Anoitece…
Egídio passa pela
porta do escritório e a fecha, sendo acompanhado à distância pela cigana, que
se mostra incomodada com a conversa privativa entre Luizinho e o capanga. Em
uma poltrona giratória em estilo clássico, apoiado a uma escrivaninha em
madeira maciça com tampo de vidro, tendo às costas uma cópia perfeita de O
Homem Amarelo¹ e, aos pés, um tapete retangular, originário da Turquia, o
patrão o aguardava. Intimidado pelo suntuoso recinto, o bandido preparava para
sentar-se, quando foi advertido. Constrangido, deu duas ou três pigarradas,
afastando-se bem devagar.
Ainda que não dissesse
com palavras, o Patrão regozijava-se em humilhar um subalterno seu, como se
aquilo o alimentasse de alguma forma; era como se, no papel de um Deus
solitário, ele mostrasse a todos que sua linhagem era de uma grandeza
inigualável, fazendo com que Darwin, o naturalista britânico, pusesse à prova a
própria teoria da evolução, porque seres como ele já nasciam evoluídos. Seu
narcisismo era de uma crueldade incomensurável!
— Quero ter uma prosa
contigo há tempo… — anuncia.
— O que manda, patrão?
Sou todo ouvidos.
— O que há entre
Álvaro e a garota?
Com as orelhas à
porta, Aurora ouve com dificuldades a conversa.
— Co-como assim? —
disfarça Egídio.
— O que mais odeio na
vida é gente burra ou que se faça; a estes somente o peso das cargas e das
carroças, mas acredito que você seja diferente, não é?
— Bem… bem… com
certeza! — sente-se provocado —… Eu acho que ele tá balançado pela pequena,
senhor; seus gestos são de um completo imbecil.
— Seja mais claro! — demonstra grande interesse.
— Perto dela, é ainda
mais bobalhão… Hum! O senhor precisa ver, os olhos do cretino crescem e brilham
à medida que se aproxima da moça, sem falar dos pensamentos, que parecem perder
o rumo, levando-o a fazer coisas que nem imagina…
— Como matar o filho
do diplomata? Confirma o bandido com a cabeça.
— E desde quando
percebeu isso? — pergunta Luizinho.
— Há algum tempo, mas
não tinha certeza, porém, depois do ocorrido de hoje, não me resta mais
dúvidas. Para evitar que a garota partisse dessa para uma melhor, ele até
chorou… E desde quando aquele “viado” chora? Nunca derrubou uma lágrima por
nada e olha que o conheço de várias penitenciárias, mas perto dela, chorou como
uma criança. Até achei engraçado, sabe! — dá um sorrisinho.
— E por que não me
contou antes? — exige, com os olhos ágeis como os de uma águia.
— Porque… porque… sei
lá, talvez porque eu não tivesse certeza…
— Burros não são só os
que carregam carroça, viu?
— O que o senhor quer
dizer com isso?
— EEEU??? Nada! —
ironiza. — Mas como quer crescer em nossa organização se me esconde as coisas?
Para se chegar ao topo, é necessário cumplicidade, respeito e lealdade com seus
líderes.
— Mas eu não escondi
nada — tenta consertar —, apenas tive receio, poderia soar mais como uma
fofoca…
— E por conta disso,
perderá a promoção que tanto almejava; continuará como um “burro de carga”,
levando chicotadas, até aprender que não tem que pensar por conta própria, mas
relatar tudo o que vê, deixando a pessoas de minha estirpe, que tirem as
próprias conclusões. Imbecil! Burro!
— Eu não sou burro, se
fosse, não teria impedido que o senhor e a dona cigana entrassem agora há pouco
no quartinho, onde está a garota, porque se ela os visse, sua fama de camaleão
cairia por terra. Ela conseguiria botar no papel o retrato de todos os que
mandaram sequestrá-la, principalmente o seu, não é mesmo? E o que não diriam os
outros membros da família? Que o camaleão, levado pela ingenuidade – ou seria
burrice? –, havia caído na própria armadilha.
— COMO OUSA FALAR
ASSIM COMIGO, SEU VERME?
— levanta-se,
espumando de ódio.
Com a mão na arma, Egídio não responde.
— É, de certa forma
você tem razão! — concorda Luizinho, recuando. — Mas errou ao não me contar do
vagabundo com a piranha… Por conta daquele infeliz, a Polícia Federal entrou no
caso, é bem capaz de bater à nossa porta a qualquer momento, e nos devolver ao
xilindró.
— Para a cadeia eu não
volto nunca mais! — resmunga.
— Isso é você quem
diz… — senta-se de novo.
— E mesmo que isso
volte a acontecer, tenha certeza, antes eu dou cabo da vida daquele peste… —
profetiza Egídio. — … Para quem matou a mulher e o amante com uma só bala,
matar um vagabundo daquele é fichinha.
— E É ISSO O QUE FARÁ!
— sentencia o Patrão, ao relembrar- se da suposta atração da cigana por Álvaro.
— POIS EU VOU METER
UMA BALA NA CARA DELE
AGORA — engatilha a
arma. — COMIGO É ASSIM, PISCOU, A BALA TÁ NO ZÓIO!
— Na hora certa,
homem! — sinaliza para que o subalterno guarde a arma. — E lhe prometo, sentirá
um enorme prazer em mandá- lo para o inferno, porque gente da laia dele, que
entrega o coração a qualquer piranha que aparece, não é digno de integrar nossa
família.
— Eles não podem matar
o Álvaro! — a cigana diz consigo mesma, bastante preocupada. — Como posso
impedir isso?
— Mas por que esperar,
se eu posso lhe passar o fogo já? Aquele sonso já deveria ter vestido o paletó
de madeira há muito tempo — diz Egídio.
— Tenha calma! —
levanta-se da cadeira em direção à porta, gesticulando ao comparsa para que não
fizesse nenhum barulho; ao abri-la, não encontra ninguém, então a fecha de
novo, retomando o diálogo. — E tem algo a mais para me dizer?
— Como o quê???
— Não sei… talvez
Aurora!
— A cigana? Vixe! Nada
não, patrão… — ele se apavora só em pensar no que Aurora faria caso ele a
delatasse. — O que o senhor quer que eu diga?
A conversa é interrompida pelo celular, que vibra em cima da mesa. Ao identificar a ligação, descarta o comparsa, enche os pulmões de ar, ajeita a roupa, e sentado à cadeira, como se nada tivesse acontecido, atende a chamada de vídeo. Do outro lado, um homem de cabelos grisalhos e barba por fazer, com cara de poucos amigos, o cumprimenta com uma das mãos, enquanto degusta uma saborosa carne de porco à alentejana, acompanhada de uma boa taça de vinho.
— Doutor! — saúda
Luizinho, com um sorriso lustroso.
— Meu caro, nossa
família não aceita erros, já foi um milagre não pôr fim à vida de sua amiga;
porém, se houver um novo fracasso, tanto ela como você, acordarão no cemitério,
compreendeu? — pergunta o homem, numa voz rouca, em que era possível perceber o
sotaque anasalado, com ênfase no final das palavras.
— Por que está me
dizendo isso? — alterna a expressão. — O plano segue como prometido.
— Tem certeza? — ri,
de raiva. — Nossa Família orgulha-se dos nossos membros, por isso qualquer
traição é imediatamente repelida à bala.
— Eu nunca o traí,
doutor!
— Todo traidor, mente!
— a voz intensifica a rouquidão.
— Não entendo!
— Como foi o
sequestro? — o homem esmurra a mesa de jantar.
— Conte-me! Nada fugiu
ao controle?
Aurora, nos aposentos
do andar de cima, anda de um lado para o outro, com o destino a lhe soprar
coisas terríveis aos ouvidos. Desorientada, abre a janela, cerra os olhos, e
uma brisa, como que arremessada magicamente pela Natureza, toca-lhe a cútis
sedosa, que resplandece, elevando-a ao mais alto plano espiritual, de onde, em
profunda comunhão com os ancestrais, ela é agraciada com uma oração em
romani²:
na muk e rooli te avel baari ande tute ay muk o Deevlesko
glasso te orbil tussa kay ande tutei. Kaade sá o nassulipe jalatar
“Deus está em toda parte ao mesmo tempo.
Ao seu redor e dentro de você.
Você jamais estará desamparada e nunca estará só. Não permita que a mágoa a perturbe.
Procure manter-se calma, para ouvir a voz silenciosa de Deus que está em você e assim poderá superar todas
as dificuldades que aparecerem em seu caminho e,
há de descobrir a verdade que existe em todas as coisas e pessoas.”
A paz de espírito é
plena, até que alguém a chama; ao virar-se, encontra Álvaro, que mesmo inibido,
pede:
— Po-po-posso
fa-fa-falar com a se-se-senhora?
O bandido está
terrivelmente lindo em toda aquela simplicidade, cuja ousadia, a faz
esquecer-se, por alguns segundos que sejam, dos perigos que ele corre por estar
ali.
