sigilos que solicitou e a
cópia do contrato de locação do imóvel que serviu de cativeiro à filha dos Vaz.
Toda a documentação será entregue amanhã cedo.
—
E para quem? A delegacia está em ruína.
—
Fique tranquilo! Darei um jeito de pegar o material.
—
Se realmente conseguir, estaremos a um passo de prender esta gente… Confie!
—
Mas quem é que prende o Português? O malandro domina parte dos criminosos deste
lado do oceano… Dizem que atira com uma mão e dá sopa aos necessitados com a
outra. Um gangster! Não temos força para vencê-lo e o tal Camaleão é o maior
exemplo disso, deve tê-lo posto à prova e terminou com a cabeça dentro de uma
privada.
—
Algo me diz que a filha dos Vaz tem muito a nos explicar, em outras palavras, é
a chave de todos estes mistérios.
—
O senhor se refere a Luara? Não está sabendo da última? O pai dela deu queixa
há pouco de seu novo sumiço…
—
O quê? Outro sequestro? — balança a cabeça. — Tá que eu acredito! Ela fugiu,
como eu havia dito a Chiara. Se especular, descobrirá que ela está por trás de
tudo isso.
—
Também está envolvida com a quadrilha?
—
Dê-me um pedaço de papel e uma caneta… Peça à enfermagem, vamos!
—
Aqui! — entrega-lhe.
Enrico
faz diversas anotações, acompanhado de perto pelos olhares curiosos do oficial,
que não alcança o raciocínio preciso do delegado afastado.
—
Não tenho mais dúvidas — liga os fatos aos seus respectivos autores, rasgando a
folha em pedaços —, amanhã, quando estiver de posse das informações, daremos o
xeque-mate. Veja bem, um sequestro que terminou sem o pagamento do resgate, com
a vida da vítima ilesa e com um dos bandidos que a sequestrou preso, acusado
inclusive de estupro… — dá um estalo —, taí, onde estão os exames que ela
fizera depois de ser resgatada?
—
Não sei, senhor!
—
Tente consegui-los…
—
O que tem em mente?
—
Olhando por outro prisma, armaram uma emboscada para o Camaleão sim, usando o
sequestro como isca. Está na cara!
—
Senhor, não só mataram o vagabundo, como tentaram fazer o mesmo com a piriguete
dele.
—
De quem está falando?
—
Da cigana Aurora, uma das foragidas da Justiça, acusada de participação em
diversos assaltos, inclusive no malsucedido de Piracaia, na região de Bragança
Paulista, no Estado de São Paulo. Puxei tudo pelo sistema, a mulher é procurada
há um bom tempo.
—
Cigana??? Hum!!! — Enrico lembra-se do dia do tiroteio. — Verdade! Ela estava
lá! Agora me lembrei! — coça a cabeça, enquanto organiza as ideias. — Duarte,
se os quiseram mortos, é porque outra pessoa tomaria o lugar deles… mas quem? O
Português é quem manda, abaixo dele, estão marionetes que obedecem a todas as
suas ordens, no caso, o Patrão e a cigana, que, a julgar pela delação do Anão,
vacilaram feio no tal assalto, em que todo o grupo terminou morto, exceto a
mulher. O sequestro foi armado com a ajuda da filha de Leonor Vaz, isso é fato
consumado, porque precisavam compensar a quadrilha pelos fracassos, supondo que
o general da reserva, o tal de Martim, tivesse a grana…
—
Mas o que ganharia dona Luara?
—
E ela não está “desaparecida”?
—
Até onde sei, sim!
—
Está aí a resposta…
—
Que resposta, senhor?
—
Ela é a nova camaleoa — os olhos brilham.
—
Me desculpe, mas o senhor está variando… Como aquela garota poderia gerir a
organização? E por que ela faria isso?
—
Consegue explicação melhor? Ela tramou tudo isso junto ao Português para
assumir o poder da quadrilha. De bobinha não tem nada.
—
Uma menina de família abastada buscando associar-se ao mundo do crime? Não tem
sentido! Só se fosse louca como a mãe…
Enrico
sorri.
—
Entendeu? Filha de quem é… — o delegado é certeiro.
