E o que seria meramente um momento de prazer,
torna-se eterno, pelo menos para a cigana, que dos braços do amado, sorve- lhe
toda a essência como uma vampira às suas vítimas; no rito da conjunção carnal,
as almas, elevadas ao êxtase, se enlaçam, gemem, ofegam, sorriem… O tempo
poderia parar! — pensa Aurora, entregue ao homem, enquanto alisa o cabelo dele,
toca seus braços, beija-lhe os lábios como quem bebe a água doce de um riacho
abençoado, mordica seu pescoço, ao redor de seus mamilos, sua orelha, seu tórax,
suas coxas, numa inquietante sinfonia de instintos.
O que para ela era amor, para ele, certamente,
resumia-se à pele. E tinha consciência disso, mas acreditava que o Amor, pelo
menos o verdadeiro, como uma semente, germinava a partir do encontro dos corpos
e ganhava terreno com os dias, a cada carinho que fizesse, a cada cuidado que
tivesse com ele… Sentia isso! E como sentia!
Estava leve como nunca e, se ele não a
segurasse, seria bem capaz de flutuar, atingir o céu e gritar para que todos
soubessem de sua felicidade. Parecia não se importar com Luizinho, pois se ele
descobrisse, o mundo cairia e o que hoje é paz, se transformaria num campo de
batalha, podendo lhe causar a perda do amado que agora a tem nos braços… Mas
isso não deixaria que acontecesse! Enfrentaria o “seu dono” de peito aberto,
porque sabia, enquanto a vida lhe corresse pelas veias, a Natureza – o sustento
de seu poder –, atiçada pelos ancestrais, viria ao seu socorro. Doce ilusão de
uma mulher apaixonada!
— AUROOOOORA!!! — brada Luizinho os vendo em
sua cama. — QUE DESGRAÇA É ESSA??? VOU TE MATAR, SEU
BOSTA!!! — volta-se para Álvaro, que pula da
cama, tentando alguma explicação.
— Pare, pare, pare, meu querido!!! — pede a
mulher, desorientada.
— PAAARE? TÁ LOUCA??? POSSO SER TUDO, MENOS
CORNO!!!
— Verdade? Corno pode não ser, mas que já tem
muitos galhos na testa, ah, isso tem — debocha Egídio, sussurrando às costas do
homem, ao assistir a tudo de camarote.
— Eu… eu… não sei o que aconteceu… talvez estivesse enfeitiçado… — justifica o bandido.
— Safadeza agora mudou de nome? — zomba Egídio, contendo o riso.
— POIS EU VOU LHE DIZER O QUE ACONTECEU… —
desvairado, vai em direção ao rapaz com toda a
fúria, sendo contido pela cigana, que à sua frente, implora para que não faça
nada contra o homem que ama.
— Meta uma bala nele, patrão, como eu fiz com
minha mulher e o amante dela; tenha certeza, a alma se sentirá livre depois
disso. Vamos, dê logo cabo dele! O bicho não presta, deitou-se com sua cigana,
não viu?
— Paaare, Egídio! Não piore mais as coisas! —
implora Álvaro, desprotegido.
— Tô cagando e andando para você, seu bosta,
quero é vê-lo logo sendo devorado pela terra…
— Por que, Egídio??? Por quê??? Eu nunca te
fiz nada!!!
O capanga, com a face pesada, cospe no chão,
sem responder a pergunta.
Com as forças de seu coração, Aurora segurava
os braços de Luizinho, impedindo-o que encontrasse a mira e despachasse para
bem longe dos vivos, o homem que há pouco lhe doou o cálice da luxúria ofertado
por Baco.
— Meta bala! Deixe de ser frouxo! — instava
com mais fervor. — A honra de um homem só se lava com sangue.
Em um daqueles momentos de fúria incontida,
Luizinho arremessa a mulher contra o chão, voa para cima do amante, agarrando-o
pelo pescoço com toda a força que possuía. Álvaro até esboça uma reação, mas
logo cede, perdendo o fôlego, enquanto é arrastado à parede, tendo a arma
prensada contra o queixo.
— E agora, vagabundo? A festa acabou! — a
saliva escorre pelo rosto e cai sobre a roupa. — Que se lembre, quando já
estiver no inferno, que em “propriedade” do patrão ninguém põe a mão, sob pena
de acabar estirado no chão, com uma bala bem no meio da testa.
— Não faça isso!!! — implora a mulher, após se
levantar com muita dificuldade, tentando puxá-lo pelos braços. — Pare!!!
Paaare!!! Deixe o meu amor em paz!
— AMMOOOOOORRRR???? SEU
AMOR SOU EU,
INFELIZ! — dá-lhe um empurrão tão forte, que a
derruba.
