—
Que seja louvada, minha deusa inquietante! — saúda o Português, com a voz cada
vez mais rouca, em uma chamada de vídeo, na tela de uma tablet, sob os cuidados
do comissário de bordo, para a surpresa de todos. — O prazer que me proporciona
ao despachar este infeliz para o outro lado é incomensurável. O mundo da
bandidagem está aturdido com a coragem que demonstrou — abre um enorme sorriso.
— Pudera! De uma garota demasiadamente linda, de modos distintos, corpo esguio,
em cujas formas singulares é perceptível a mão divina de um Criador apaixonado,
esperava-se o glamour das passarelas concorridas da ModaLisboa¹, em que
exuberante, da altura de um salto, desfilaria com um dos mais atraentes
modelitos de gala de Dino Alves² — venerado pelos cortes retos, tecidos
fluidos, silhuetas bem justas e transparências que valorizam a beleza feminina;
não que terminasse como uma assassina temida, dessas que saltam das telas do
cinema mundano para a realidade… — não segura a gargalhada.
—
Nossa! Estão todos calados. Será que cheguei em um momento inoportuno?
Desculpem-me, mas este é o mal da velhice. Com o passar dos dias, dorme-se
pouco, ocasionando uma perda considerável da noção do tempo! Mas não quero
cansá-los com tamanha bobagem! — entorna uma taça de vinho verde, enquanto
saboreia um bom peixe grelhado. — Que falta de educação a minha! Aceitam? — faz
um gracejo. — Aqui já passa de uma da madrugada, mas meu estômago ainda não se
deu conta, por isso fui obrigado a acordar o chef para que me fizesse esta
iguaria. Deu-me uma fome enorme ao ver Luizinho caído, traído pela própria
soberba, alvejado pelas mãos de uma garota tão adocicada… E o que está
esperando para liquidar a cigana, minha deusa? — muda o tom. — Quero vê-la da
mesma forma, assim, a janta me assenta melhor! Vamos, Diana, atendi a todos os
seus caprichos até então; está na hora de me devolver parte dos favores! E um
deles é assistir à queda desta insignificante criatura, advinda dos ranchos
mais longínquos de uma terra maldita, dominada pela pobreza – a grande peste
que aniquila os homens desde os primórdios.
“Os
dois estão mesmo juntos… O que pretendem com tudo isso?” — pergunta-se Álvaro,
à frente de Aurora, como um anjo imponente, de asas grandes e fortes,
desconcertando Diana, que não encontra a mira. “Mal ela sabe que terminou de
entregar a alma ao capeta!”
—
Com esta carinha dissimulada, induziu-me a investir num assalto malogrado; o
prejuízo foi para além das montes! — continua o lusitano. — Como pude ser tão
tolo? É da natureza de todo cigano a esperteza; como ratos, roem a confiança,
semeiam a mentira e colhem a discórdia. E homens de bem como eu são vítimas
fáceis. Só em me lembrar, tenho o desejo de atravessar o oceano e eu mesmo lhe
meter uma bala na cabeça — está visivelmente irritado. — Vamos, pequena,
mate-a! Dê-me essa tão esperada alegria! Vamos, que a missa de sétimo dia já
está encomendada!
—
Não posso! — resiste. — Para isso, seria preciso matar este bobalhão também!
—
Poxa! Verdade! E quem é ele mesmo? Meu Deus! — finge surpresa. — Como pude ser
tão imprudente, pequena deusa? Óbvio! É o rapaz que ordenei que resgatassem.
Prazer, meu jovem! Espero que esteja bem! Realmente, as acomodações de uma
delegacia não são o melhor lugar para se passar uma temporada; mas saiba, se
movi mundos e fundos para retirá-lo de lá, é porque sua protetora trabalha
muito bem, não é mesmo, preciosa beldade?
Diana
emudece, presa aos olhos de Álvaro, que se mostram ligeiros e curiosos. Por que
ela o salvaria, se o tempo todo agiu para que o machucassem? – indagava-se. O
que realmente ela sentia por ele? Amor, paixão, prazer, química ou dominação?
