A aeronave pousa no Aeroporto de
Goiânia. A porta se abre, o piloto e o comissário de bordo agradecem a presença
de todos, mas são ignorados por Luizinho, que segura a cigana pelo braço; mesmo
constrangida, ela procura manter a tranquilidade, sabe que o clima de tensão
está elevado, basta uma palavra mal interpretada para que o homem exploda e
mande todos para o espaço. Egídio, bem mais atrás, com a arma à cintura,
escolta a dupla, atento a cada movimento, não quer ser surpreendido por uma
emboscada policial. Descem a escadaria, quando o Camaleão chama pelo capanga:
— Cadê a limusine, seu traste?
Era pra estar aqui! Toda essa exposição poderá nos custar a liberdade! Ande,
veja onde está, não quero passar meus dias atrás das grades.
— Ela já está vindo, patrão!
Acabou de ser liberada pela segurança.
— Apresse-a! — corre os olhos
atordoados pelos arredores, como se temesse ser preso, algo impensado para quem
sempre brincou de se esconder dos agentes das principais Forças. — Vamos!
— Nunca o vi com tanto medo,
Luiz! — estranha Aurora. — A polícia não está por perto, eu sinto! Esqueceu-se
de que sou seu cão de guarda, ou como gosta de dizer, o seu amuleto?
— Aquele que se avariou? Pois não
confio em uma só palavra sua, mulher. Sei que quer me ver pelas costas e
adoraria estar nos braços daquele coió, não é mesmo? Mas o que me pertence
jamais será dividido com outra pessoa! Jamais! E se permanecer insistindo nesta
paixão sem futuro, sou bem capaz de lhe furar a testa… Duvida? — sua face,
fechada, revela que estaria disposto a qualquer ato de violência, desde que
saciasse sua dor mais íntima.
“O corno tá doido! Mas eu faria
igual, aliás, pior; já teria passado fogo nesta vagabunda…” — pensa Egídio,
coçando a barba.
— Não sou sua propriedade, meu
querido, longe disso, sou uma mulher livre! — não abaixa a cabeça, mesmo diante
do perigo.
— Foi!!! — interrompe-a, com os
olhos em labaredas. — Vendeu- se para mim!
— Do que você está falando?
— Tenho seu corpo e sua alma na palma de minha mão, um passo em falso, conhecerá o Demo de perto, ou imagina que o mundo que lhe ofereci foi de graça? Querida, quando resolveu entrar para a Família, tinha em mente no que estava se metendo; agora, para sair, só num caixão, e olhe lá, porque os que tentaram, nem este luxo tiveram. Foram enterrados vivos, em algum canto deste país, para a infelicidade de seus familiares e amigos, que ainda os procuram, como se fosse possível encontrar suas carcaças.
— Vo-você não pode fazer isso
comigo!
— Isso o quê? — satiriza.
— Prender-me? Fiz tanto por você!
— Nada que eu já não tenha pagado
bem antes!
— Está sendo injusto, sempre o
protegi das intempéries da vida do crime, alertando-o para os perigos que
corria.
— Isso foi em outro momento, não
agora…
— Como assim? Já lhe disse,
estamos protegidos, a polícia está longe, conseguiremos fugir, como sempre
fizemos.
— E quem disse que é dos coxinhas
que tenho medo? — esbraveja. — Tenha dó!
Ela se perde nos olhos dele;
quando vê a imagem do Português, compreende o porquê de tamanho receio.
— É claro! Está à procura da
gente, não é?
— O que achou? — revolta-se. — O
cara quer nossas cabeças, esqueceu-se? Ele está em todos os lugares, como uma
dessas criaturas com chifres advindas das trevas, e não poupará esforços para
nos encontrar. É bem capaz de ter cercado o aeroporto… — corre os dedos pelo
cabelo encharcado. — Ele não aceita erros e irá nos cobrar por mais um
fracasso, desta vez, porque você, sua putinha de merda, ao invés de se dedicar
ao plano, ousou se apaixonar por um verme, daqueles que faço questão de cuspir
e pisar até esmagar a cabeça. Pô! Veja no que nos meteu… Deveria ter punido sua
intransigência com uma bala bem no meio da cabeça, mas não, me acovardei, deu
no que deu. Agora estamos na mira de um dos homens mais violentos que estas
ruas já conheceram e me vem você dizendo que estamos a salvo? Desde quando? A
não ser que uma daquelas coisas estranhas habite você outra vez e nos leve para
bem longe, onde o Português e sua matilha nunca estiveram. E existe esse lugar?