Aurora geme de dor, para os aplausos de Egídio, que se alegra em vê-la caída.
“Se tivesse percebido meu amor por você, não
estaria no chão, mas no trono de um imenso castelo, tendo aos pés um bando de
súditos enlouquecidos para adorá-la” — pensa o capanga, como que vingado pelo
desdém da mulher, a quem sempre venerou, apesar dela o ignorar. Está aí o
resultado da escolha errada.
— NÃO FAÇA ISSO!!! DEIXE-O EM PAZ!!! — suplica
a cigana, num pranto comovente; mas, por incrível que pareça, ela não desiste,
cerra os olhos e concentra-se com toda a força de sua alma, dizendo:
— Oh, oráculos da Natureza, eu os invoco para
que venham até mim e me façam forte como as feras que vagam pela noite,
destroçando suas presas…
Ouve-se um trovão.
— Mate logo, patrão!!! A mulher é o cão e está
clamando pelo “bicho” — alerta Egídio. — VAAMOSS!!! Meta logo essa bala!!!
O vento forte desce do céu e estremece os
galhos das árvores, que derrubam parte da folhagem. As nuvens escondem a lua,
que se apavora com a quantidade de raios arremessados contra a terra,
prenunciando a chegada de uma forte chuva, que faria um grande estrago na
capital, principalmente nas cidades-satélites.
— PATRÃÃOOO — o bandido volta a alertar,
apavorado com a transformação da cigana.
Possuída por seres de outro cosmo, ela
recupera as energias, e com a fera que mora dentro de si à solta, ela ruge,
indo ao encontro de Luizinho; suas unhas, como garras afiadas, dilaceram as
vestes e as costas do homem, que uiva de dor, retraindo-se; é o momento que
Álvaro precisava para fugir daquele cativeiro sem grades. Mas é agarrado por
Egídio antes de chegar à porta e devolvido ao centro da briga.
— EU VOU MATÁÁÁ-LO!!! — surta o Patrão.
— NUNCA!!! — retruca a mulher.
Com o bandido na mira, aperta o gatilho, a
bala voa e só não atinge o bobalhão porque ela salta à sua frente, recebendo o
tiro que seria dele.
Ao perceber o que havia feito, Luizinho cai em
desespero, joga a arma para o lado, e corre ao auxílio dela.
— Ele está fugindo, patrão! — alerta o
comparsa.
— Dê um fim nele!
— É pra já! Como esperei por este momento! — os olhos do homem brilham de prazer.
— Não faça isso! — pede Aurora, com o sangue
escorrendo pela roupa. — EEEle não teve culpa!
O patrão pressiona o ferimento com as próprias
mãos enquanto ela delira.
Outro tiro é ouvido.
— ÁLLLVAROOO!!! — grita a mulher, em meio às
lágrimas, sendo abandonada pelas forças oraculares, que retomam o caminho do
esquecimento.
— ÁLVARO??? COMO ASSIM??? — pergunta Luizinho,
pegando-a do chão. — O que está acontecendo aqui?
— Álvaro, não, não… por quê?
— Do que ela está falando, Egídio?
— Sei lá, patrão, o cara deve ter feito algum
mal a ela, só pode.
Vamos passar fogo nele já!
Recobrando os sentidos, a cigana primeiro
avista os olhos confusos de Luizinho, que a tem em seus braços. Ao correr a mão
pelo próprio corpo, percebe que o ferimento havia desaparecido, milagrosamente,
assim como suas vestes, que não continham sequer uma gota de sangue. Apoiada ao
homem, levanta-se bem devagar, olha para todos os cantos, tudo está intacto
como antes.
— Onde estou? — pergunta Aurora, tentando
conter a repentina dor de cabeça. — O que aconteceu aqui?
— Aqui onde? Nada!!! Estava atrás de você,
quando a ouvi gritar pelo bobalhão, então corri para cá e a encontrei caída.
Ele lhe fez alguma coisa? Diga, que acabo com ele numa só bala — diz Luizinho.
— Ele não me fez nada! — responde com ira. —
Foi tudo um delírio… — diz a si mesma, regressando à realidade — … eu nunca o
tive… NUNCA! QUE TRISTEZA!
— Eu não disse, senhor, seu amuleto está
avariado — o capanga aproveita a deixa para fazer outro de seus comentários
provocativos.