Aliás, quem é que estava diante dele? A criatura insana, que de tão provocada,
irrompeu do peito de uma menina fragilizada e ganhou o mundo, no corpo de uma
fera selvagem, que só se saciaria ao beber do sangue dos seus opressores ou
simplesmente uma rosa - sim, uma rosa -, que para se defender do rigoroso
inverno, vestia-se de uma outra pele, abdicava-se da alegria, recolhendo-se ao
recôncavo de seu âmago, de onde só desabrocharia ao primeiro brilho de sol
primaveril? Não tinha a menor ideia! Apenas tinha uma certeza! Ainda a amava! E
como! Quando mergulhou no azul infinito de seus olhos outra vez, sentiu sua
natureza interior revigorar-se, pedindo o corpo dela, como quem pede por um
último suspiro antes de agonizar. E isso era cruel! Como gostaria que fosse o
contrário, que todo esse sentimento encontrasse guarida nos braços de uma linda
cigana, que por ele tanto lutou, a ponto de se perder nos caminhos do próprio
destino. Mas quem é que manda no coração? Até onde se sabe, o amor é um verme,
o invade, domina, faz morada e consome. E lutar contra ele é lutar contra si
mesmo, porque é um mal que não se vê, se sente. E o que sente por ela é
profundo demais… Coisa de espírito! Se estava louco? Bem, se amar for loucura…
Luara, Diana ou quem quer que fosse, esse ser tinha as chaves de seu coração,
quer o mundo aceitasse ou não.
—
ATIRE!!! ATIIIRE!!! — ordena o homem, esbravejando. — ATIIIIIIRE!!!
“Que
história mais sem nexo, se o Português deixasse, eu sacaria da arma e daria um
tiro logo nessa biscate, mas não, pra tudo é necessário um circo. A coisa toda
é muito simples, basta apertar um gatilho. Hum! Mas deixe estar, logo serei o
novo patrão desta Família e toda essa algazarra encontrará o seu fim. E meu
primeiro ato, depois de sentar-me na cadeira, será o de furar o malandro do
Álvaro e vê-lo sangrar até a morte; será por Elisa… E por mim!” — Egídio
conversa consigo mesmo, com a arma em mãos. “Se ele pensa que me esqueci do
passado, engana-se. Posso ser corno, burro, mas não desmemoriado. Fez- me o mal
e há de recebê-lo em dobro. Quero saborear cada momento da desgraça daquele
puto como se fosse o último de minha vida…”
—
Se fizer isso, terá de me matar primeiro! — desafia o rapaz, com a cigana,
angustiada, às costas, tentando invocar suas forças, mas os oráculos, outra
vez, por capricho ou castigo, negavam-lhe o socorro.
—
E qual o problema? — os olhos de Diana, inflamados, reluzem.
—
Passo por cima de você e de todos!
—
Teria coragem? — a tensão, em seu nível máximo, enrijece- lhe os músculos do
pescoço e dos ombros.
—
E por que não? — a arma o mantém sob a mira. — O que me impediria?
—
O MEU AMOR!!! — afirma o bandido, com a imagem dela refletida em seus olhos
grandes e flamejantes.
A
conexão da Internet, momentaneamente instável, impermite que o Português os
compreenda.
—
AMOR??? — assusta-se. — Que amor, cara? Você mal me conhece! O amor não é
assim, não nasce do nada… — lembra-se das palavras pesadas de Leonor, ainda no
escritório, quando a ela se referiu com adjetivos repreensíveis.
A
chamada de vídeo cai.
—
Pois você o conhece em toda sua plenitude? — impõe o rapaz, encurralando-a. —
Óbvio que não! No máximo, fingiu senti-lo; era mais confortável, não criava
laços. Estou errado? Responda-me! Pois de minha parte posso afirmar que desde o
primeiro momento em que a vi, lá naquele aeroporto, senti algo diferente tocar
meu coração, estremecer o meu corpo, perturbar meu juízo, a ponto de só pensar
em você o tempo todo… Sabe o que é acordar com uma pessoa na cabeça, passar o
dia todo com ela diante dos olhos e dormir ao seu lado sem tê-la? Assim me
senti! E quando a mim se entregou, percebi que o seu hálito era o ar que
precisava para continuar existindo… EU… EU… EU TE AMO!!!! Entenda! EU TE AMO
MUITO!!! — a entonação é perfeita e toca o íntimo da garota, que dá um passo
para trás, com uma lágrima a surgir no canto esquerdo da face, de onde, num só
golpe, é exterminada, servindo de exemplo para que outras, tão afoitas quanto,
desistissem da empreitada.