— Sim! O que deseja?
Aconteceu alguma coisa?
— E-Eu queria apenas
dizer à senhora que…
— Fale… estou ouvindo
— chega cada vez mais perto de Álvaro, a atração grita-lhe dentro do peito e
tem uma força explosiva, que a faria ultrapassar todas as fronteiras da
sanidade por um beijo, um simples beijo dele, ainda que isso lhe custasse a
própria vida.
— Eu… eu só queria…
Antes que ele pudesse
findar a frase, agarra-o pelo pescoço, os lábios se encontram e atiçam a brasa
da paixão, que faz bambear as pernas, faltar o ar, disparar o coração. E,
diferentemente do que imaginava, ele retribui, abraçando-a com a força de um homem
loucamente apaixonado. E como beija bem!
Tomando-a em seus
braços, joga-a na cama, de onde lhe abre os botões do vestido, um a um, como
quem deseja algo há muito tempo; visivelmente atingido por uma das flechas de
Eros, beija as orelhas, a tez bem desenhada, o colo, o ventre, enquanto as
mãos, sorrateiramente, desbravam o desconhecido… Aurora regozija-se com a forte
sensação de paz que lhe corre o espírito, preparando-se para a dança dos
corpos, que logo se consumiria, para surpresa até mesmo dos oráculos.
De volta ao
escritório, Luizinho discute com o homem.
— A filha do general
está conosco, senhor! Logo seus quarenta e cinco milhões lhe serão devolvidos.
— E a que custo? — pergunta, bastante irritado. — Um senador, amigo de nossa Família, avisou-me da morte do filho do diplomata…
— Como? Foi uma
fatalidade! — tenta esquivar-se. — Já estou tratando disso! Confie em mim!
— Confiar? — sorri com
sarcasmo. — Nem na minha sombra. Limpe a sujeira que deixou pelo caminho;
dou-lhe uma semana para que este sequestro se encerre e você e sua rapariga me
paguem o que é devido, senão, o que está apalavrado será cobrado com juros. E o
que mais desejo, para completar este “momento de alegria” é vê-lo em um caixão,
infeliz! — arremessa as palavras com uma frieza de doer na alma. — LEMBRE-SE,
UMA SEMANA!!!
Alguns seres já nascem
mesmo evoluídos e o Português provava isso com sua prosa desconcertante.
— Egííídio!!! — grita
pelo empregado, após encerrar a ligação, sendo prontamente atendido. —
Precisamos dar um fim nesta história já, a morte do filho do diplomata rodou o
mundo… Vamos dar cabo do infeliz e limpar toda a sujeira que ele deixou.
— Como quiser! — põe a
mão na pistola.
— Prefiro que o
Custódio faça isso, enquanto você aterroriza a família do general. Capriche,
bote fogo no parquinho, cometa os maiores absurdos e faça aquela gente pirar de
medo e nos pagar o resgate; aliás, aproveite e envie algumas fotos com o antes
e o depois da garota.
O capanga não
acompanha o raciocínio do homem, que lhe explica sem muita paciência.
— Dê uma surra na
filha do general de deixar marcas, fotografe tudo e as encaminhe juntamente as
que tirou enquanto a seguia. Faça valer o seu nome entre os nossos. Será bem
recompensado.
— É para bater nela???
— estranha. — Eu não bato em mulher, apenas mato.
— Deixe de onda,
encare-a como um pacote, meta a porrada, sem qualquer tipo de remorso. Quero
ver aquela gente implorando pela filhinha deles… — gargalha, com os olhos
faiscando num misto de prazer e medo.
Liga para Custódio e
quem atende é o delegado.
— Quem está falando???
É o patrão??? — pergunta Enrico, na delegacia, ao ler o nome dele no visor. —
Quer falar com seu comandado? Pois o encontrará no caixão, na sala da casa
dele, de onde está sendo velado.
Luizinho desliga,
assombrado.
— O que foi, senhor? — indaga Egídio, vendo-o sem cor.
— Custódio morreu, um
cara acabou de me falar, mas… mas… co-como? O que está acontecendo? Estou
perdendo o controle de tudo!
— leva as mãos à
cabeça. — Como pode?
— Talvez o seu
“amuleto” esteja avariado — arrisca.
— O que está me
dizendo, desgraçado??? — ele entende a provocação. — Com quem pensa estar
falando? Só não lhe meto uma bala nas fuças agora porque… Cadê Aurora? Preciso
falar com ela. Aurooora!!!