—
Não! Se fosse assim, todo maluco seria bandido!
—
Entenda, meu caro, no último curso que participei sobre doenças mentais,
inteirei-me do Transtorno Dissociativo de Identidade. Já ouviu falar? Posso
estar divagando, mas alguém que planeja o próprio sequestro e não se preocupa
com o sofrimento da própria família, ou padece de mau-caratismo ou…
—
… ou…? Complete, doutor!
—
Ou apresenta uma grande probabilidade de guardar uma outra personalidade,
muitas vezes perversa… É mais ou menos assim, uma pessoa com TDI sente como se
tivesse duas ou mais identidades, cada uma com um modo diferente de pensar,
ainda que manifestadas a partir do mesmo ser. Enquanto uma goza da bondade
extrema, do acolhimento social, apresentando-se como a figura mais perfeita ou
a mais carente possível - a depender do contexto em que estiver inserida; a
outra é o reverso, atuando no submundo em busca de algo que a satisfaça e lhe
permita se vingar do mundo… Na cabeça dessa gente, tudo é muito turvo e
imprevisível!
—
O senhor está exagerando! Ser criminosa é uma coisa, ter dupla identidade é
outra. Ela precisaria ter sofrido muito para que isso fosse desencadeado e a
possibilidade de se desenvolver a doença, ainda assim, seria muito baixa.
—
Mas foi assim que o tal do Eufrásio a descreveu em seu último depoimento,
quando ela o ameaçou. Falou até em mudança de chave. Bastava alguém surgir para
que ela alterasse a personalidade. Da criatura adocicada à megera endemoniada.
E vindo dos membros daquela família, eu não duvido. Sinto que eles escondem
algo, como se estivessem o tempo todo de prontidão para se evitar que uma bomba
atômica explodisse.
Duarte
se cala.
—
Entendeu o que estou dizendo? Precisamos falar com todos que vivem ou viveram
ao lado desta garota, entender como a mente dela funciona… Já comece por
convocar a governanta, ela será a primeira a ser interrogada e depois dona
Sofia, a comparsa no esquema.
—
Sofia Ricci? Só gente graúda!
—
Quer apostar que o contrato da casa está no nome dela? Só preciso do documento
para pedir a sua prisão, aliás, será você o autor do pedido. Prepare-se para
tudo, inclusive para enfrentar os poderosos que dão cobertura à família dela.
—
E por que o senhor não começa com a cigana? — sugere. — Se pressionar, ela lhe
entregará alguma coisa, ainda mais agora, que só não morreu por sorte do acaso.
—
Hã? E onde ela está?
—
No C.T.I. deste hospital. Se Luara estiver mesmo envolvida, acredita mesmo que
não será delatada?
Enrico
coça o queixo e termina por concordar com o amigo, porém, algo o detém.
—
Não posso!
—
E por que não?
—
Estou afastado! Se souberem, serei definitivamente expulso.
—
Dou-lhe cobertura!
—
Logo você que é todo certinho?
—
Hoje entendo o que fez… Às vezes é preciso ir além das letras frias da lei para
que a Justiça cumpra o seu papel.
—
Sabe, meu amigo, prometi a mim mesmo que colocaria toda esta corja atrás das
grades e vingaria a morte de Chiara e de toda a equipe, e é o que farei. Então
vamos lá! –desce da cama com a ajuda de Duarte e segue apoiado nele até o leito
em que se encontra a cigana, que está algemada à cama, tendo à porta um
policial, que a vigia durante todo o tempo.
—
Aurora! — chama-a o delegado.
_____________
1. Frase adaptada de Edmund Emil Kemper III, assassino em série e necrófilo americano que assassinou dez pessoas, incluindo membros de sua própria família, como seus avós paternos e mãe. Ele chamava a atenção por seu tamanho, com seus 2,06 m de altura e seu intelecto avançado, possuindo um QI de 145. Cumpre pena de oito prisões perpétuas em um hospital psiquiátrico nos Estados Unidos. Teve parte de sua vida contada na série Mindhunter.
2. Oração cigana adaptada.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

Copyright © 2025 - WebTV
www.redewtv.com





Comentários:
0 comentários: