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Antologia O Mal que nos Habita - 3x03

Conto de Jão Marinho
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Sinopse: O quão ingrato um homem pode ser com as bençãos que recebeu no decorrer da vida? O bastante para reclamar sangue para saciar sua sede. Sangue e ingratidão fala do quão profundo é o desejo humano, e do quão pervertido ele pode se tornar com o decorrer do tempo. De uma simples vontade ao derramamento de sangue.

3x03 - Sangue e Ingratidão
de Jão Marinho

Enaldo era um homem ingrato, meu pai, quanta ingratidão! Nasceu numa casinha construída por seu pai com muito suor e labuta. Ficava à beira do rio Coya, em cima de um barranco alto. Nos arredores, moravam não mais que três famílias, com casas espalhadas por entre a mata. Ambicioso, Enaldo queria sair do seio da família e agarrar a primeira oportunidade que encontrasse para sair da pobreza, e não seria criterioso quanto a elas. Não pensava em ajudar a família, ganhar dinheiro para tirá-los da miséria, tentaria apenas preencher o buraco em seu peito.

A mãe e o pai eram bastante religiosos. Todos domingos, desciam pela correnteza do rio numa canoa feita de madeira, impulsionados por um motor pequeno que mal tinha força para levar os dois. Ainda assim, chegavam na igrejinha edificada no alto de um morro, dedicados e ávidos por ouvir aquilo que sempre lhes acalmava o coração. Enaldo não gostava, ia por obrigação, mas foi ali que ele teve a chance que queria.

Num dos domingos, o reverendo anunciou que passaria um tempo fora, visitaria o local onde estudou e se formou. Afirmou que era um bom lugar para jovens que queriam aprender sobre o que ele ensinava nas reuniões, era também um exercício para maturidade e um reforço para os bons modos. A mãe de Enaldo gostou do que ouviu, e quis mandá-lo para lá o quanto antes, enquanto ainda era novo. Enaldo gostou da ideia, não pelo desejo de aprender, mas sim pelo de sair da casinha na beira do rio. 

O reverendo não pensou duas vezes, afirmou que levaria o jovem e cuidaria de todas as despesas da viagem. Via Enaldo com bons olhos, um menino que não dava trabalho aos pais e os ajudava sem medidas. O único problema, e esse ele não via, era que Enaldo mentia muito bem, e nunca deixava escapar suas verdadeiras intenções.

– Cuide-se, meu filho. – Disse sua mãe. – Seja um servo fiel.

Ela o abraçou, soluçando com lágrimas nos olhos. O pai, homem severo e duro, não demonstrava a dor que sentia pela partida do filho, mas o abraçou e pediu apenas uma coisa a ele.

– Não demore para nos visitar.

Enaldo disse que voltaria, usando de palavras bonitas para impressionar a mãe, o pai e o reverendo, ele afirmou.

– Voltarei no tempo de Deus.

A mãe se encheu de orgulho e o pai também. O reverendo, homem já idoso e extremamente gentil, teve ainda mais certeza de que levava um homem de índole admirável para a escola onde estudou. 

Enaldo, impiedoso.

O reverendo, sua esposa e Enaldo partiram cedo, antes mesmo do sol brilhar. Seria uma longa viagem até a cidade, pelo menos seis horas rio abaixo. Enaldo não tinha muita coisa, por isso levou apenas uma mala de mão, e foi o suficiente para guardar todos os seus itens.

Chegaram na cidade já pela noite e, à primeira vista, Enaldo não se admirou muito. Nunca pisara em cidade alguma, mesmo assim isso não foi suficiente para lhe encantar. Tomaram caminho a pé até um pequeno hotel, enquanto andavam, Enaldo teve certeza de que a cidade não passava de um pobre município, mesmo quando ninguém lhe disse que era uma grande cidade. Casas de madeira, algumas de alvenaria, mercadinhos, uma ou duas igrejas e o hotel onde ficariam. 

– O senhor se formou aqui? Nesta cidade? – Perguntou Enaldo de frente ao hotel.

– Não, não. Aqui foi onde nasci e me criei. Ainda estamos longe de nosso destino final, meu jovem. – Respondeu o reverendo.

Com isso, Enaldo ficou aliviado. Queria seus olhos brilhando diante de algo totalmente novo e grandioso.