No quartinho, Luara tenta desfazer um dos nós, tendo a escuridão como companhia. É um puxa daqui, outro de lá, mas a mão não se liberta. Continua tentando e tentando, cada vez com mais força, era a única maneira de reencontrar a família… E que saudades dela. Sentia falta do pai, aquele homem sensato, que lhe dava bons conselhos; de Matilde, que estava sempre à espreita, guardando-a de todos os males – ou pelo menos de quase todos; até da mãe, aquela desmiolada, que nunca esteve presente em suas dores e que tantas vezes a envergonhou em frente aos amigos, seja por conta da falta de papas na língua, seja por conta do tratamento repreensível que dirigia aos empregados. E da avó, Dona Beatriz, que a compreendia e que a ensinou tudo sobre a vida, mas que, por infelicidade do destino, mesmo que saísse dali, não a reencontraria, não neste plano.
Da fresta da janela, Álvaro a procurava em
meio àquele breu, sua vontade era a de arrombar a porta e levá-la dali, ainda
que isso lhe custasse a própria morte, como gostava de dizer o patrão.
Ouvia o barulho da cama e imaginava a força
que ela fazia para tentar se libertar… Tinha que fazer alguma coisa, mas se
entrasse no quartinho de novo, o patrão não perdoaria, a não ser que… Olha ao
redor, o segurança da mansão estava longe, sentado em sua cadeira, empolgado
com a partida de futebol que assistia. Tinha alguns minutos apenas. Era agora
ou nunca.
Levanta a camisa e retira um punhal. E com ele
rasga um dos cantos da madeira da janela, de modo que pudesse arremessar o
objeto. Vigilante, talha a parte mais frágil, apodrecida pelo tempo. Luara
percebe o barulho, até grita, mas o som é novamente abafado pela mordaça. Mal
ela sabe que do outro lado, correndo todos os perigos, está um homem
apaixonado, louco para tirá-la daquele cativeiro, pondo a própria existência em
risco.
Após muito esforço, abre um pequeno buraco na
lateral — espaço suficiente para que pudesse passar uma das mãos; desta forma,
força a madeira, que se desprega em dois ou três pontos. O segurança,
percebendo algum movimento, deixa o seu posto.
A luz de uma luminária distante avança sobre o
quarto, permitindo que Luara reconheça a silhueta de Álvaro à janela; antes que
pudesse entrar em surto novamente, a imagem de sua avó surge- lhe diante dos
olhos, pedindo calma, porque ela estava ali, ao seu lado. Emocionada, ela
encontra os olhos do bandido, cujo coração, galopante e aflito, poderia
escapar-lhe pela boca. O punhal é arremessado ao lado do corpo dela.
— O que está fazendo aí, mané? — pergunta o
segurança a Álvaro, que esconde a abertura com o próprio corpo.
— Cara, ainda bem que chegou, eu… eu ouvi um
barulho vindo de lá — aponta para o lado oposto. — Será polícia?
— POLÍÍÍÍCIA??? Vixe!!! Melhor avisar o patrão, não tô a fim de curtir o carnaval na cela de um aloprado — se manda para dentro da casa.
— Força, garota! Eu confio em você! —
sopra-lhe, ajeitando a madeira, para o espanto da moça, que percebe ter
encontrado o seu anjo da guarda. — Força!
Não muito longe dali…
— Como o senhooor pôde ter pensado tão mal de
Cleeeide??? Peço uma retratação já! — exige a matriarca dos Vaz, ao tomar
conhecimento das suspeitas do delegado.
— Retratação? A senhora está louca? Estou
apenas fazendo meu trabalho!
— Ele disse que eu iria visitar um tal de
Solano e queria ir junto
— chora, limpando as lágrimas e o nariz em um
guardanapo de pano.
— Este guardanapo não é da cozinha, Cleide? —
alerta Matilde, com cara de nojo.
— Que porquiiice é essa, Cleeeide? Além de
pobre, é suja! Que horrooor, meu Deus!!! Pode levar, seu delegado, gente como
essa não quero por perto.
O homem se indigna com o rumo da conversa.
— Oh, dona Leonor, como pode falar isso de
mim? Sim! Confesso, eu estava mentindo quando disse que o povo do barraco tinha
ido dessa para uma melhor, mas fiz por uma boa causa.
— Diga mais… — ordena Enrico, curioso.
— O povo de Ceilândia tava se reunindo para
fazer um abaixo- assinado, querem que a Dona Leonor os represente no Big
Brother…
— BIG BROOOTHER??? EEU?? QUE LOUCUUURA!!! — os olhos da mulher faíscam.
— Sim, dona Leonor, até porque, qual
participante teria mais empatia e graça que a senhora? Nenhum! Naquela casa não
teria pra ninguém, a senhora seria o centro das atenções, faria uma arruaça de
dar inveja àquelas plantas. Imagine nas festas, rebolaria o pandeiro e dançaria
até o chão…
— Ai minha coluna — diz a mulher,
interrompendo a conversa, enquanto apalpa as costas.
