3x04 - Calixto e Alexandra alcançam o outro mundo através do umbigo
de Anna Toledo
Calixto não esperava muita coisa e ainda assim se decepcionou. As caixas lotadas de bugigangas ao lado de sua cama eram o reflexo de seu fracasso como vendedor ambulante, mais uma profissão para a lista de coisas que descobriu não saber fazer.
Quando criança, sonhou em ser boxeador profissional, mas na primeira briga na escola, percebeu que nasceu para ser nocauteado. Passou pela fase de entrar para uma banda e começou a juntar dinheiro até ver o não tão baixo preço de um baixo. Poderia ser taxista como o pai ou faxineiro tal qual a mãe, mas a ideia estúpida de procurar uma vida nova na capital o levou a alugar aquele cubículo que chamava de casa e trabalhar com um primo seu como auxiliar de vendas no semáforo.
Talvez até conseguisse sobreviver com o dinheiro de vendedor nas ruas, mas não com o de auxiliar.
A luz da lua entrava pela fresta da janela deixando o local minimamente iluminado. O último fio de esperança escorreu pelo ralo depois do vexame daquela tarde em que cogitou comer um cachorro-quente que encontrou pela metade num banquinho da praça. Não existe um sonho de vida nova que vale ser pago com sua dignidade: voltaria para a casa dos pais na manhã seguinte.
Ouviu passos próximos à porta, então batidas.
Não era exatamente alguém que recebia visitas e isso o assustou.
— Calixto…
Uma voz doce exalava uma sensação familiar um tanto quanto amarga.
— Sou eu, Alexandra… Talvez não se lembre de mim, não éramos tão próximos quando saí da escola, mas eu — Bruxa? — Isso, eu era a bruxa.
Todos tinham apelidos quando mais novos, Calixto não gostava de se lembrar dos seus, mas não poderia esquecer a voz da garota que usava batom roxo e uma calça xadrez mesmo no verão quente de dezembro. Era excepcionalmente bela, acima de tudo, nunca foi capaz de entender como alguém assim falaria com ele naquela época… E nada excluiria de sua memória os efeitos colaterais das conversas.
Abriu a porta enxergando a versão adulta da garota. Usava um sobretudo de couro e o rosto evidenciava choro amassado pelas manchas roxas abaixo dos olhos. Um sorriso exagerado tentava disfarçar seu estado decrépito assim como a luz apagada camuflava a bagunça do lugar, mas as lágrimas, tal qual a luz da lua, serviam como um extrato da realidade.
— Transe comigo — a exigência inesperada veio acompanhada de passos adentrando o quarto, exibindo a silhueta do quadril na pouca luz porta afora — Agora. Sem perguntas, sem explicações ou qualquer esperança.
A expressão insegura carregava a herança do passado…
Dois adolescentes impulsivos descobrindo uma inusitada conexão entre as estantes da biblioteca municipal. Cada um orbitava seu próprio micro-sistema solar, exceto quando se reuniam para trocar ideias sobre as capas velhas com traços dourados na lombada.
Calixto nunca foi grande coisa, inclusive, na escola, mas seu peito inflava em oxigênio quando se propunha a discutir mistérios a se desvendar entre as páginas desgastadas dos livros. A bruxa, sua companheira de leitura, também se mostrava diferente longe daquelas quatro paredes. A expressão relaxada ganhava moldes selvagens na escola, como se estivesse sempre pronta para contra atacar. Sabia dos rumores obscenos a respeito da garota na escola, vez ou outra mensionavam sexo, dinheiro ou drogas. Ele era o pobretão que só mantinha a vaga pela mãe ser funcionária ali, mas eram as vestes da moça que serviam de pretexto para questionar a ausência do pai e de onde vinha o dinheiro de sua casa.
O conceito de amigo parecia exceder o acordo silencioso dos encontros na biblioteca, ambos já tinham problemas o suficiente sem fornecer material para algum xingamento composto. “Colegas de experiências” soava razoavelmente bem. Assim continuariam até Alexandra chegar em uma das reuniões secretas com um livro robusto de cor exótica e caligrafia esdrúxula pontilhada de rasuras com a letra x.
— Bruxa…
— Isso não é o máximo?! — Um sorriso extrovertido como aquele só dava o ar da graça em raras exceções, como ao fim da leitura de qualquer livro do Júlio Verne. — O poder de extrapolar a realidade ao alcance das mãos! A gente merece se dar ao luxo de imaginar isso, não?… De experimentar ao menos uma vez.
Calixto sempre soube que não valia a pena procurar saídas fáceis para nenhum problema, por mais que deseje desaparecer em alguns momentos. Só abria exceções por aquela que excederia qualquer pensamento sensato: Alexandra. Depois que a viu em êxtase, dedilhando as páginas do livro, seus próximos passos já estavam inexoravelmente condenados a segui-la para o que quer que desejasse fazer.
Assim, seguiram pela exótica leitura do livro de invocações. Dias se passaram até encontrarem alguma que atendesse suas expectativas sem causar algum dano físico ao corpo, isto é, sem oferecer sangue. O pagamento era, por outro lado, igualmente invasivo: sexo.
Calixto era virgem e bem sabia que nutria algum tipo de sentimento pela moça com quem compartilhava suas leituras. Aquilo provavelmente intoxicaria qualquer resquício de sanidade e autoestima que lhe restasse. Ainda assim, concordou com a experiência e o ritual foi feito.
Sem êxito.
O corpo de Alexandra foi cuidadosamente adornado pelos símbolos místicos da invocação, consumaram o ato num motel de moralidade questionável e, ainda assim, nada aconteceu. Restava apenas a Calixto a sensação desconfortável de não poder exaltar como estava satisfeito enquanto via Alexandra se consumindo em frustração.