Dois dias se passaram e Enaldo não teve gasto algum. Nem mesmo a própria comida ele pagou, e mesmo comendo de graça não gostou da comida. 

Pegaram o avião cedo em plena madrugada. Era um teco teco amarelo, velho e desbotado, mas era suficiente para vencer as correntes de ar que enfrentariam no caminho. A viagem duraria algumas horas apenas e não demoraria muito para pousar. No caminho, Enaldo mentia como um bom filho do capeta, mas o reverendo e sua esposa, não sabendo da maldade no coração dele, acreditavam em cada palavra e se admiravam cada vez mais com o promissor rapaz.

Finalmente, chegaram à cidade. Na pista de pouso, um Volkswagem BY os esperava. Um homem saiu do carro e cumprimentou a todos, disse que era um prazer rever o reverendo e a esposa, e que conhecer o jovem Enaldo era muito bom. Todos entraram no carro e partiram rumo à escola que o reverendo estudara.

No caminho, olhando a cidade pela janela, Enaldo viu que não era uma grande metrópole. Mesmo que ele não soubesse o significado dessa palavra na época. Enaldo não tinha nada e ainda assim queria mais. Seus olhos eram buracos negros que não se satisfaziam com nada.

Ao passar pelo portão da escola, Enaldo assustou-se e quase teve um infarto. Pois viu que sua nova casa, o internato, era tão simples e rude quanto a cidade que vira. Ainda mais, era tão simples quanto sua própria casa à beira do rio. Se arrependimento matasse, Enaldo teria caído duro naquele momento.

– Eis sua nova casa! – Disse o reverendo entusiasmado.

Enaldo sorriu com o canto da boca. E soltou um “Glória a Deus” um tanto quanto incrédulo. Três anos e meio apenas, dissera o reverendo no avião, passa muito rápido você vai ver. Enaldo esperava que passasse rápido, estava decepcionado com tudo o que viu desde sua saída da casa dos pais. E também tinha medo de não se acostumar com aquela nova vida, mas agora, empurraria com a barriga, pois não tinha volta. Mesmo querendo, não tinha volta.

Regras, muitas regras. Não posso fazer nada, estou preso, pensava Enaldo todos os dias. E realmente eram muitas regras, mas era de se esperar em um lugar como aquele. O fato é que Enaldo chegou ali iludido, pensando que teria uma vida de mordomia, mas mais parecia que ele era mordomo, servindo a todos como se não houvesse amanhã. Não gostava disso, ele era pobre, mas tinha sangue de rico, pena que isso não significava nada.

No fim, Enaldo suportou tudo aquilo. Quebrou algumas regras no decorrer dos anos que quase ocasionaram em sua expulsão, mas no fim foi perdoado e permaneceu até ganhar seu diploma. Entretanto sua reputação estava manchada, e no fim do curso ninguém o chamou para trabalhar.

Desesperado, pediu ajuda ao reverendo e clamou para lhe indicar a algum trabalho em sua região natal. O reverendo, conhecedor das burradas que Enaldo cometeu, o indicou para voltar a sua terra, pois imaginou que se o rapaz causasse algum estrago, esse seria aplacado por seus pais. Assim, Enaldo voltou para casa, formado, mas sem trabalho.

Seus pais, orgulhosos por ter ele pelo menos finalizado o curso, o receberam de volta com os braços abertos, felizes por rever seu único filho.

– Deus o mandou voltar? – Perguntou sua mãe.

– Eu não sei, mãe. – Disse Enaldo desgostoso.

Agora em casa e homem feito, Enaldo teria que trabalhar para ajudar nas despesas de casa. E também para ter aquele pingo de mordomia que sempre sonhou. Foi então que um homem gentil e bem sucedido da igreja de seus pais, de apelido Freitas, lhe ofereceu um emprego. Coisa simples, mas ganharia o suficiente para ajudar a família. Teria apenas que dirigir um carro, transportando produtos até uma cidade. Enaldo aceitou.

Trabalhava bem, ganhando rapidamente a confiança do homem, que até cedeu a ele o carro para usar fora do horário do expediente. Enaldo trabalhou por dois anos inteiros com o velho Freitas, que o tratava como um filho, pois os filhos que tinha foram embora viver suas vidas longe do velho. Então, em certo momento da vida de Enaldo, achou ele ter o mesmo direito que os filhos de Freitas, ou até mais, pois vivia com o velho e o ajudava em tudo que era pedido.