Óbvio que não! Estamos ferrados!
— Você me culpa por algo que não
fiz…
— Não??? Você é o fracasso em pessoa, nunca deveria tê-la conhecido, sua desgraçada — desce-lhe o braço, para o desespero da mulher, cujos poderes esvaecem misteriosamente, deixando-a indefesa diante dos ataques do criminoso. — Você acabou com minha vida! Por que liderou algo de que não tinha capacidade? Aquele assalto malsucedido a Piracaia nos levou a cometer outro crime ainda mais desastroso. E vem me dizer que não tem culpa de nada? Verdade! A culpa é minha! Dei minha vida como garantia! A minha VIDA, entendeu, piranha? — dá-lhe outro safanão. — Eu deveria era ter me fartado de sua carne e jogado o resto aos cães.
“Bata mais, patrão, bata! Ela
merece! Oh, se merece! É uma puta dos infernos que só não foi pra cama com
Álvaro porque, certamente, ele não quis… O que não aconteceu com Elisa, que ao
primeiro estalo do vagabundo, saiu abrindo as pernas…” — pensa, alternando o
sentimento – ora de euforia, ora de raiva –, a cada tapa desferido.
— Pare!!! — pede. — Está
doendo!!!
— Que doa!!! — grita. — E se
invocar seus poderes, hei de pôr um fim a esta porcaria que chama de vida.
— Você está louco!
O veículo surge no fim da pista…
— E agora? Para onde iremos,
ciganinha? — dá-lhe outro solavanco. — A coisa tá complicada! Nem todo o
dinheiro que tenho será capaz de nos proteger por muito tempo. Somos como
gafanhotos tentando se esconder da fúria de um bando de lagartos famintos…
Entende? Não há saída!
E para diante deles. O motorista,
um jovem de pouca idade, desce, abre-lhes a porta, depois acomoda Egídio no
banco da frente, retorna ao volante, dá a partida e desaparece entre os
hangares. Antes que ela pudesse se manifestar, o telefone toca. Como esperado,
lá está o Português, à sua procura. Luizinho a encara, como se estivesse
prevendo o fim dos dois. A ligação cai. Toca outra vez. Cai de novo. E mais
outra. Não tendo como fugir nem a quem recorrer, atende.
— Meu caro amigo, como vai? Algum
problema com a telefonia de seu país continental? — ironiza o lusitano, com a
voz ainda mais rouca, servindo-se de uma taça de vinho do Porto.
— Doutor…?
— E quem poderia ser? Pensei que não quisesse conversar comigo; saiba, tenho grande estima por sua pessoa, há até quem diga que o trate melhor que um dos meus filhos… Pode até ser uma hipérbole desta gente lusitana, mas que há um lugar em meu coração dedicado a você, ah, isso há, senão, como explicar tamanha bondade com todos os seus erros, Luiz? Em tempos não tão remotos, já teria conhecido Dinamene há muito tempo… Já ouviu falar de Dinamene? Nossa! Desculpe minha indelicadeza! Como pude ser tão desatento. Ogro feito você não lê — espezinha —; apenas mata, porque o cheiro excitante do sangue fresco lhe guia o faro como acontece com os lobos…
— Doutor, às vezes as aparências
enganam, não sou um “ogro” qualquer, se é que me encaixo nesta definição;
diferentemente do que imagina, sou fã de Camões e com ele sofri, quando soube
da perda de sua amada, Dinamene… — rebate.
— Incrível! — aplaude. — Estão
conhece o naufrágio ocorrido na foz do Rio Mekong?
— O que abocanhou a pobre
Dinamene e obrigou Camões, na luta pela vida, a nadar com um braço, enquanto o
outro salvava o manuscrito de Os Lusíadas¹?
— Estou todo arrepiado! Uau!
Surpreendeu-me, Luiz! Pois então, para que uma das maiores obras da literatura
portuguesa fosse preservada, alguém teve de morrer; esta é a parte que mais
aprecio: O SACRIFÍCIO. Imagine você, em pleno século XVI, tendo de escolher
entre salvar sua obra de maior valia ou a rapariga, uma chinesa, a quem amava
demais… O que faria? Certamente escolheria a pobre! Nada que me causasse
estranheza, até porque, goza de uma juventude invejável. E nesta idade, em que
os hormônios explodem, perder-se nas curvas sinuosas de uma mulher é o maior
defeito de um homem. Já tive sua idade, meu caro — dá uma risadinha maliciosa
—, e sofri demais por uma donzela. Nem imagina! E assim como Camões, tive de
escolher. Era ela ou Sansão, meu cachorro com pedigree. Como os dois se
odiavam, só havia uma alternativa. Escolhi o cachorro. Ele não falava. Já ela,
coitada, a terra comeu em três tempos, também, era de uma magreza que
impressionava, fruto dos regimes endoidecidos que fazia — o sadismo escorre pelas
palavras.
Aurora ouve parte da conversa,
gela com a voz horripilante do homem, pressentindo o perigo.
— Por que está me dizendo isso?
— Nossa!!! Agora me decepcionou.
Pensei que fosse mais esperto.
— Esperto eu sou, doutor, mas não
sei aonde quer chegar com toda esta prosa.
— Escolhas… escolhas…, meu amigo!
— Então…? — olha para a cigana,
temendo a resposta.
— Já fez a sua?
— Seja mais claro!
— Você apresentou-se como fiador
àquele sequestro lamentável, que está em todos os canais de tevê, em todos os
sites de notícias; e, pelo que me consta, só para relembrá-lo, ambos – você e
sua puta – me devem a cabeça numa bandeja de prata, decorada com frutas
silvestres, ou eu estaria enganado?
Luizinho, gélido, se cala.
— Mas como sou um homem que preza
pelo justo, um verdadeiro servo de Deus, frequentador assíduo da Igreja de
Santa Maria de Belém, na Praça do Império, aqui mesmo em Lisboa, a quem doo
parte de minha fortuna, em dízimos e outras caridades, não seria de bom tom que
eu os executasse sem lhe conceder o direito de escolha… Escolha, Luiz!
O Camaleão estremece de medo, a
ponto de se ouvir sua respiração acelerada; é tudo o que o homem, cheio das más
intenções, mais deseja.
— “De fato, se vocês perdoarem
aos homens, os males que eles fizeram, o PAI de vocês que está no céu também
perdoará vocês”, Matheus, 6:14. — a voz está firme. — Você já leu a Bíblia? É o
que mais faço. Quem a compreende, domina o mundo, entende?
— Não entendo! Você acabou de
falar em perdão e me põe em paredão, tendo de fazer uma escolha?
— Eu os perdoei! — escarnece. —
Sim! Para onde forem, quando partirem, levarão o meu perdão; quer algo melhor?
Não lhes garante a salvação, mas a passagem direta às profundezas do inferno…
— Deixe deste joguinho idiota e
fale logo sua proposta.
— Sua cabeça ou a da cigana? —
exige uma decisão. — Com qual delas me agraciará? O tempo está passando, a
oferta tem curta duração. É pegar ou largar… ESCOLHA! — determina.
Luizinho vira-se para Aurora, que resplandece na escuridão, feito um anjo de luz. Não havia o que fazer. Teria de matá-la; a vida dele jamais ofertaria, até porque, quem quis brincar com fogo foi ela; não ele. Então que pagasse. É o destino de todo tolo: a guilhotina. E com ela não seria diferente. Até poderia tentar outra barganha, mas sua vida não seria mais oferecida como fiança; isso fez em um momento de loucura, quando a paixão o cegou; não agora, quando ela o traía e justo com um bagre. Como disse o Português, o mundo é feito de escolhas e a dele, com certeza, seria a de entregá-la ao carrasco para que a decapitasse. Assim como Maria Antonieta², Aurora merecia tal sina. Que se cumprisse então! Saca da arma e a leva à fronte da mulher, que recua, com os olhos presos aos dele.
— Vamos, meu caro, quero ouvir o
estrondo da bala perfurando o crânio dela… — o Português está ávido por
desgraça.
O dedo está no gatilho. Aurora,
com os olhos agigantados e contornados por lágrimas, não tem forças nem para
orar. O seu fim se aproximava.
Pelo retrovisor, Egídio acompanha
a tudo com certo prazer; a morte da mulher seria a derrocada de Luizinho e o
trampolim para sua ascensão. Na condição de informante do Português, ganhou-lhe
a confiança e logo estaria à frente dos negócios da Família. Como esperou por
isso! Foram longos meses aguardando que o Camaleão, apaixonado, reincidisse no
erro de apoiar as aventuras insanas de uma cigana fisgada dos cafundós do país,
e caísse em desgraça. Se Elisa estivesse viva, por mais interesseira que fosse,
estaria ao seu lado, fazendo as vezes de boa companheira, curtindo com ele o
momento… Elisa! – suspira. Que saudades sentia daquela piranha! Pena que o
traiu com o desgraçado do Álvaro e agora jaz naquela cova rasa, onde nem Deus
há de encontrar. Não era para ser assim! Amava-a mais do que tudo nesta vida!
Tudo mesmo! Mas ela não deu valor, preferiu cair na gandaia, perder-se nos
braços daquele desgraçado, botar-lhe um par de galhos a ouvir seu coração. Mas
esta história só encontrará um desfecho quando o acerto de contas com o
malandro acontecer. E há de ser da arma dele a bala que matará o infeliz! Isso
já está decidido!
— O diabo que te carregue! —
Luizinho dispara. Enquanto isso, no hospital…
— Cadê a Cleeeide, Melanciiia???
Preciso dela!!! — pergunta a mulher, quase em frente ao quarto da filha, com os
primeiros fios do desatino à vista.
— Mandei-a para casa, e digo mais, teve sorte, com aquela história de advogada, se as autoridades pusessem os dedos nela, iria passar umas boas férias na Colmeia.
— E ela foi cooomo? Chamo-lhe um
táááxi?
— Até parece que meu dinheiro é
capim. Do mesmo jeito que veio, voltou…
— Cooomo assim???
— De ônibus, Leonor! — está
estressado. — De ônibus!
— Coitaaada! Ela pode ser
assaltaaada!!! Vou atrás dela, deve estar toooda chorosa… Tadiiinha!
— Não vai não! — segura-a pelo
braço. — Chega de história, vamos é ver nossa filha, porque é ela que está
precisando de nós, neste momento; já Cleide, expert em um bom trambique, saberá
sair-se de qualquer enrascada, aliás, é o que de melhor ela sabe fazer.
Após muita insistência do marido,
Leonor abre a porta e encontra Luara deitada sobre as pernas de Sofia, que lhe
acaricia os cabelos.
— Sofia? — adianta-se o general,
ocultando parcialmente a esposa. — Como está? Seu pai acabou de me ligar,
disse-me o que fez e agradeço. Certamente contribuirá para que aquele infeliz
passe o resto da vida atrás das grades.
— Imagine, seu Martim, apenas
cumpri com minha obrigação. Jamais abandonaria minha amiga, muito menos agora,
depois de tudo o que sofrera. Tinha o dever de contar tudo à polícia e foi o
que fiz, sem economia de detalhes.
Vendo a mãe toda ressabiada às
costas do pai, Luara retoma o papel de boa moça, dizendo:
— Mãe… mãe… que alegria em vê-la
de novo! — finge emocionar-se. — Venha cá, me dê um abraço, passei por muita
coisa… Venha!
— Vá, Leonor, a garota está te
chamando — limpa as lágrimas com um lenço de pano enquanto a empurra.
Por mais que quisesse, não
conseguiria. Havia uma espécie de barreira entre elas.
— Mãe, venha, não me deixe, preciso de seu colo, te amo demais, como nunca amei alguém nesta vida — soluça. — A senhora é o farol que me conduz na escuridão, o anjo que me acompanha. Venha, mãe, quero senti-la perto de mim, receber o seu carinho, o seu AMOR… Eu sofri muito! Fui espancada, torturada, violentada, passei fome, sede e dormi numa cama cheia de bichos… E sabe como suportei passar por tudo isso? Mantive minha mente focada o tempo todo na senhora, no papai e na vovó. Foi horrível, mãe! O amor que sinto por vocês é tão grande que me deu forças nos momentos mais difíceis, em que pensei que deixaria este mundo.
— Meu Deus! Por que todo este
sofrimento em nossa família? Por quê? O que fizemos de tão mal? — questiona-se
o general, entregue à dor. — O quê, meu Deus?
— Venha, mamãezinha — abre-lhe os braços. — Venha! EU TE AMO MUITO! MUITO! MUITO MESMO, MAMÃEZINHA! — chora de causar pena.
Impressionada com a enorme
demonstração de carinho, ao invés de se aproximar, Leonor se afasta,
apoiando-se à porta, enquanto sua mente, dominada por um turbilhão de
pensamentos estranhos, perde-se nas lembranças.
— Mamãezinha — chama Afonso —, eu
quelo tetê — diz, coçando os olhos de sono.
— Claro, meu pequeno! Mamãe faz!
— vai à cozinha e retorna com uma mamadeira. — Geeente — grita pelos outros
dois, que estão na sala, assistindo a um desenho com o pai —, venha, tá na hora
de dormiiir. Tome, meu querido — volta-se para o filho mais frágil —, beba
tudo, tá? Mamãe te ama!
— Conte uma historinha, mamãe —
pede Francisco, com um pijama de carrinhos, dando cambalhotas na cama.
— Eu também quelo — reforça
Afonso, deitado no travesseiro, com as perninhas cruzadas, com o bico da
mamadeira rolando na boca.
— Por que só pra eles? — contesta
João, o mais velho, por coincidência, o mais crítico e ciumento. Sonhador,
corre o quarto em um cavalo de pau, com um dos pés sem meia, imaginando-se em
uma dessas corridas disputadíssimas que giram fortunas pelos jóqueis-clubes de
todo país.
— A mamãe cooonta, mas depois que
os três estiveeerem deitados. Vamos! Vamos, molecada!
— Mas, mãe, num tô com sono —
reclama João.
— Como gosta de contrariaaar, né,
menino? E cadêêê sua outra meia? Não pode ficar pisando no chão assim, pode
pegar um resfriado.
— Vai, mamãezinha, conta logo a
histolinha da Chapeuzinho Vermelho… — sugere o doce Afonso. — Eu gosto muito!
— Eu não quero essa; prefiro da
Branca de Neve — Francisco lhe entrega o livrinho.
— Historinhas de menininhas? Já sou hominho… — resmunga.
— Hum! Já é homiiinho, João? Que
coooisa! — dá uma gargalhada gostosa, abraçando os três. — Farei melhor, vou
lhes contar uma outra, acho que vão gostar.
— E qual é mamãezinha? Nóis
conhece? — pergunta.
— “Nóis” conheeece, Afonso? Que
português é eeeste, meu fiiilho? Aff! Dá até arrepio, moleque. Pois deeeitem
logo, senão vou para meu quarto, sabem como é o pai de vocês, daqui a pouco ele
vai para a cama e chama pela mamãe.
— Então conte logo, mãe… O papai
é muito chato, né?
— Não diga iiisso, João! Ele ama
demais vocês três.
— Eu tamém amo ele, é o meu papai
favolito — diz Afonso.
A mulher sorri com a ingenuidade
do pequeno. Depois de ajeitá- los, inicia a contação.
— Era uma vez três porquiiinhos…
— Essa não, mamãe, tenho medo do
lobo — protesta Francisco, cobrindo-se com o cobertor.
— Menininha… menininha… — caçoa
João.
— Não fale assiiim com seu irmão!
— repreende-o.
— Comece, mamãezinha, já tô com
soninho — pede Afonso.
— Pois lá vai… Era uma veeez três
porquiiinhos — os movimentos da face acompanham a modulagem da voz —, que
moravam em três casiiinhas bem pequeniiinas, no meio de uma floresta bem
grande. Um deles tinha uma casa de madeira, o outro de palha e o mais inteligente,
de tijolos.
— Eu moro na casa de tijolos —
adianta-se João.