“…
por mais que eu tente, há uma barreira inquebrantável entre a gente, talvez
porque eu nuuunca a quis, nuuunca!!!” — enquanto Álvaro busca convencê-la da
profundidade de seus sentimentos, a fera recorda-se das palavras amaldiçoadas
da mãe que a trouxe a este mundo tão terrível. “Deus poderia têêê-la levado no
lugar dos meus filhiiinhos… Não me custaria sacrificá-la desde que eles me
fossem devolviiidos, mas a vida não é como a geeente quer, os fruuutos que
sobram nas árvores nem sempre são aqueeeles que desejamos. Que meeerda! —
berra, descontrolada, atirando outro vaso contra a parede. — Levaram os que eu
mais apreciava e me deixaram no lugar uma fruta estragada, pois é assim que a
veeejo, Martim; aqueeela garota não é miiinha, nunca foi, jamais será…” — Diana
toma um grande gole de ar, olha-o bem fundo e abaixa levemente a cabeça,
permanecendo em silêncio.
—
EU TE AMO!!! DÊ-ME UMA CHANCE!!! — implora. — Apesar das situações embaraçosas
em que me meteu, ainda assim eu seria capaz de qualquer coisa para
conquistá-la. O que sinto por você é tão doido que me cega, criatura! Ouça a
voz de meu coração, ele está a lhe chamar como quem chama a sua outra metade —
toca-a no ombro.
—
Deixe de lado tudo isso e fuja comigo! Fuja! Ainda há uma chance para nós dois!
Venha, vamos dar o fora daqui, o mundo lá fora é nosso.
—
Não se pode amar alguém em tão pouco tempo assim; às vezes se passa uma vida
toda — Leonor continua fazendo estrago dentro de sua cabeça — e mal se consegue
uma metade de todo esse nobre sentimento. Verdade seja dita, estamos fadados ao
sofrimento desde que nascemos… Se há alguma explicação para isso? Não sei lhe
dizer! De certo mesmo é que quer me confundir, como eu fiz contigo tantas
vezes.
—
Fuja comigo!!! Vamos!!! — só falta se ajoelhar.
Ouvindo-o,
Aurora entra em uma profunda crise de choro; enfim abduzida pelas forças
oraculares, uma fenda no tempo se abre, de onde se avista um futuro, em que o
amado, ao adentrar em um hotel, já na grande e sedutora metrópole paulistana, à
procura da deusa que o envenena com seu feitiço maquiavélico, encontra a
armadilha que o rifará de vez deste plano. E a cena toda se revela… “Egídio
prepara a arma para disparar, o chofer fecha os olhos, Álvaro gargalha,
enquanto o gerente reza. Mas como diziam os antigos, os inimigos se levantam de
repente, literalmente no cair das luzes, e o que se vê a seguir é digno de
nota. O falso amigo empurra o chofer para o canto e acerta a cabeça de Álvaro,
que cai como cartas – quando desmoronam seus castelos –, para o desespero do
gerente…”
—
Nããããããããooo!!! — grita a cigana, atraindo novamente a atenção de Diana – que
torna a buscar sua cabeça, como deseja o Português – e a de Álvaro, que mesmo
assustado, não se vira para acolhê-la, porque se o fizesse, daria espaço para
que a criatura a alvejasse. — Não faça isso! Será o seu fim!!! — alerta Aurora.
— Não é hora de escutar o coração, pois a fera, no corpo de uma deusa mundana,
unida a Egídio, não o poupará quando a hora chegar… Eu vi! Eu vi!
“Porra!
A bruxa leu meus pensamentos, só pode… Tenho de apagá-la já, antes que ponha
tudo a perder” — diz o capanga a si mesmo, sacando a pistola; só não dispara,
porque o Português, como uma alma arremessada do inferno, ressurge na tela do
tablet, exigindo uma explicação para o acontecido.
—
O que houve? Derrubaram-me por quê? — está estressado.