– Pai – Era como Enaldo chamava Freitas, não com sinceridade, mas sim coisa de puxa saco. – Preciso de algo, e só o senhor pode me dar.

Estavam sentados lado a lado na varanda da casa do velho, em cadeiras de balanço, olhando para a paisagem da chácara a frente. Um cachorro ronronava entre os dois, era um cão pequeno, preto e desnutrido, mas Freitas o amava. O clima era quente, mas um vento agradável batia em seus rostos naquela manhã.

– Diga, meu filho. – Seu Freitas sim, era sincero. – Se eu puder lhe dar, darei.

Enaldo tinha certeza que seu pedido seria atendido.

– Cresceu em mim a vontade de viajar e conhecer esse mundo, sair do meio dessa mata e viver a vida. – O olhar de Enaldo era sonhador, quase bonito de se ver, isso porque não era um homem muito atraente. – Mas preciso de ajuda para realizar essa vontade.

– De quanto precisa, meu filho? – Perguntou Freitas balançando-se na cadeira.

– Apenas cinco mil. – Enaldo falou como se fosse uma quantia insignificante, mas na época aquilo era suficiente para comprar alguns carros e vários lotes de terra. Era maluquice um pedido daqueles, tanto que o velho Freitas quase caiu da cadeira.

– Meu filho, eu não tenho esse dinheiro... – Disse o velho um tanto quanto decepcionado por não poder ajudar o rapaz. – Não juntou dinheiro dos seus dias de trabalho?

– Sim, juntei, mas preciso de mais. – Enaldo soou arrogante, com raiva por não ser atendido.

Freitas olhou para Enaldo, nunca o viu daquele jeito. Estava fervendo de ira por dentro e isso se espelhava em seu exterior. Era feio, quase demoníaco.

– Sinto muito, meu filho. Não posso ajudar com um valor tão alto. – Disse o velho com certo medo na voz.

Enaldo olhava fixamente para o chão como se estivesse hipnotizado. Cerrava os punhos, uma tentativa de controlar a tremedeira nas mãos. Seu sangue esquentou, fervia seu corpo inteiro, alimentando um desejo insaciável e incontrolável.

– Se qualquer um deles pedisse... – Disse Enaldo. – Qualquer um... O senhor daria.

– Quem? Meus filhos? 

– Os filhos da mãe ingratos que o visitam uma vez no ano...

Enaldo estava extremamente inquieto, além das mãos, seu pé direito chocava-se contra o chão repetidamente. Raiva, era o que Enaldo sentia. Toda sua vida passava diante de seus olhos, ele percebia o quão fracassado fora em tudo que tentou. Levantou-se da cadeira e foi até a beirada da varanda. Respirou fundo tentando acalmar os nervos.

– Enaldo, meu filho, se qualquer um deles me fizesse um pedido desses eu o negaria. Não se trata de sangue, eu simplesmente não possuo tal quantia. – Freitas levantou, andou lentamente na direção de Enaldo e apoiou a mão sobre seu ombro.

O toque que Enaldo sentiu lhe soou ofensivo, ninguém, nem mesmo ele sabe o motivo de se sentir-se assim. Por isso, aquela fúria aprisionada dentro de Enaldo foi expelida de uma vez só. O sangue subiu à cabeça e seus olhos ardiam de raiva, e Enaldo virou-se para encarar o velho. Então o socou, um soco apenas com o ódio de uma vida inteira. Freitas cambaleou para trás, chocou-se contra a cadeira e caiu no chão com o nariz quebrado expelindo sangue pelo chão de madeira. O velho Freitas pareceu desaprender a fala. Tentava pedir socorro, tentava gritar e implorar misericórdia, mas não conseguia. Tudo que saia de sua boca eram gemidos de dor.

O ódio tomou conta de Enaldo e o cegou. A partir dali não havia mais certo ou errado para ele, não havia remorso nem piedade, tudo se resumia a satisfação de seu intento maligno. Enaldo se aproximou de Freitas e puxou seu braço, logo após desferiu um soco na maçã do rosto do velho. Uma ferida se abriu no local atingido e sua cabeça bateu no chão com o impacto.