— Fica quieto, a mamãe tá
contando — ordena Francisco.
— Se continuarem a brigaaar,
vou-me embora.
— Não, mamãezinha, conta, vai, a
gente ficamos quetinhos…
— Afonso, meu fiiilho, esse seu
português é cruel!!! Sangue de Jesus tem poder!
— Ele é burro mesmo! — João
gargalha.
— Eu vô batê nele, mamãezinha —
ameaça o menino, sentindo- se ferido.
— Mamãezinha… mamãezinha… — zomba
João, o mais peralta, no auge de sua inocência — … parece uma menininha…
— Cheeega!!! — põe ordem no
lugar, simulando uma braveza inexistente; no fundo, ria de tudo aquilo. — Pois
vamos lá… começou, hein? Mais um piiio, eu apago a luz e saio, entenderam?
Os três ficam em silêncio.
— Os três porquiiinhos viviam
felizes, até que um dia surgiu um looobo, com roupas suuujas e amassaaadas e um
furo no tênis — ela acompanha a risada das crianças —, pedindo um pedaço de
pão…
— Coitado, mamãezinha! Dá meu
tetê pra ele — oferece a mamadeira. — Tá tão gostosa.
A mulher dá um beijo no menino e
continua a história:
— De início, os três correeeram
de medo, pensaram que o bicho iria atacááá-los, mas o pobre, caindo de fome,
pediu para que ficassem tranquiiilos, foi então que o mais velho disse que
deveriam ajudááá-los. O mais novo teve medo e o do meio queria chamaaar a
polííícia. Eles estavam trancaaados na casa de tijolos e, caso o lobo quisesse
soprar, coitado, seco como estava, não conseguiriiia nem estremecer as pétalas
da florziiinha mais frááágil do jardim. O porquiiinho mais velho pediu que
preparassem um pedaço de pão com alguma coisa…
— Pode ser queijo? — sugere
Francisco.
— Que seeeja! — responde a
mulher. — Então eles cortaram trêêês pães…
— Três? E ele ia guentá comê? —
pergunta Afonso, intrigado.
— Era um lobo muito faminto… —
responde a mulher. — E assim eles fizeram! Colocaram queijo, alface e maionese.
— Huuuummm!!! Que lobinho mais
sortudo!!! — diz João, correndo a língua pelos lábios.
— Como tinham medo de abrir a
porta, jogaram os lanchinhos pela janela e o lobo, que estava exausto…
— E-E-xaus… Exausto? O que é
isso, mamãe? — pergunta Francisco, curioso.
— Cansado, meu filho! Ele tinha
andado muito.
— Por isso o tênis dele tava
fulado… — completa Afonso.
— Isso mesmo! — estala os dedos.
— Boooa! Tem razão! Então ele comeu tudo, mas os porquiiinhos, com medo, não
abriram a porta para receber os agradecimentos. E o lobo se foi, sem olhar para
trás. Os diiias passaram, quando o carteiro, numa bicicleta toda enferrujaaada,
trouxe-lhes uma carta. E sabe o que tinha dentro do envelope? Um bilhetiiinho e
um fotografiiia do lobo com seus filhotiiinhos. Nele, ele agradecia por terem
salvado a sua vida. Se ele não tivesse comido os pãezinhos… Bem, os lobiiinhos
teriam ficado sem pai! Coitadinhos!
— E a mãe deles? — pergunta João,
intrigado.
— Ela… ela… bem… bem… sabe… — atrapalha-se toda —, ela estava doente, de cama, dependendo do marido para fazer a comida para os lobinhos.
— Coitados!!! — exclamam os três.
— Eles iam morrer de fome.
— Pois é!!! O porquiiinho mais
velho chorou de alegria; o do meio, que teve medo no início, percebeu o quanto
é importante ajudar o próximo e prometeu nunca mais julgar alguém pela
aparência; já o mais novo guardou a fotografia ao lado da cama, num porta-retrato
como este — pega de cima do criado-mudo uma foto em que estão os três,
abraçados, ao lado dos pais, nos jardins da casa. — Meus três porquinhos! —
suspira de alegria.