—
O que se passa?
—
A coisa aqui tá feia, senhor — adianta-se Egídio —, a Pomba Gira baixou na
vagabunda, que passou a dizer um monte de coisas sem sentido. Quer que lhe meta
fogo? Tô com a mão coçando…
—
Aprendeu bem rápido um de meus truques, não foi, bandido?
—
Diana pergunta a Álvaro, que não entende. — Pois caiu do cavalo, às suas
investidas estou plenamente vacinada. Que rufem os tambores, abram as cortinas,
o show está prestes a começar e a atração principal, uma ciganinha de quinta,
advém dos confins, em roupas extravagantes, trazendo consigo uma força que
desafia a atenção dos mais tolos…
—
Hum! Adoro espetáculos, principalmente os bizarros — alegra-se o lusitano,
abrindo um sorriso insano.
—
Quer sangue, lisboeta? Pois o terá! — ruge com violência.
—
Como você mesmo me disse, não há coisa melhor no mundo que a sensação de matar.
Quando atirei no Patrão, a adrenalina correu minhas veias, é como se eu tivesse
fumado uns vinte baseados de uma só vez… Que sensação de leveza! E quero
senti-la de novo! Prepare-se, feiticeira de araque!
—
PARE, LUARA! — o rapaz, com o cano apontado para o peito, acompanha todos os
seus movimentos, impedindo-a de encontrar Aurora, que à sombra, alterna
momentos de lucidez e delírio. — PAAARE!!!
—
Quem é Luara? — cobra, renegando sua origem. — Meu nome é Diana. E afaste-se de
mim! Afaste-se! Todos que disseram me amar, só me fizeram o mal. A começar por
minha própria mãe, que me tratou por fruta estragada – veja só!, como se eu
tivesse alguma culpa pela morte de uns irmãos, que jamais existiram. Dá para
acreditar? Pois fui abandonada pelo amor enlouquecido que ela alimentou por
três figurinhas que moram no além… — os olhos enchem-se de lágrimas.
—
Depois meu pai, que se fez de distante, negando-me colo quando eu mais
precisava; já a tonta da minha avó e a feiosa de sua empregada ofertaram-me
algum sentimento nobre e o fizeram, certamente, por pena… O que vê é apenas o
que sobrou de alguém que nunca teve nada, além de broncas e xingamentos — e a
lágrima ousada, mesmo advertida, desce-lhe o semblante, bem devagarinho. —
Então, nada do que disser mudará minha opinião. Quero a cabeça desta infeliz,
só assim ela aprenderá que não sou a tola que imaginou. Quem ela pensa que é
para me estapear? — reassume a violência. — Estava louca ou quê? Nunca ninguém
me tocou, aliás, até tentaram, e os que se atreveram, deram-se muito mal.
—
Não faça isso, você não é assim! — insiste.
—
Entenda, idiota, sou como está vendo… Aquela garotinha por quem se apaixonou,
se ainda não percebeu, nunca existiu, era uma couraça que eu usava para me
proteger das intempéries da vida… Uma vida tão desgraçada que não desejo ao meu
pior inimigo! Mas isso ficou para trás, o que quero agora é sangue!
—
Dê logo um tiro na lazarenta! — instiga Egídio, impaciente.
—
Vamos! Muita conversa pra nada!
—
“E lhe foi concedido poder para dar vida à imagem da besta, para que também a
imagem da besta falasse e fizesse morrer todos os que não adorassem a imagem da
besta”, Apocalipse 13:15 — o lusitano recita o versículo num sotaque
terrivelmente carregado. — Uau! Que espetáculo! É só dar o primeiro estalo para
que a fera, bela e incrivelmente imponente, ressurja. É maravilhoso! Bendito o
dia que a conheci! — entorna outra taça, animado com o que via.
—
Você não viu nada, homem! Sou maior do que isso, brilho no topo do mundo! —
volta-se para o chefe da quadrilha exibindo uma onipotência letal.
—
Com certeza! O que promoveu em tão pouco tempo me mostrou todo seu potencial.