O que aconteceu em seguida foi um exemplo do instinto maligno humano agindo de forma desenfreada. Enaldo espancou o velho, suas mãos ficaram encharcadas de sangue, em seus punhos feridas se abriram e os respingos de sangue do rosto do velho caíram na boca de Enaldo, que nem se incomodava. De punhos dormentes, nem sentia quando quebrava algum osso do rosto de Freitas, não sentia também quando socava o chão ao invés do pobre coitado.

Enaldo respirava com dificuldade, batia tão rápido quanto respirava, e foi só por isso que parou de socar Freitas. Cambaleou para trás e se apoiou na cadeira para recuperar o fôlego. Devagar, os pensamentos de Enaldo se alinharam à realidade, e ele percebeu a atrocidade cometida. Aproximou-se do corpo, do que restara de Freitas, olhou para o rosto dele e quase vomitou.

Ele não sabia que tinha tanta força, nem que era capaz de tamanha violência. Do nariz ao maxilar, Freitas não existia mais. Dentes estavam espalhados pelo chão, seu queixo foi violentamente quebrado e agora apontava para a esquerda. A língua do velho foi arrancada e jogada para longe, mas o cachorro a pegou e correu para fora da casa para guardá-la pra mais tarde. Enaldo não lembrava dessa parte, na verdade, ele lembrava de flashs apenas, mas sabia que fez o que fez. Enaldo surtou, ficou incontrolável, ninguém o pararia a não ser ele mesmo. Enaldo não quis parar, faria tudo de novo e ainda pior.

Levantou e caminhou até a casa. Entrou no banheiro, se olhou no espelho e quase teve orgulho do que viu. O pior da humanidade contida em apenas uma pessoa, ele achou lindo, porém sujo.

Tomou um banho, como se nada tivesse acontecido. Usou os perfumes do falecido Freitas, assim como suas roupas e sapatos. Era o dono da casa, do campo, de todas as posses do velho. Foi até a cozinha e preparou uma garrafa de café, fraco e doce, do jeito que Freitas gostava. Em sua cabeça Enaldo se transformara no próprio Freitas, sua personalidade se perdia em sua mente demoníaca, e ele se modificava para ser uma imitação fajuta do homem morto.

Enaldo pegou a garrafa de café e voltou para a varanda. Sentou-se na cadeira de Freitas, encheu um copo com café e apoiou a garrafa no chão. Enquanto soprava o café, olhava para o horror que era o corpo de Freitas, mas aquilo não o incomodava. Não estava com medo de uma visita inesperada chegar e gritar por ajuda quando visse o corpo. O vizinho mais próximo morava longe demais para ter medo. Enaldo tinha outra coisa perturbando sua mente agora, algo mais importante do que esconder um corpo.

Um abutre pousou na beirada da varanda.

Pensava no motivo. Por que diabos cometeu tal atrocidade agora? Por que não antes? Já que não era a primeira vez que lhe negavam algo. Não foi a primeira vez que aquele instinto homicida percorreu suas veias. A sede pela morte e o desejo de ter mais do que se precisa o acompanhavam desde que percebeu não ter capacidade suficiente para satisfazer seu ego. A única diferença de antes para agora, era que no passado se controlou, teve domínio sobre seus impulsos malignos, sabendo que apesar de satisfazer seu desejo pelo assassinato, a “boa” sensação duraria pouco em comparação com o remorso.

Uma hora aconteceria, pensou ele, ninguém controla algo assim por muito tempo. Refletindo, Enaldo percebeu que o motivo era mais que apenas a raiva, se tratava de algo mais profundo, algo presente em seu DNA, e não apenas no dele, mas no de todos os homens. O desejo de fazer o mal sem justificativas, só por fazer, matar por matar, odiar por odiar, simples assim. A sensação dura pouco, mas e daí? Basta fazer de novo, matar de novo, matar até preencher esse buraco infinito no peito. Infelizmente, Enaldo sabia que nada preencheria aquele buraco. 

– É, acho que fiz porque quis... – Tomou um gole de café, enquanto pensava no que faria com sua próxima vítima.

Conto escrito por
Jão Marinho

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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