— Mãe, a senhola nunca vai
abandoná a gente, né? — a pergunta mexe com a mulher, que se emociona; sequer
imagina que o destino, confabulando com a morte, os roubaria dela para sempre,
em poucas horas.
— E por que eu faria isso?
— A senhora sempre selá como o
lobo, né, mamãezinha? — insiste o menino. — Num “quelo” ficá sem ninguém…
— A gente tem medo de ficar sem a
senhora — falam os outros dois numa só voz. — Não vai mesmo abandonar a gente,
nunca, né?
Levanta-se, escondendo os olhos,
que lacrimejam, sem dizer uma palavra sequer.
— Mãe… mãe… venha, eu lhe peço,
de todo o coração, dê-me o seu colo, preciso aquietar meu coração, que
transborda de tanta dor — implora Luara, resgatando a mulher do vale das
lembranças.
— Oh, filhiiinha!!! — diz, sem se
aproximar, como se a criatura que estivesse à frente não tivesse saído de si. —
Filhiiinha!!! — está atordoada, incapaz de um gesto de afeto.
“Essa Luara é mesmo uma atriz,
meu Deus! Nunca vi tamanha desfaçatez!” — comenta Sofia, consigo mesma, num
misto de entusiasmo e admiração. “É bem capaz de matar alguém e sair-se como
vítima!”
— Venha, Leonor, Luara precisa de
você…
“Idiota! O que tenho de fazer
para alcançar meus objetivos. Se pudesse, a mandaria para o buraco agora mesmo…
E daí que é minha mãe? Não gosto dela! Nunca gostei! Aliás, como gostar de
alguém que eu nunca tive? A inútil da minha avó e a feiosa da Matilde, pelo
menos nisso, foram mais presentes que essa louca de pedra…” — destila todo ódio
por meio dos pensamentos, enquanto mantém o teatro.
Na capela do hospital…
“… tenha-a por perto, seja a sua consciência, antes que o mundo a roube de nós. Luara não é uma criatura capaz de se defender; frágil como é, ruirá à primeira tempestade e isso não poderemos permitir.” — as palavras de dona Beatriz permanecem a atormentar a governanta, que ajoelhada aos pés da santa, ora, em soluços, como se sobre os ombros carregasse o mundo, ou a parte mais podre dele.
— A senhora estava errada, sua
neta não presta, e não há nada que se possa fazer para salvá-la — diz, ao mesmo
tempo que implora pela ajuda da figura divina… — Minha Nossa Senhora, me ajude,
não sei o que fazer, a menina está com o demônio, nunca vi coisa igual, é como
se eu não a reconhecesse… Não entendo! Aquela que está lá em cima não é minha
Luara, não é! É um outro ser! Estou confusa demais!
— volta-se para a estátua. — Me
responda, minha santa, o que se passa?
— lembranças da garota, ainda
pequena, correndo pela casa, com uma alegria contagiante, domina seus
pensamentos, fazendo-a sorrir por um instante em meio às lágrimas, que lhe
borram a maquiagem. — Talvez fosse ela o casulo em que a verdadeira Luara
estivesse sendo moldada??? Só pode! Não! Não pode ser! — revolta-se. — Mas como
explicar tudo aquilo que eu ouvi? — levanta-se de ímpeto e, ao virar-se,
encontra-se com Leonor, que havia deixado o quarto. — Dona Leonor?
— Matiiilde, por que chora desse
jeito??? Por acaso, sente a mesma coiiisa que eu???
— E o que seria?
— Eu não sei explicaaar, mas algo
dentro de mim me impede de ser mãe daquela… daquela garota… — seu corpo treme
em meio à revelação. — Ela… ela… me dá meeedo! Como explicar uma coisa dessas?
— agarra-se a uma das mãos da empregada. — Cooomo?
_____________
1. Uma das obras mais importantes da literatura de língua portuguesa, escrita por Luís Vaz de Camões e publicada em 1572 . É composta por dez cantos, 1102 estrofes e 8 816 versos em oitavas decassilábicas. Trata-se de um poema épico, que glorifica o povo português. Ele narra a descoberta do caminho marítimo para a Índia pelo navegador português Vasco da Gama.
2. Rainha consorte da França. Foi guilhotinada durante a Revolução Francesa.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
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