Quem teria a audácia de tramar o próprio sequestro, endoidecer os pais,
fingir-se de refém? Só você, minha deusa encapetada! O teatro foi tão bom que
convenceu até mesmo os bandidos. E o melhor, com o plano que elaborou, consegui
pôr um fim à vida inútil de Luiz, aquele que se dizia o maioral, quando não
passava de excremento de animal — zomba. — Pois se não sabem, foi esta
criatura, deliciosamente perversa, que me fez persuadir o dito patrão a cometer
o próprio “suicídio”, ao aceitar sequestrá-la assim que chegasse de Portugal. A
ele contei que os Vaz — uma das famílias mais emblemáticas da elite gananciosa
e apodrecida de Brasília —, gozavam de enorme prestígio político e militar e
vultosa soma em aplicações financeiras, suficientes para saldarem sua dívida e
a de Aurora com a Família — esmiúça os fatos com um prazer aterrorizante. — Mas
bastava uma simples pesquisa para descobrir que eu havia inflado a história,
propositadamente; acuado como se encontrava, Luiz concordou com cada detalhe,
sem qualquer contestação, trazendo consigo a mulher, a quem também tenho contas
para acertar. Poderia tê-lo prevenido de minhas pretensões — dirige-se a Aurora
—, mas não o fez, porque seu coração já não estava mais com ele; o encanto
havia partido, pouco se importava com o destino do boçal, apenas fazia o papel
bem-feito de uma Capitu machadiana, que era o de dissimular.
—
Isso não é verdade… — recolhida, a cigana sofre ao ouvir
tantos
horrores, tendo sobre si os olhares de Álvaro, que estranha as palavras do
velho.
—
Mas não é você que possui o dom de antever o futuro? Como está esquecida! Poxa!
— dá uma risadinha. — Certamente precisava se livrar dele, pois era quem o
impedia de retornar a sua tribo ou seja lá o que for aquele bando de
desocupados, não é isso?
—
Eu sempre o respeitei, senhor! — defende-se.
—
Amando outro homem? — o Português é direto. — Oh, minha querida, sinto em lhe
dizer, mas a história está cheia de criminosos que agem como vítimas; enganam
suas presas e as conduzem à própria morte… E com você não seria diferente, não
é? Desde o momento em que viu este bandido — aponta para Álvaro —, sentiu-se
atraída, foi o que facilitou a emboscada. Com um coração apaixonado, os olhos
ficam cegos, não é mesmo, minha bela fera? — volta-se para Diana, que abre um
sorriso malicioso de uma orelha a outra. — A cigana fez como você, caríssima
Diana, que agiu à espreita, orquestrando o próprio sequestro e terminando nos
braços do capanga, que desde o primeiro encontro sentiu forte atração por você,
como me revelou Egídio…
—
EGÍÍÍDIO??? — surpreendem-se, ao mesmo tempo, Aurora e seu amado.
—
E quem vocês acham que me entregaria cada detalhe desta trama? Não pensaram que
eu também fazia bruxarias, não é? — desdenha. — Ele é o meu observador em tempo
real.
—
EU VOU MATAR VOCÊ, SEU DESGRAÇADO!!! —
ameaça,
aos berros, o bandido, que só não o esmurra, porque se abandonasse o lugar,
Diana espedaçaria a cigana.
—
SERÁ??? — provoca. — ESTOU DESEJOSO HÁ TEMPOS POR ESTE MOMENTO… QUE VENHA!!! —
desafia.
—
Silêncio!!! Não interrompam meu raciocínio!!! — esbraveja o lusitano, sorvendo
outra taça. — Sabe, Aurora, por amor a Álvaro, você foi capaz de trair o homem
que a retirara da lama e imaginar-se regressando às origens, na intenção de se
purificar, como se pudesse apagar todos os males que praticara… Uma mulher
apaixonada é mesmo previsível! Tão previsível que você invocou todas as forças
que moram em sua alma para calar um revólver… Estava terrivelmente envolvida,
não é? Aliás, está! Por isso se perdeu, esquecendo-se da própria dívida, ainda
que isso custasse a vida de Luiz, que se ofereceu como garantia em uma
transação que já estava premeditadamente fadada ao fracasso. O amor faz destas
coisas!
—
Pare, por favor! — implora a mulher, incomodada.
— “Eu não sei
senão amar-te, Nasci para te querer.