Enquanto isso, na
delegacia…
— Peça para rastrearem
este número, Duarte; há de chegarmos ao mandante do sequestro, apesar de eu não
acreditar muito nisso, porque, pelo pouco que disse Zangado, o tal patrão é
como um camaleão e não ligaria do próprio telefone.
O oficial concorda.
— Procurou pelo
Solano?
— O dia todo! E nada!
— responde Duarte.
— Aquele anão nos
enganou…
— … assim como o
senhor o enganou… — rebate o oficial.
— Você percebeu?
— Óbvio! Assim como o
senhor pôs a prêmio a cabeça de Custódio… Hum! Jamais deveria ter feito isso!
— Eu estou sentindo um
“ar” de repreensão, Duarte?
— O senhor deveria
tê-lo preso, não feito o que fez, isso é crime! E para piorar, ainda está com o
celular dele. Por que não o devolveu à sua família?
— Ele armou uma
emboscada para a gente, iríamos morrer, ainda não percebeu?
— Porque o senhor
deixou se envolver…
— Como assim?
— Metido a Sherlock
Holmes, não percebe quando ultrapassa o limite da lei e comete crimes assim
como os criminosos que tenta prender.
— O importante é que
para a família dele ele continua um herói… Coitados! Se soubessem da verdade!!!
— Mentira em cima de
mentira, o senhor não tem vergonha, delegado?
— Você está me
desacatando, oficial…
— … o senhor já nos desacatou! Se quiser me prender, que o faça, mas não conte mais comigo em suas investidas, a não ser que esteja de posse de uma ordem judicial… Justiça com as mãos não é Justiça; é vingança!
— Não acredito no que
estou ouvindo, estaríamos mortos se eu não tivesse tomado aquela atitude, cara.
— Agradeço por me
defender! Se eu morresse, minha mãe não daria conta de meus filhos… Sabe, seu
delegado, sou viúvo e passo um perrengue para educar meus pequenos, já tive
inúmeras propostas para mudar de lado, mas nunca aceitei… Como eu poderia olhar
de novo para eles? A justiça tarda mais não falha, é isso que lhes ensino.
Peça-me tudo, menos que traia meus princípios.
Enrico se cala diante
do alerta do subalterno.
— E o que vai fazer?
Me entregar à Corregedoria?
— Deveria! Mas
agradeça, esta história morrerá comigo. O delegado fica sem reação.
— Entretanto, a partir
de hoje não trabalho mais com o senhor, acabo de solicitar minha transferência,
mas fique tranquilo, aleguei problemas de ordem pessoal. Os caras lá de cima
gostam de meu trabalho e facilitaram tudo para mim. É melhor assim, não quero
compactuar com práticas que sempre abominei. Me desculpe! — termina, deixando a
sala.
— Cara, que loucura!
Ainda há gente honesta neste mundo; se eu contasse, ninguém acreditaria.
Senta-se na cadeira de
frente para um painel, de onde retoma a trama da filha de Martim.
— Tudo começou,
vejamos, com um carro preto… opa! Será que conseguiram as imagens da rua que
solicitei? — chama por Duarte, que não responde. — Oh, meu Deus, honestidade é
a melhor coisa que existe, mas não no Brasil… Isso atrapalha o serviço… E como!
Clóvis!!!
— Sim, senhor! O que
foi? — inquire o rapaz, de estatura mediana, barriga saliente, bigode escovado,
comendo uma rosquinha.
— Veja se conseguiram
as imagens que solicitei…
— Coloquei em sua
mesa. Está neste pen drive — aponta.
— Que bom! — coloca-o
no computador e assiste aos vídeos. — Pare! Encontramos! Veja lá o carro, em um
só dia, passou mais de cinco vezes em frente à mansão. Era mesmo um crime
premeditado! A tal governanta tinha razão.
Aproxima a imagem e
anota a placa.
— Consiga para mim os dados deste veículo — pede ao oficial, retornando ao quadro.
Carro preto, Hedonê,
morte de Nicholas, sequestro, Solano, favela do Sol Nascente, Custódio,
Zangado… O que mais faltava para se chegar ao mandante? Não sabia, mas que
Solano era o caminho, o único, disso tinha certeza. Mas como o encontraria? O
anão se fez de rogado… Outra coisa que lhe causava estranheza era o valor do
resgate, bem acima do padrão.
Alisa o próprio
semblante com a tampa de uma caneta, até que lhe vem uma luz do fundo da alma.
Por mais que os bandidos a seguissem, como sabiam da boate? E por que a boate?