— Deixe disso, a senhora brilharia feito uma
estrela, botando aquele gato do Arthur Aguiar no chinelo… Uh! Imagine tomar um
goró ao lado de algum bonitão e terminar a noite debaixo do edredom???
— se empolga. — Só em pensar já me sobe um
calor!!! Crendiospai! Quanta coisa boa, né, não dona Leonor???
— Oh, nem se fala, minha filha. E que o Martim
não nos ouça
— dá um sorrisinho amarelo.
— E no jogo da discórdia, a senhora botaria o
dedo na cara de qualquer um, sem medo de ser feliz, porque o Brasil já te
amaria, assim como Ceilândia…
— Pode ficar, Cleeeide! Vou lhe dar outro
aumento, você realmente sabe valorizar o que é bom nesta vida.
— Aumento de novo? — reclama a governanta, se
afastando. — Daqui a pouco essa cozinheira vai acabar dona da casa.
— E o povo tava preparando uma passeata, bem
maior que a dos patriotas, só para pedir que a senhora fosse aceita pelo
programa, porque o Boninho negou… A revolta em Ceilândia é geral!
— O BONIIINHO NEGOU? E POR QUÊ??? — pergunta,
curiosa.
— Disse que lhe faltam parafusos… Aff! É cada
coisa, né? Enrico segura a gargalhada.
— Que horrooor!!! Ele é um mal-amado!
Certamente, Ana Furtado deve estar lhe enfeitando os cornos…
— Era para ser uma surpresa à senhora, mas
este “delegadozinho” acabou com tudo.
— Que horrooor!!! Pois o prenda, oficial —
pede a Clóvis, substituto de Duarte, que acompanhava Enrico.
— Prender o delegado? E por quê? — assusta-se
o rapaz.
— Ele é um estraga prazeres!
— Na certa, queria o seu lugar, dona Leonor —
conspira a cozinheira. — É um invejoso de galocha, só pode! E olhe que eu o
achava um gostosão… bem, ainda continuo achando, mas um pouco menos…
A loucura é tamanha que o próprio Enrico dá
boas risadas, não acreditando como aquelas duas ainda não dividiam uma camisa
de força.
— Clóvis, confirmou a história da moça aí? —
inquire o delegado, apontando-a com o olhar.
— Sim, senhor! É tudo verdade, fecharão as
rodovias adjacentes amanhã de manhã para pedirem que a velha aí entre para o
programa.
— Velha é sua avó, seu gordo bigodudo — Leonor
abaixa o nível.
— CHEGA! — ordena o delegado. — Mas se essa
história de maluco é verdadeira, por que carregava estas malas, Cleide?
— Como o senhor é ingênuo, doutor delegado — tira sarro —, aí estão as roupas da velha, digo, da Dona Beatriz, que a patroa pediu que eu doasse às barangas lá da quebrada.
— IIIsso é verdade! — ratifica Leonor.
— Meu Deus! Se eu permanecer mais um minuto
nesta casa, com essas duas, é bem capaz que eu termine rasgando dinheiro.
— O que está acontecendo aqui? — pergunta
Martim, de pijama.
— Delegado, aqui em casa? Alguma notícia de
minha filha?
Na cozinha, Matilde toma um copo d’água,
quando percebe a porta que dá acesso aos fundos aberta. Faz o movimento para
fechá-la, mas vencida pela curiosidade, resolve descer a escadaria até o
jardim, no quintal da mansão. Para, ao ouvir parte de uma estranha conversa:
— Cara, você tem que sumir, o delegado está na
sua cola! Não tem mais nem menos, é pegar o carro e vazar. Para onde você vai?
Esse é um problema seu! Vai me entregar? Até parece! Antes levará uma azeitona
na testa, seu corno! Tá, tá, vou te ajudar, mas só porque o meu tá na reta, seu
cara de pau. Sabe aquela casinha em Brazlândia? Tem uma edícula, se aloje lá.
— Brazlândia? Com quem você está falando,
Eufrásio? — cobra a governanta, bastante intrigada. — Responda! Por acaso não é
com o tal do… Ah, Eufrásio, logo você?
O homem se assusta, derrubando o celular.
Voltando ao cativeiro de Luara…
A pobre se contorce, num esforço para pegar o punhal, até que uma das barras da cabeceira se solta. Com os braços flexionados, corre a corda pelo ferro, mas o trajeto é complicado. Então resolve puxá- lo com golpes em sentido anti-horário. Esgotada, chora. “Meus Deus, como vou sair daqui? Há de se ter um jeito!” — pensa ela, tentando se tranquilizar. E recomeça a via-crúcis.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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