Ó quem me dera beijar-te,
E beijar-te até morrer”. — recita o Português, com a ironia escorrendo pelos
lábios.
—
Pare!!! — verte-se em lágrimas.
—
Emocionante, não? Fernando Pessoa é assim mesmo, invade nossa alma e a faz
delirar. Seus versos, como o néctar das flores, atraem, revigoram, incitam e
despertam o que há de mais belo no âmago dos apaixonados. E você, querida
seguidora do reino de Sara Kali — espezinha —, está literalmente entregue a uma
paixão bandida.
Álvaro
fica atônito com as revelações.
—
Teve até a oportunidade de acabar com tudo — continua o homem —, quando, ao
tocar minha deusa, pressentiu o perigo. E o que fez? Nada! Acovardou-se. Mas
não a culpo, algumas pessoas, diante do medo, sucumbem-se, é a maneira que
encontram para se preservarem, ainda que isso custe a vida do parceiro.
—
Não é verdade — insiste —, fiz de tudo para que Luiz mudasse de rota durante
nossa vinda a este aeródromo, mas não consegui impedir, ele estava obcecado,
tomado pelo ciúme.
—
Um ciúme que eu fiz questão de regar ou acha que perderia a oportunidade de
vê-lo caído, todo ensanguentado, sendo preparado para ser o banquete principal
dos bichos, como agora? Óbvio que o manipulei. E como foi fácil! Bastava usar o
seu nome para que o homem mudasse de planos e fizesse o que eu tinha em mente.
E quando o impediu de matar o meliante — aponta para Álvaro —, ele teve a
certeza de que você não o servia mais, tratando-a por avariada. Porém, por mais
que quisesse, não a deixaria, pois era a joia mais valiosa que já possuiu em
vida, segundo ele mesmo me relatou. Um asno! — é enfático. — Se fosse minha,
levaria a primeira bala assim que descobrisse que tinha olhos para outro puto,
não é mesmo Egídio?
—
Certamente, senhor! Tem toda razão!
—
JUDAS! — chama-o a cigana. — Aonde queria chegar com tudo isso?
—
E preciso responder??? — mostra-lhe Luizinho aos seus pés.
—
Quando um cai, outro se levanta! É a lei da selva!
—
CANALHA! VOCÊ QUERIA O LUGAR DELE…
—
E pelo que mais seria, ciganiiinha? — infantiliza a voz. — Tão esperta para
umas coisas e tão bobinha para outras… Na vida, cada um usa as armas que tem.
—
O lugar dele? — estranha o Português, fazendo-se de desentendido. — O que quer
dizer?
—
Ué, o senhor não vai me anunciar como o novo patrão? — Egídio o interrompe.
—
Você??? Não me faça rir!!! É privado de inteligência, meu caro! — troça.
—
O SENHOR ME PROMETEU!!! — eleva o tom de voz.
—
Prometi-lhe um lugar ascendente na organização, só isso, até porque, figuras de
sua envergadura não têm a proeza de refletir as maravilhas mais peculiares da
natureza humana; são emocionalmente vazias, carregadas de ira, um verdadeiro
tormento na terra aos filhos de Deus e dos homens.
—
QUE PORRA É ESSA? — brada. — EU O AJUDEI, SEU ANIMAL!!! VENDI MINHA ALMA AO
CAPETA SÓ PARA PODER TER O GOSTINHO DE MANDAR E DESMANDAR NESSA FAMÍLIA E AGORA
ME VEM COM ESSA HISTÓRIA? POIS EU MANDO TUDO ISSO AQUI PARA OS ARES!
—
“Nunca discuta com um ignorante. Ele te rebaixará até o nível dele e te vencerá
por experiência.”³ — humilha-o.
—
POIS VOCÊ VAI VER DO QUE ESTE IGNORANTE É CAPAZ…
—
E o que pretende fazer? — indaga, sendo acompanhado atentamente pelos
envolvidos.
—
SOU O SEU HOMEM DE CONFIANÇA, CAPAZ DE EXECUTAR TODAS AS ORDENS, NÃO IMPORTANDO
AS
CONSEQUÊNCIAS…
— aponta a arma para Aurora. — SE A VAGABA — refere-se a Diana — NÃO CONSEGUE
TERMINAR O SERVIÇO, DEIXE QUE EU O FAÇO.
