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Antologia Romance à Vista: 1x02 - "M" e "H" em Affair no 609

Conto de Tchello d'Barros
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Sinopse: Um encontro fortuito, as faíscas de um olhar e o desejo instintivo são os estopins para uma tórrida relação tendo como cenário o Quarto 609.


"M" e "H" em Affair no 609
de Tchello d'Barros


Esta é uma cidade grande, muito grande. M e H conheceram-se numa dessas situações inesperadas, que talvez por comodidade convencionamos chamar de acaso. M, há tempos que estava acostumada com a rotina do metrô, meia hora para ir e outra longa meia hora para voltar. Para suportar melhor esse limbo de tempo inútil, lia revistas de fotonovelas, que adquiria numa loja de livros usados, próxima à estação do metrô. A monotonia desse trajeto só era quebrada lá de vez em quando, com alguma paquera de olhares que se cruzam silenciosos dentro do vagão, as vezes pelo fuzuê com algum trombadinha ou algum artista de rua fazendo sua performance e passando o chapéu. E houve uma vez em que causou um pequeno escarcéu quando um gaiato ousou que passar a mão. 

Aquela manhã de sábado com garoa não prometia muito. Vagão cheio, M incomodou-se um pouco por ter que ficar em pé, e cavalheirismo como se sabe, não anda muito na moda. Incomodou-se um pouco mais quando, no frenesi das pessoas que apressadamente entravam e saíam do vagão, um sujeito passou por trás dela, encostando-se, inevitavelmente. Este momento deve ter durado apenas um segundo, mas foi o suficiente para ela sentir um hálito de hortelã, e H percebeu uma fragrância de alfazema nos cabelos dela. Quando ele se afastou, ela olhou de soslaio, para identificar o atrevido, ao tempo que H, também discretamente, observava sua silhueta bem desenhada pelo reflexo da janela. Ato seguinte, um assento que ficou vago permitiu que a vida voltasse ao normal no escapismo de mais algumas páginas da fotonovela. O fim da viagem coincidiu com o fim da garoa. 

Desceu na estação de sempre e depois de mais uma manhã rotineira, ao meio-dia em ponto estava livre, seu fim-de-semana havia finalmente começado. Logo ela estava zanzando pelas calçadas e vitrines do centro da cidade. Apenas caminhava livre, observando os artesanatos e antiguidades espalhados pelas banquinhas de uma praça Naquele vai e vem de tanta gente, julgou ter visto o sujeito do metrô, próximo à uns quadros de paisagens que alguns pintores apresentavam junto a uma árvore na praça. Tímida do tipo ousada, aproximou-se para ter certeza, mas não viu mais o vulto, certamente era outra pessoa. Tratou de almoçar, o que se resumiu a uma leve salada, pois gostava de se manter em forma. O que não lhe impediu de compensar na sobremesa degustando duas bolas de sorvete de morango. 

Lembrou-se que precisava renovar o estoque de suas revistas antigas de fotonovelas, e lá foi ela em direção ao sebo. Ao chegar, ia entrar na sala das tais revistas, quando viu que ninguém menos que H estava na loja, escolhendo alguns exemplares de bolsi-livros de faroeste, sua única distração literária. M imaginou inicialmente que H estivesse lhe seguindo, mas logo concluiu que não, pois quando ela entrou ele já se encontrava no local. Depois pensou em coincidência, em destino, essas coisas, e logo já estava fantasiando que fosse algum investigador contratado, um detetive particular ou algo assim. Saiu de tais devaneios quando percebeu que ele já não estava mais naquela sala, então tratou de escolher alguns exemplares de revistas para sua coleção. O segundo susto foi na hora de pagar, pois ambos chegaram juntos ao balcão, o que fez com que a balconista perguntasse o típico “quem está na vez?”. O pequeno embaraço para ambos, foi ocasião para uma breve troca de olhares e o esboço de um sorriso. O fato de H ter permitido que M pagasse primeiro, foi a senha para continuarem conversando e o manuseio do pagamento permitiu que ambos vissem que nenhum dos dois usava aliança. 

