Martim deixa o quarto e vai à
procura da esposa, abandonando Luara e Sofia, que antes de iniciarem o diálogo,
fecham a porta.
— Cara, o que foi aquilo, meu? Eu
quase chorei de verdade. Sua atuação foi digna de um Óscar… “Mamãezinha”? De
onde tirou isso?
— Gostou? — levanta uma das
sobrancelhas. — Ela sempre dizia que um dos trigêmeos, o tal do Afonso, a
chamava assim, e pelo que senti, ele era o seu filho mais amado, então resolvi
provocá-la. E como provoquei! Toda vez que a chamava assim, ela era golpeada
por imagens e vozes do passado, que a machucavam intensamente até abrirem um
buraco negro dentro de sua alma… Hum! Parecia uma estátua, com o semblante
enrijecido e os olhos perdidos, sem entender nada.
— Coitada, Luara! É sua mãe! Não
tem dó?
— Coitada? Coitada de mim! Quem
cresceu praticamente abandonada fui eu; pensa que foi fácil? Quantos dias das
mães, lá naquele colégio, tive de entregar o botão de rosas a Matilde ou à
insossa de minha avó, porque a doida, alegando alguma desculpa esfarrapada, não
comparecia? Eu cantava e dançava para o vazio, enquanto as outras crianças,
todas elas, tinham suas mães aos seus pés, com lágrimas nos olhos e máquina
fotográfica nas mãos. Sabe quantas fotos eu tenho com aquela cretina? Nenhuma!
Ela sempre me faltou! Sempre! E tudo por conta daqueles moleques — demonstra
muita raiva. — Não tenho dó, aliás, estou te estranhando, você sempre me
apoiou, Sofia… O que está acontecendo?
— Não posso ter pena de alguém? —
inquire, com o rosto confuso.
— Quem tem pena é galinha!
— Não está mais aqui quem falou.
— Acho melhor! Amanhã, a esta hora, se tudo correr como planejado, Álvaro estará do meu lado, beijando-me muito e acreditando numa criatura que jamais existiu — sorri. — Como será prazeroso vê-lo caído aos meus pés! — ajusta a camisola. — Tolo, fará tudo o que eu mandar, sem pestanejar… Como os homens são bobos, né? Basta-lhes abrir a perna para que se rendam aos nossos desejos e o meu, com certeza, será ter com aquela cigana, que ousou invadir minha alma e ler meus pensamentos.
— Que obsessão! Deixe a circense
em paz!
— Nunca! É uma questão de honra!
Ninguém bagunça minhas memórias e sai ilesa… Ela há de pagar com sangue! E se
tudo estiver conforme o script, onde estiver, deverá estar sofrendo muito…
Muito! Muito mesmo! Mas o tiro de misericórdia será meu!
Sofia se assusta com tanta
maldade.
— Você não deve estar falando
sério, amiga! Não tem medo de que a desmascarem antes?
— Quem? A louca de pedra? Só
pensa nela. O trouxa do general? Bobo demais, não é à toa que o chamam de
melancia… Não foi capaz nem de apoiar o presidente no possível golpe de Estado.
Frouxo até o último fio de cabelo! — ajeita-se na cama. — Matilde? Coitada!
Aquela precisa de um cirurgião plástico primeiro… Viu como a pele dela está
despencando? — a língua está afiada. — Cleide? Vendeu-se por algumas cestas
básicas. Eufrásio? O idiota entregou quem praticou o crime, não o mandante;
acabou enjaulado. Você? Bem, é a única que conhece minhas intenções, por acaso
pretende me trair? Sabe o que faço com traidores, né? O único que ousou tal
feito, acabou empurrado do quarto andar daquela faculdade… Tadinho! Queria
entregar meu caso com o professor… mexeu com a pessoa errada!
— Ele estava com ciúme, mulher!
— Óbvio! Do meu macho, porque o
cara era uma florzinha enrustida. E teve a audácia de me ameaçar! Levei-o no
bico e o atraí a uma emboscada, no andar do prédio em que ninguém usava no
período noturno e, com a ajuda de dois “gorilas”, mandei-o para as profundezas
do inferno. O melhor foi a história que inventei para me safar… O cara deu em
cima de mim, estava cheio de pó e num movimento de fúria, perdeu o controle e
caiu… caiu… Caiu! Fiz a faculdade toda ficar do meu lado! Coitada, diziam,
aquela é a moça que sofreu um ataque… Nossa! Ela sobreviveu! Glória a Deus!
— Você caça suas vítimas, não é? Sente um prazer sádico nisso, eu sei!
— Agora que percebeu? É por esta
adrenalina que ainda vivo.
Quando saio à procura de alguém, só me aquieto quando uma forte sensação de êxtase toma meu corpo, saciando-o com o prazer mais mundano… É como se dentro de mim irrompesse uma fera, daquelas bem selvagens, que estremecendo a terra com o seu rugido demoníaco, às ruas devorasse quem encontrasse, bebendo até a última gota de sangue. Com meu faro aguçado, sou capaz de sentir o cheiro do medo, o desespero da vítima, o medo da morte… — os olhos vibram. — E na pele desta criatura, minhas forças multiplicam-se, minhas unhas viram armas e meus dentes, afiados, são capazes de estraçalhar um corpo e com sua carne me alimentar. É como se eu me tornasse uma caçadora determinada, cruel e infatigável!
— Diana… — anuncia Sofia, tensa
com a conversa. — Só pode!
— Quem? — atrai-lhe a atenção.
— Diana! — confirma. — Você é
Diana! Não vá me dizer que perdeu as aulas de mitologia…
Luara não acompanha seu
raciocínio.
— A deusa da caça! — completa. — Não tem outra explicação. Tu és Diana. Mas com outra roupagem.
— DI-A-NA??? — o nome surge-lhe forte. — DIANA! Hum! Interessante! Me conte mais…
Sofia se vê nos olhos da amiga e
teme ser sua próxima vítima, afinal, as feras agem por instinto.
— Me conte mais…
— Segundo a mitologia romana,
Diana é arisca e selvagem, seguida de perto por feras indomáveis, como os
leões. Ela carrega um arco dourado, nos ombros um coldre de setas, e pode ser
vista trajando uma túnica de tamanho curto. Os antigos dizem que, ainda criança,
Zeus a perguntou sobre seu maior desejo, e ela, sem hesitar, pediu para que
pudesse circular livremente pelas matas, ao lado dos animais ferozes. Foi
atendida!
— DIANA!!! — repete por duas ou
três vezes, para a curiosidade da amiga, que a interpela.
— No que está pensando?
— DIANA!!! — sorri, absorta. — AÍ
ESTÁ A RESPOSTA QUE SEMPRE PROCUREI!!!
— Ei, Luara! Você está me
assustando… O que há?
Não responde. Encaminha-se até a
janela de onde avista a selva urbana, dando uma gargalhada de estremecer o
lugar.
— É lá que me saciarei! Enquanto
isso…
— NÃÃÃÃÃOOO!!! — grita a cigana,
longe dali, na limusine, ao lado de Luizinho, cuja arma não dispara por falta
de bala.
— Cale essa boca!!! — abre o estojo. — Está vazio! Como pode uma coisa dessas?
— E aí, meu amigo querido, já
posso acender uma vela? — cobra o Português, sorridente, ao ouvir o grito.
“Nem percebeu que eu as tirei
enquanto cochilava, na aeronave… Burro!” — comenta Egídio, consigo mesmo,
sentindo a munição no bolso da calça.
— Não sei o que aconteceu,
doutor!
— A arma falhou? — pergunta o
homem, tentando segurar a risada. — Como pode? Imaginei que fosse mais atento
aos detalhes.
— Deve ser esta… esta… bruxa! —
dá-lhe uma coronhada, para o choro desesperado da mulher, que se encolhe no
banco. — Esta vagabunda — continua ele — tem pacto com o demo! Mas vou dar um
fim em tudo isso e é pra já, senão não me chamo Luizinho, o terror dos inimigos
e das autoridades — está fora de si, temendo que o Português pedisse a sua vida
como pagamento pelos fracassos. — Eu hei de encontrar uma bala… — procura por
todos os cantos; desiste. Volta-se ao capanga, que está à frente: — Egídio, me
passe sua arma… Vamos, caralho! Tenho de terminar o servicinho! Vamos! — a
saliva, parecendo uma gosma, marca os dentes, que estão parcialmente encobertos
por uma camada esbranquiçada.
Com a arma do infeliz às mãos,
reinicia a operação. E quando ia puxar o gatilho, o Português intervém:
— Pare! É uma ordem! Ele não
entende.
— Mas… mas… este é o preço! A
cabeça dela em uma bandeja de prata, adornada por frutas silvestres — reitera.
— Mudei de ideia, meu caro! Filme
reprisado com atores de pouca expressão não me agrada!
— O que o doutor quer dizer?
— Que a promissória continua sob
meu poder e que a dívida será cobrada em breve; por ora, há que se debruçar
sobre um outro serviço; se desta vez o fizer a contento, talvez eu lhe reduza a
intensidade da pena… O que acha de, ao invés de uma cabeça, uma perna, um
braço, um dedo ou mesmo um olho? A dívida também seria paga, mas com um bom
desconto, não acha? — zomba.
— O doutor pensa em…
— Não tenho paciência para repetições! — o sotaque do homem está mais acentuado. — Entenda como quiser! E caminhemos logo ao epílogo desta conversa, logo iniciar-se-á a missa do padre Antônio Vieira, que transmitida para todo país, é uma pérola aos católicos de boa-fé. E como sou devoto de Fátima, toda manhã, com um terço em mãos, rezo pelos mais humildes, para que Deus os veja em sua santa miséria — é convincente. — Saiba, Luiz, nosso trabalho, como qualquer outro, exige muito sacrifício e coragem, e onde encontrá-los, quando tudo parece à deriva? Na fé! Por isso, curvo-me ao Senhor e faço, diariamente, minhas oferendas.
— Quem iria imaginar! — o ar é de
deboche.
— Tu és um mancebo de pouca fé,
como gosta de dizer o “imperador da língua portuguesa”, como é conhecido o
padre, cujos sermões estremecem os corações dos homens mais endurecidos, assim
como você.
— O que deseja? Fale! Não tenho
tempo para doutrinações. Que o doutor e seu padreco abram uma igreja e se
agraciem da ingenuidade dos tolos.
— Deveria castigá-lo por sua
incredulidade, mas prefiro me abdicar, sua ausência de conhecimento é o
suficiente para me fartar, Idiota! — caçoa.
— Do que está falando? Sou uma
pessoa esclarecida.
— Verdade! — limpa o veneno dos
lábios. — Até certo ponto!
— Não entendo! — está
encolerizado.
— Antônio Vieira, o padre a que
me referi, morreu em 1697, meu querido boçal; assisti-lo, só se fosse no
inferno — desdenha. — Mas não se preocupe, homens brutos como você desconhecem
a História, são movidos por pólvora, cadáveres e bordéis, porque isso, no
íntimo, os torna mais fortes do que são. Pelo menos pensam! Lembre-se, Luiz,
“tudo o que vive nesta vida, não é o que é, é o que foi, é o que há-se ser”¹ —
as palavras do Português são como cobras à espreita, prestes a dar o bote.
— Pare com estas charadas e vá
logo ao que deseja.
Aurora também não compreende o lusitano. Aflita, pensa em abrir a porta, mesmo com o carro em movimento, e pular, mas algo a impede; é uma força que grita dentro de seu âmago, cujo estrondo, mil vezes mais forte que o coro dos anjos, a faz resistir, antes que uma tragédia aconteça. Com as partes do pingente em mãos, busca reencontrar a força de outrora, o que lhe é negado outra vez pela Natureza. Resta-lhe apenas saber o que os dois tramavam, tendo o celular como testemunha.
— Como bom cristão, sempre prezei
pelo fortalecimento da família, Luiz. Nada como um pai e uma mãe bem-dispostos
para cuidarem de seus pequenos… E nenhum membro, durante a caminhada da Vida,
deverá ser abandonado, sob pena de não se ter uma família, mas um outro
organismo, bem distante disso. Não seremos como certos peixes que, esfomeados,
praticam o canibalismo e devoram seus próprios filhotes…
— Não estou entendendo nada! O
que quer dizer com este papo de “devorar filhotes”…?
— Sêneca² tinha razão, “a
natureza nos uniu em uma imensa Família, e devemos viver nossas vidas unidos,
ajudando uns aos outros”.
— Seja mais claro!
“O que o Português está tramando?
Eu tirei as balas como me pediu, já era pra ter dado a ordem pra fuzilar estes
dois! Que bosta! Será que Luizinho o está levando no bico de novo? Ah, não pode
ser! Se isso acontecer, mato os dois por conta própria. O Português, desta vez,
há de me dar o trono, senão, vão todos para o espaço… Minha pistola está pronta
para cuspir fogo… Me provoquem pra ver!” — pensa Egídio, perdendo a paciência.
— Nossa Família não está
completa… falta um! — afirma o homem.
— Como assim?
— Como pode ser tão insensível,
caro mentecapto? Não percebeu a falta de um de nossos “filhos”?
— Você se refere a… — cai em si.
— Não! Não pode ser!
— Sim! Avisaram-me há pouco, um
dos nossos foi capturado e é dever da Família recuperá-lo imediatamente.
— NUNCA! PREFIRO MORRER!
— Já que insiste… — o Português não se intimida e o desafia. — Quer mesmo isso? Olha, doerá mais em mim que em você! Basta um estalo para que o carro seja abatido e apenas alguns minutos para que esteja junto à sua senhora sete palmos abaixo da terra, com a boca cheia de bichos… — engrossa a voz até quase não ser compreendida.
— ES-PE-RE!!! — grita, atraindo a
atenção dos demais, que não entendem o que se passa. — Farei qualquer coisa que
me pedir, mas isso não, aquele cara…
— … só não trepou com sua
putinha, porque não quis, não é?
— dispara, impiedoso. — E Álvaro
é o nome dele. Sei de tudo! E o que mais me chamou a atenção: ele tem caráter!
Algo elementar aos membros de qualquer Família.
— Não, doutor! Isso é perigoso!
Como vou regressar? Poderemos acabar todos mortos!
— Um por todos e todos por um!
Está sentenciado! Ou o salva ou irão todos para o vale da sombra da Morte… É
uma escolha difícil, pelo menos para você, um ladrão que se diz o maioral,
quando – na verdade – não consegue cuidar da própria casa, tendo sobre a cabeça
dois galhos grandes e firmes, para que todos saibam o Corno que se tornou — o
sarcasmo é violento. — Vamos! Decida-se já! O dia está nascendo em Lisboa,
tenho minhas obrigações com a igreja e com os menos abastados. Vamos!
Decida-se!
— Posso fazer o que o doutor
quiser… — é interrompido.
— … E o que eu quero, já disse!
Traga-me Álvaro são e salvo; se falhar, prepare-se para o pior, porque nem meu
lado cristão há de se apiedar de ti.
Luizinho encontra os olhos
amedrontados de Aurora, que intimidada, mantém-se recolhida; a vontade dele é
de matá-la, mas se o fizesse sem o consentimento do Português, estaria selando
o próprio destino. Desliga a chamada, coça a cabeça, engole o ódio, volta-se
para o motorista, dizendo:
— Retorne ao aeroporto, rapaz!
— O que pretende fazer, patrão? —
inquire Egídio, estranhando.
— Vamos regressar a Brasília.
— Vão nos pegar! — alerta.
— Somos uma Família! Devemos
cuidar uns dos outros.
— Que porra é essa, patrão?
— Assim determinou o lusitano,
teremos de resgatar o vagabundo do bobalhão, senão…
— Álvaro??? — adianta-se a
mulher, com um brilho ressurgindo na face toda machucada. — Vamos salvá-lo??? É
isso???
— Para sua alegria, piranha!
— Que loucura é essa? O cara é um vagabundo, deixe-o lá, entregue às hienas — revolta-se. — Não vou fazer isso! — reluta Egídio.
— Não é a mim que está
desacatando, malandro, mas ao Português… Terá coragem de ir em frente? Alerto-o
de que o último que o desobedeceu, passou três dias sangrando até dar o último
suspiro.
No hospital…
O telefone de Sofia toca.
— Como? Quem quer falar?
— Dê-me logo aqui… é ele! — Luara
toma-lhe o aparelho. — Certo! Tudo arranjado? Ótimo! Boa noite para você também
e durma com os anjinhos… melhor, com os diabinhos. — desliga, sorrindo.
— Você passou meu telefone para
um macho seu?
— Lave essa boca, garota, está
diante do maioral.
— O que está tramando?
— Um plot twist de deixar a todos
de boca aberta.
— Cê tá mesmo doida, Luara!
— Luara morreu esta noite! —
sentencia.
— Hã? Como assim? Do que você
está falando? Gargalha.
— Não estou entendendo nada!
— Venha comigo… venha!
Leva-a até o banheiro e, diante
do espelho, confirma:
— Veja! Luara morreu!
— Hã! E quem é esta?
— DIANA!
— Cê bateu a cabeça??? —
arrepia-se toda. — Meu, o que lhe contei foi apenas mitologia, ninguém sabe se
é verdade ou não!
— Prepare-se para o pior, Diana
brilhará no topo do mundo…
— … do crime, só se for! —
completa.
— Bingo! Está aí sua resposta —
volta para o quarto.
— Luara, sua louca, o que pensa
estar fazendo? Uma coisa é cometer uns delitos, outra é adentrar a este mundo,
dominado por seres de todos os tamanhos, cores e maldades. Uma vez lá, não terá
retorno. Pense bem! Sabe, acho que você está com os parafusos mais frouxos que
os de sua mãe. Aff!!!
— Eu me encontrei amiga… Agora
sei de verdade quem sou!!!