A
fera ruge e só não parte para cima dele porque o Português sinaliza para que se
abstenha.
—
Uau!!! Gostei!!! — gargalha. — Todo asno tem seu momento de glória!!!
“Asno?
Este velho está me tirando… Eu ainda hei de esfolá-lo vivo!” — diz a si mesmo,
preparando-se para disparar.
Álvaro
se vira para o malandro e permanece a protegê-la; o que não se pode negar é que
o lisboeta é um excelente enxadrista e o xeque- mate é seu, como se era de
esperar. Instigado pelo homem, Ribeiro sobe na aeronave e, num movimento
certeiro, nocauteia-o com uma coronhada.
—
Quer que eu o apague? — pergunta Diana. — Teria o maior prazer!
—
Não, minha deusa, é tão desprezível quanto o judeu e seu bode, de O Auto da
Barca do Inferno⁴. Nem o Diabo o quer! — desdenha.
—
Deixe que um dos capangas dê-lhe um bom corretivo, porque este eu conheço,
basta lhe ofertar umas boas notas de Euro para mudar de comportamento… Bem,
vamos direto ao ato final. Estou exausto! Atire na cigana, pois, como
combinado, é você que findará o serviço.
Ela
não consegue. Para atender ao desejo do lusitano, seria necessário
desvencilhar-se de Álvaro, a quem sente, por mais que não demonstre, algum
sentimento, apesar de ele ainda permanecer guardado em algum canto desconhecido
de seu interior.
—
Não consegue, não é, Diana? — o Português tira suas próprias conclusões.
—
Está equivocado!
—
Então atire! O que está esperando?
—
Que ele saia da frente!
—
Mate-o também ou…
—
… ou…? — exige uma resposta.
—
Ou você também está apaixonada por ele?
—
EEEU? NUUUNCA!!!
—
Então atire!!! É uma ordem!!!
—
Saia da frente, Álvaro!!! — mostra-lhe os dentes. — Saia!!!
—
Não! Já disse, para acertá-la, terá de passar por cima de mim!
—
Não vou pedir mais!!! Saaaaaaia!!! Ele permanece à frente da cigana.
—
ATIIIIIIRE!!! — grita o homem.
—
Aurora, o mundo está a lhe cobrar pelos erros que cometeras. Tenhas fé! Tu não
estás a sós! — o avô sopra-lhe aos ouvidos, encorajando-a. — Faças o que tiver
de fazer e retome o seu caminho.
—
SAAAAAAAAAAAAAIA!!!!!!!!!!!!!! — Diana perde o controle.
—
NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO!!!!!!!!!!!! — rebate o rapaz, numa coragem surpreendente.
—
Chegaste a hora! Não tenhas medo!!! Um cordeiro imolado não encontra o anjo da
morte — continua o avô a lhe falar com propriedade.
— ATIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIRE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! — surta o lisboeta.
Atiçada,
Diana dispara, é quando Aurora se levanta e o empurra, recebendo o tiro que já
era seu. E a caneta da Vida põe no papel o que lhe pede o destino…
_____________
1. A ModaLisboa é o maior evento de moda de Lisboa, em Portugal, fundado por Eduarda Abbondanza e Mário Matos Ribeiro em 1991.
2. Dino Alves formou-se em Pintura na Escola Superior Artística do Porto. Fez um curso profissional de fotografia no INEF e depois de uma passagem pela Cinemateca Portuguesa, acabou por seguir a área da moda, conquistando o título de “Enfant- terrible da Moda Portuguesa”.
3. Frase de autoria de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), mais conhecido pelo pseudônimo de Mark Twain. Foi um escritor e humorista estadunidense crítico do racismo. É considerado um dos autores mais importantes da literatura daquele país.
4. Obra de dramaturgia que foi escrita em 1517 pelo escritor humanista português Gil Vicente, considerado o “pai do teatro português”. Nela, os pecadores se veem obrigados a embarcar na barca do inferno, apesar de acreditarem que merecem um lugar no céu. O diabo é o condutor dessa barca, enquanto um anjo está encarregado da barca da glória.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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