As recentes aquisições permitiram que a conversa se prolongasse num café próximo dali. Esgotado o assunto das preferências literárias, trataram de puxar outros temas corriqueiros, amenidades bem triviais, apenas como desculpas para poderem continuar se olhando, um adentrando o semblante do outro, tentando desvendar camadas de personalidades e nuances dessa atração inusitada. Esse mesmo ardente encontro de olhares, sequer permitiu que falassem sobre relacionamentos, fossem anteriores ou atuais, profissões ou endereços, esses itens que definem tanta gente. Eram apenas dois intensos olhares cruzados, que em seguida receberam a cumplicidade de duas mãos que se tocavam de leve, no início, e assim não demorou para que um certo par de lábios ávidos também se encontrassem. A vida naquele momento era apenas um sabor de hortelã e um suave aroma de alfazema, naquela esquina da megalópole. 

Não se conheciam, não queriam se conhecer, mas desejavam se entregar. Talvez essa abstração que chamamos de natureza humana, explique o fato de que dentro de uma hora, já no número 609 de um hotel da rua próxima, o par estivesse resfolegando num faiscante entrelaçamento com fusão de corpo e alma. O caos e o céu ao mesmo tempo. Depois, quando os corações foram desacelerando, o suor foi secando e os instintos permitiram que alguma lucidez se instalasse no recinto, aos poucos voltaram a conversar. Notaram na parede ao lado da cama o desenho de dois corações entrelaçados, talvez feitos com a ponta de uma chave. Falaram demoradamente sobre o assunto, e descobriram que conversar muito era outro prazer que os unia, outra afinidade entre ambos. Imaginaram a vida do casal de amantes que fez o desenho. Concluíram que esse enigma, que as pessoas chamam de amor, pode acontecer assim, de repente, numa nublada tarde de sábado, já sem garoa, no labirinto da imensa cidade. Ao saírem do hotel, ninguém sabia nome, idade, telefone, ou o que quer que fosse sobre o outro, esses itens que identificam muita gente. Mas isto não impediu de combinarem para uma semana depois, encontrarem-se no saguão do mesmo hotel, no mesmo horário. 

E passados sete dias, na tarde combinada, desta vez ensolarada, lá estavam M e H novamente, tentando ser discretos na recepção do hotel, mas mal disfarçando a gana de avançar um sobre o outro, o que aconteceu de fato, logo que fecharam a porta do mesmo quarto 609. Pura selvageria, num êxtase da volúpia acumulada na semana incendiada pela lascívia do momento. Naquele quarto, o engalfinhamento de ambos era pura concupiscência e atração. Luxúria manifestada em lúbricas intimidades. Tudo era umidade e fricção. Apagado o primeiro de muitos incêndios, M percebeu então que H havia trazido espumante e morangos com chantili. H, pode enfim também notar com mais atenção os detalhes da lingerie provocante que M escolheu para o novo encontro. Algumas labaredas mais tarde, fruíram daquele prazer de conversar, de poder falar das sensações, dos sentimentos e das percepções desses momentos incandescentes. E falavam da saudade, e dos desejos, e dos medos, e das vontades, e das fantasias, e de todo um outro labirinto, o das afetividades que se entrelaçavam nas relações e no relacionamento. Inventaram uma biografia para cada um dos dois coraçõezinhos da parede. Antes de se despedir, H notou entre os pertences de M duas revistas de fotonovelas, sinal de que ela devia ter passado novamente pela feirinha oriental. Já M, percebeu que H havia adquirido mais alguns livrinhos com histórias de bang-bang. Mas ninguém quis comentar nada, nada de observações, nada de perguntas. Manter algum mistério era muito mais excitante. 