O pior de tudo ainda viria a ser externalizado.
— Não a chame de puta de luxo!
Não foi preciso mais do que uma inconsequente defesa feita por Calixto para a fama se alastrar por aí: o fracassado comeu a bruxa. Bastou alguns pares de horas para a fofoca chegar à garota explicitamente distorcida, mas o estrago já havia acontecido. O problema de mentiras baseadas em verdades é que poucas conexões de fatos são o suficiente para solidificar a falácia.
Ele saiu com fama de herói, ela foi exposta e ainda mais excluída. Mudou de sala, depois de escola até desaparecer e então, como uma fênix, ressurgiu batendo em sua porta dizendo a mesma frase usada para convencê-lo anos atrás:
— Só transe comigo. Sem perguntas, sem explicações ou qualquer esperança.
A mulher permanecia de costas quando a porta se fechou, deixando poucos feixes de luz iluminando a penumbra ambiente. Seu casaco deslizou para o chão num fluxo quase musical. Primeiro os ombros, troncos e das coxas em diante, o tecido fluiu num piscar de olhos. Apenas sua silhueta era explicitamente visível, mais do que o suficiente para perceber que estava nua.
— Alexandra, temos que conversar…
— Não temos, Calixto. Fixe no que realmente importa agora.
Sentia o leve cheiro de enxofre e, por um segundo, cogitou estar delirando com algo podre esquecido em algum canto do caixote que chamava de lar. Procurou alguma pegadinha mórbida naquele contexto, mas a bruxa parecia veementemente convicta em seu pedido. Restou ao adulto escolher entre se refugiar no que lhe restava de razão ou se entregar à excitação que lhe consumia por completo.
Concluiu os pensamentos indo em direção a sua antiga companheira de experiências. O corpo em chamas combinava paradoxalmente com seu frio na barriga. Não sabendo o que estaria incluso neste exótico acordo, hesitou em roubar-lhe um beijo, contentando-se com encaixar seu queixo nos ombros e sentir o aroma exalado pelo corpo insaciado.
Ainda carregava consigo o receio virginal, mas o tempo forneceu exemplos o suficiente para saber como relaxar e satisfazer uma mulher naquelas circunstâncias. Percorria os extremos como se tivesse em mãos um delicado contrabaixo. Dedilhava o corpo que se arqueava por reflexo em sua direção e respondia seus afagos com gemidos esporádicos.
— Calixto…
O clamor da sucubus era atendido sem pressa, com as coxas reagindo aos arranhões com suspiros e espasmos. Logo cederia às exigências de seu falo, só desejava, ao menos um pouco mais, apreciar o sonho acordado.
Zíper liberto e Látex posicionado. Sem mais cerimônias, conduziu-a para cama, onde contemplou a altura exata para consumá-la.
A penetração explodia em memórias enquanto ignorava os sinais preocupantes durante a foda. O aroma de enxofre se misturava ainda mais ao cheiro de sexo e o corpo, mesmo coberto pela escuridão, revelava algumas texturas peculiares, como as marcas na pele da cerimônia de anos atrás. Felizmente, já não existia algo que temia perder caso corresse perigo de vida. Poderia aproveitar a experiência completamente sem medo.
Sentia o gozo explodindo em ansiedade e, desejando ampliar aquele momento, concentrou seus esforços em manter-se ereto. Só então sentiu o quadril continuar os movimentos, exterminando sua interrupção e ditando o ritmo. Aparentemente, não haveria pausas ou flexibilidade para adiar o inevitável. Decidiu por se entregar aos extremos da sensação de uma vez, puxando-a para si e permitindo ao seu corpo concluir as entradas e saídas frenéticas, liberando seus instintos mais tribais.
Calixto ejaculou exausto e buscou apoio na haste da cama, precisava se deitar para recuperar as forças e quem sabe enfim conseguir conversar adequadamente com a sua primeira paixão.
Sua mente, porém, excedeu os limites do espaço-tempo, inundando-se em êxtase e terminando, por fim, encaixado no cubículo, junto às caixas, aos fracassos e à garota que um dia o fez se sentir especial.
Acordou com enxaqueca.
A noite anterior permanecia na memória com um ar esotérico, quase extraterrestre. A ideia de voltar a casa dos pais estranhamente parecia menos atraente, como se enfim encontrasse o orgulho e ambição necessários para sair fora da caixa de uma vez e arriscar-se no mundo lá fora! Talvez, quem sabe um dia, reencontre a bruxa de verdade pelas ruas da capital.
Sentiu uma dor estranha, exatamente ao redor do umbigo, como se fosse expurgado a ferro e fogo. Camisa dispensada, exibiu-se no espelho. Como se a mente lhe pregasse peças, enxergou marcas delicadas de vários x’s numa caligrafia familiar. Desvendando onde encontraria a próxima peça do quebra-cabeça, virou-se para a caixa que insistia em usar de cômoda e encontrou o mesmo livro exótico de anos atrás. Havia, além disso, um pequeno bilhetinho frouxamente servindo como marca-página:
Quando precisar relaxar
da experiência extasiante de glória
que está por vir, vai saber onde
me encontrar.
A mensagem não possuía assinatura, exceto pelo beijo em batom roxo no cantinho do cartão.
Calixto sorriu enquanto se olhava no espelho e a sensação de não estar sozinho lhe soava convidativo, excitante, até. Seus dias de fracasso pareciam estar prestes a se extinguir, enfim teria acesso a toda soberba que no fundo sempre soube ser merecedor… Ao menos era a mensagem expressa por um sussurro malicioso vindo do outro mundo.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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