— abre a janela, de onde avista a lua repleta de si, enquanto o vento, rebelde, entra e lhe agita os cabelos com força. — Luara não existe mais!!! — reafirma. — Em seu lugar, nasce DIAAAANA, a caçadora impiedosa, que atormentará a vida daqueles que ousarem cruzar o seu caminho, nas grandes e infinitas ruelas que correm desatinadas até o coração adoentado da selva de pedra. Prepare-se! O show está apenas no início.
— Sangue de Jesus! Bateu a biela
mesmo! — a garota faz o sinal da cruz.
Aurora, mesmo distante, pressente
a criatura e se preocupa com Álvaro, pois é contra ele que ela fará a primeira
investida. Mas como defendê-lo? Os oráculos se negam a lhe estender as mãos, a
Natureza permanece em silêncio, os anjos se escondem, Santa Kali não pode ser
mais alcançada… Seus poderes, para seu desalento, se esvaziaram. E como
reverter esta situação? Não tinha a menor ideia! Mas era preciso insistir, o
homem que ama precisava dela e não se furtaria a lhe jogar as tranças, ainda
que isso lhe custasse a pobre vida terrena.
O sol emerge tímido no horizonte…
— Filha, vamos para casa, os
médicos a liberaram — anuncia o pai, a quem ela encenava dormir.
— Pai… oh, pai, vou voltar para
casa? Que maravilha! Vamos, me ajude aqui, meu corpo ainda dói.
O homem a ajuda a se arrumar.
— Agora vou acordar Sofia, filha.
Esse sofá vai lhe deixar descadeirada. Coitada!
— Cadê a “mamãezinha”? — sorri
por dentro.
— Ela foi para casa junto a
Matilde… Sua mãe é muito frágil, minha filha.
— Ela não gostou de me ver?
— Quem te falou isso? Ela te ama!
— Não quis me abraçar, pai!
— É porque… bem… ela tem uns
momentos de conflito interno… É algo que, tratado há anos, apenas ameniza; não
cura!
— Por conta dos meus irmãos??? —
mexe na ferida.
— Sua mãe, como já lhe disse, é
frágil demais! Dê tempo ao tempo, mas de uma coisa tenha certeza, ela te ama
muuuito! — dá-lhe um beijo. — Sofiiia!!! — chama pela garota.
Alguns minutos depois…
Passam pela recepção e se dirigem
ao estacionamento. Antes que o homem pudesse ligar o carro, Luara diz:
— Pai, não vamos ainda para casa, é preciso fazer uma coisa antes…
— Que coisa, menina?
— Preciso rever o cara que me
deixou neste estado!
— CO-CO-COMO??? — assim como
Sofia, o homem também se assusta. — Não! Isso não tem o menor cabimento.
— É preciso, papai, só vou
conseguir dormir de novo se encarar este canalha de frente e lhe dizer umas
poucas e boas. Por favor, paizinho!
— a voz é fina e doce, se posta à
prova, em nada se diferenciaria do canto hipnótico de uma sereia. — Por favor!
— Luara…
— Por favor! — finge chorar de
novo. O general cede.
— Ela quer ver o meliante? —
indaga, curiosa, a delegada substituta. — Mas por quê? Logo será levado para a
Papuda, é questão de horas.
Ele a convence.
E lá está Luara, aguardando o
bandido, que vem carregado pelos policiais, preso por algemas, com o corpo todo
dolorido. Ele não conseguia andar direito, ora se escorava em um, ora no outro,
como se o pequeno trajeto até a salinha não tivesse fim. Fizeram dele o bode
expiatório e nele descarregaram toda a ira por não conseguirem apreender o
Camaleão e sua trupe. E pelo depoimento da garota, ele já era um monstro e como
tal havia sido tratado. Ninguém se preocupou em checar se as palavras dela
tinham lastro; o importante era fazer justiça com as próprias mãos e exibi-lo à
imprensa como um troféu, para que todos acreditassem que o Bem sempre vence no
final. Pura ilusão! Luizinho permanece solto e cada vez mais letal em suas
ações.
Assim que abre a porta, Álvaro se
contorce em desespero ao ver Luara, que por fora exibia uma feição
entristecida; por dentro, regozijava-se do sofrimento do infeliz, como um
caçador quando abate sua presa.
— Me tirem daqui! — implora. — O que estão esperando? Me tirem daqui!
_____________
1. Embasado no livro bíblico Gênesis 3:19, Pe. Antônio Vieira, no 1º Sermão de Cinzas, fala da finitude humana; do pó viemos e ao pó retornaremos, traçando esse caminho para a morte, enquanto Deus é infinito e imutável, sempre idêntico ao seu próprio ser, enquanto a existência humana é circular.
2. Lúcio Aneu Sêneca foi um filósofo estoico e um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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