E assim se despediram, e assim se reencontraram, e assim foram repetindo seus encontros semanais, pontuados pela entrega total em suas experiências, preservadas por segredos mútuos, quase como se suas vidas particulares nem existissem, como se a vida real acontecesse apenas naquele idílico quarto 609. E mais não precisava. E, sempre acompanhados pelo par de corações gravados na parede, como é próprio dessas raras uniões onde o casal se completa, se complementa e se funde, chegaram a um nível de cumplicidade em que cada um podia sentir plenamente o estado emocional do outro, apenas pelo olhar, pela voz, pelo toque. Não raro, depois do descanso, abriam os olhos ao mesmo tempo, sonhavam um com o outro, e muitas vezes um ia dizer uma coisa e o outro completava. Ao final de um ano a sintonia era tanta que por vezes era como se ambos fossem um só. 

Foi mais ou menos por essa época que M começou a pensar na possibilidade de investigá-lo, de tentar saber mais sobre esse homem misterioso, que lhe fazia tão feliz. Talvez desvendar o cotidiano desse íntimo desconhecido, saber o que ele fazia durante a semana, onde morava, se era casado, no que trabalhava, essas coisas. Mas refletiu bem e escolheu deixar de lado a curiosidade, preferiu não quebrar a magia que os unia, não queria desconfianças, não queria que ele fizesse o mesmo, que descobrisse tudo sobre ela. E assim continuaram, já que toda a felicidade do mundo cabia naquele singelo quarto. Ali era o endereço do amor, da paixão, do romance e do desejo. O resto, era apenas o mundo. E pequenas mudanças naquele quarto eram quase um acontecimento: o dia em que trocaram as cortinas, uma pequena gravura decorativa que apareceu em uma das paredes. Os desenhos florais na estampa de um lençol. 

Num certo sábado de muita chuva, ao adentrarem o 609, perceberam que as paredes receberam uma nova pintura, a tonalidade salmão suave passou para um rosa pálido. Isso foi uma grande novidade. M notou que a reforma fez desaparecer os coraçõezinhos da parede ao lado da cama. Ela não acreditava em sinais. Mas talvez o novo tom do ambiente fez parecer que as fronhas dos travesseiros haviam se gastado um pouco, perdendo a cor, a textura. As conversas agora haviam diminuído, entremeadas de breves silêncios, que aos poucos foram se prolongando e muitas vezes a falta de assunto era compensada com a leitura de fotonovelas e os livrinhos de bolso. Num dos encontros sequer fizeram amor, apenas trocaram carícias. Depois, uma viagem impediu o próximo encontro, e uma desculpa aqui e outra ali fizeram rarear os sábados dos amantes. Até que numa dessas tardes de muito calor, as paredes do 609 sequer viram o casal se despir. Apenas conversaram, olharam-se demoradamente, choraram em silêncio, abraçaram-se e então convenceram-se de que o rio da vida devia seguir seu fluxo. Sem qualquer culpa, ou rancor, deram-se ainda um longo e afetuoso último beijo. 

Na saída para a rua, nenhuma palavra, apenas dois semblantes que se encontravam pela última vez. Cada um seguiu para um lado. H dobrou a próxima esquina, e, mastigando nervosamente uma pastilha de hortelã, refletia sobre isso que as pessoas chamam de amor. Se isso existe mesmo, parece que dura o tanto que tem que durar, concluiu. M, caminhou languidamente até uma loja para comprar um xampu de alfazema. Em seguida tomou o metrô mais próximo e, já no vagão, olhava demoradamente as fotografias da revista, mas nada via, apenas pensava em como era possível conhecer alguém com tal profundidade e sintonia sem sequer saber seu nome. 

A atendente da loja de livros usados notou que alguns clientes que apareciam aos sábados, pararam de frequentar a loja. Esta é uma cidade grande, muito grande. 


Conto escrito por
Tchello d'Barros

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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