Algo ali não se fechava… Só contrataram o serviço de Solano porque tinham a
informação de que ela iria para lá. Teriam grampeado o telefone? Muito
complicado! Seria mais fácil se alguém os tivesse informado, mas quem? A amiga
Sofia? Não! Pelas primeiras checagens, ela era limpa, nem multa de trânsito
tinha. Então… Lembra-se de Cleide derrubando a xícara de café e desmaiando…
Opa! Além da família dela morar em Ceilândia… Será? Muito evidente? Talvez!
Levanta-se, conecta todos os fatos com um pincel, como se fizesse um verdadeiro
mapa mental, e todas as perguntas morrem em Cleide.
Neste mesmo instante,
na mansão dos Vaz, a cozinheira arruma suas coisas, quer é logo dar o fora
dali. O relógio da sala de estar anuncia às 23 horas. Abre a porta do quarto
bem devagar, passa pela cozinha escura sem fazer ruídos, quando é surpreendida
por Matilde, que acende a luz.
— Aonde vai a esta
hora, Cleide? — a governanta estranha a atitude da empregada, que parecia fugir
da cena de um crime.
— Oh, Matilde, sabe
como é, meu pai ficou muito doente e minha mãe não para de chorar. Preciso ir a
Ceilândia com urgência.
— Verdade? Então
Eufrásio a levará! Tenho certeza de que seu Martim não se importará.
— Imagine! Pobre é
acostumado a andar de ônibus; se eu chegar com um carrão desses lá no barraco,
o povo é capaz de achar que sou a nova “Gisele Bündchen da rapaziada” e não tô
a fim de passar a noite toda dando autógrafo; já viu como favelado fede, minha filha?
— Meu Deus! Tem
certeza de que não é filha de dona Leonor?
— pergunta, diante de
tanto disparate.
— EEUUU O QUÊÊÊ??? — Leonor entra na cozinha, atraída pela conversa das empregadas. — Acharam minha filhiiinha??? Tô que não me agueeento! — faz cara de choro. — Só em pensar que ela servirá de feijoada a um bando de criminosos, já me corre um arrepio pelo corpo; ainda se fosse uma torta de frango… não, frango não, porque ela não é galinha…
— Meus Deus, abriram
de novo a porta do hospício — confidencia-se Matilde.
— Que malas são
eeessas? — pergunta, ao repará-las ao lado da empregada. — Vai para onde,
Cleeeide??? O que tá acontecendo com ela, Matilde?
— Diz ela que…
— Minha tia morreu… —
finge um choro de causar pena.
— Coitaaaada!!!
— Epa! Há algo de
errado, não era seu pai que tinha ficado doente? — Matilde a confronta.
— Sim! Meu pai ficou
doente porque minha mãe morreu…
— Não era tiiiaaa??? —
estranha a patroa.
— Meu pai ficou doente
porque minha tia e minha mãe morreram…
— Creeedo!!!! Vixe!!!
Ai, ai, se essa moda pega, logo quem poderá bater as botas será minha
filhiiinha… Tô me sentindo mal!!! Ahhh!!!! Que horrooor!!! Vou desmaiaaar!!!
— Tô indo, não posso
perder o último ônibus, até mais, família…
— Cleide se aproveita
da loucura da mulher para escapar.
— Espere, Cleide, que
vou lhe ajudar — pede Matilde, socorrendo antes a mãe de Luara.
A empregada abre a
porta e sai, ao passar pelo portão, é abordada pelo delegado.
— Está indo atrás do
Solano? Me leve junto! — ironiza Enrico, deixando o interior do veículo, que se
encontra com as luzes apagadas, para a surpresa da cozinheira, que não
reconhece o delegado, levando as mãos à boca e arregalando os olhos.
— Pode levar tudo!!! Não quero morrer!!! — delira tanto quanto a patroa. — Ninguém merece ser assaltada a esta hora e logo no Lago Sul!!! Cadê a polícia quando a gente mais precisa???
_____________
1. Obra de Anita Malfatti, O Homem Amarelo, que representa um imigrante italiano pobre que posou para a artista na época em que ela estudava no exterior, sustentando “um olhar desesperado”, foi feita em carvão e pastel. Apresentada na Semana de Arte Moderna de 1922, a tela foi motivo de polêmica, por fugir do convencional.
2. O romani é o idioma dos Rom e dos Sintos, povos nômades geralmente conhecidos pela designação de ciganos. Não deve ser confundido com o romeno e o romanche, que são línguas latinas.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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