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Antologia Lua Negra: 2x02 - Alma de Gato

Conto de Paulo Romão
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Sinopse: Inspirado em uma lenda do folclore brasileiro, o texto aborda a relação de uma criança com o espírito conhecido como Alma de Gato, que parece persegui-lo em cada momento do dia, sem dar-lhe um momento de tranquilidade...


Alma de Gato
de Paulo Romão

 

            O passarinho saiu batendo asas, num canto assustado, assim que o menino entrou correndo pelo quintal. Sua cor ferrugem e cauda longa, digna de nota, não chamou a atenção de ninguém.

            Diante dele, um novo mundo se abria: o chão de terra batida era seu Canaã. Um enorme sapotizeiro no centro daquele paraíso dava a sombra para que, pelo chão, se arrastasse um mar de grama e mato, com pequenas flores esparsas naquela confusão verde. No canto, à esquerda, alguns blocos de concretos já verdes de musgo e meias paredes denotavam um cômodo que deixara de ser levantado. Do outro lado, uma amoreira pesava, carregada de frutos, com seus galhos envergados ao chão. No meio disso tudo, o canto daquela ave saiu desapercebido diante dos olhinhos deslumbrados do garoto que desbravava seu novo reino.

            A família de Willian havia acabado de se mudar para a rua Direita, alugando aquela casa por um preço acessível para seus bolsos desgastados. Era uma casinha popular, como várias da rua, mas bem cuidada e com algumas reformas que davam a ela um ar aconchegante em sua simplicidade. Ricardo, o pai, previra uma casa mais em conta, porém a mãe, Estér, apaixonara-se à primeira vista, em especial pelo canteiro de blocos sob o telhado de brasilite de uma garagem adaptada, cheia de pequenas rosas vermelhas.

            O garoto correra direto do quintal para o quarto mais próximo, com janela logo adiante do limoeiro, para poder contemplar o terreiro de suas futuras aventuras. Mal o carreto descarregara as coisas e já importunava o pai para montar sua cama de estrado logo ali. Enquanto Ricardo soava com os parafusos, Willian observava a janela, notando um par de olhos amarelos, brilhantes, bem em meio aos galhos do sapoti.

            - Pai, um gato!

            E tropeçando nas ferramentas do pai, disparou em corrida ao quintal atrás do bichano. Provavelmente demorara demais, ou fizera muito barulho, pois o máximo que vira foi um vulto negro sacudindo as folhas rumo ao nada. Não perderia a viagem até lá fora, porém: hora de testar se o espaço era bom para chutar bola.

            Já estava pingando de tanto brincar com sua bola de capotão quando a mãe o chamou na cozinha para tomar café e comer um pedaço de pão com mortadela.

            Comeu pela boca e pelo nariz, ansiando pelo segundo tempo. Correu ainda mastigando o último pedaço, procurando sua bola. Para sua surpresa, estava ela ali onde deixara, mas o couro que a recobria estava todo arranhado. Ele não havia notado antes. Será que era de bater no reboco da parede? Olhou o muro e notou, sumindo rumo ao telhado, uma cauda negra e felpuda, em fuga o provável autor do crime.

            Não deu bola: continuou o jogo, chateado apenas de não ter visto como era o gato e preocupando-se de que aqueles arranhões não murchassem seu brinquedo. Divertiu-se tanto enquanto seus pais botavam as coisas em ordem, que, quando viu, já era hora de estrear sua cama no novo quarto. Deixou um vãozinho da janela aberto para o quintal e enrolou-se no lençol branco, sob a cama rangendo. Odiava dormir sem cobrir a cabeça.

            Começara a cochilar, quando um baque surdo no telhado o despertou. Ainda abobeado pelo sono, ele buscou firmar os olhos e ver se distinguia algo na penumbra. Distinguiu um ruído leve, como se alguém passeasse pelo forro e então notou, pelo vão da janela entreaberto, passar uma sombra rápida. Não era desses que se encolhem mãos e pés para dentro da cama: sem medo, levantou-se e foi inspecionar pela janela quem era o invasor em seu novo castelo.

            Abriu devagarinho a janela, pois não queria incomodar os pais cansados. Sabia que não acordariam de bom humor. A noite estava clara, com lua cheia e um céu azul escuro sem nuvens, pontilhado de estrelinhas. Sob o reflexo do luar, distinguiu na mesma árvore aqueles olhinhos brilhantes que vira de manhã e notou que o gato era seu novo inquilino. Ou seria ele inquilino do dono original da casa? Aliviado, encostou novamente a janela e, quando se virou para ir para a cama, uma sombra rápida passou por debaixo da cama. Seria um rato?

            Empunhou o tênis jogado ao chão e abaixou-se para ver o que ela. Lá no fundo, escondidinho, mais dois olhinhos reluzentes o observavam e, encolhido nas sombras, uma forma felina se distinguia. Mais um?! Que vizinhança terrível fora arrumar! Correu acender a luz, animado com um candidato a animal de estimação. Nunca tivera nenhum e talvez essa fosse a deixa para seus pais permitirem.

            Mal tocou no interruptor e já voltara para espiar debaixo da cama. Nada! O danado, não sabia como, fugira! Nem sinal. O garoto aborreceu-se, frustrado, e retornou para a cama, sem nem aperceber-se do estranho fato de que a porta estivera o tempo todo fechada e o vão que deixara na janela era insuficiente para que qualquer gato por ali passasse.

            O cheiro quentinho do café despertou Willian. Contou o acontecido aos pais, que alegaram não ter ouvido nada de mais durante a noite (pudera, a mudança os exauriu para um sono de chumbo). Mas era segunda-feira e a rotina os aguardava: Ricardo e Estér rumo ao trabalho, e Willian para o tédio da escola sem futebol.

            O garoto escovou seus dentes, amassou todo o material na mochila e quando foi fechar sua janela para ir de encontro aos pais, que o levariam para o martírio escolar, notou um gato angorá, felpudo e alaranjado, deitado sob a sombra do sapoti. Seus olhos amarelos o observavam fixamente enquanto o garoto, rindo, o acusava: danado!

            Montou no banco de trás do carro e divertiu-se olhando o novo trajeto para a escola, a partir da nova casa. Mal via a hora de poder fazê-lo sozinho, com a bicicleta que o pai prometera para o Natal (e que provavelmente não daria, por conta da crise).

            Viu algumas crianças sendo arrastadas pelas avós enquanto iam para a escola. As calçadas estavam sempre rachadas, com mato saindo pelas frestas. Ora! Um gatinho corintiano, branco e preto, estava sentado na janela daquela casa, olhando-o com a mesma atenção que o olhava. Via agora um Fiat Uno ultrapassando o pai e um muro todo pichado, com dizeres indecifráveis. Um cachorro preto revirando o saco de lixo, espalhando tudo. Mais um gato, preto agora, estacado no meio da calçada olhando o menino. Árvore, árvore, árvore. Sinal vermelho e um gatinho branco, mais encardido do que branco, aliás, o observava do meio fio. Cidade pra ter gatos!

            Chamou a atenção dos pais para esse fato e eles, mais interessados em manter a própria conversa, disseram nem ter notado nenhum.

            Sinal verde. Um garoto estava saindo com uma sacola de plástico quase arrebentando de uma vendinha: a sacolinha azul estava esticadíssima sob os braços elásticos do garoto, que a carregava desajeitado. Muros pichados e postes com cartazes rasgados. Dali, bem no bueiro, dois olhos amarelos o fitaram. Esse tanto de gato já estava enchendo o caso. Que tanto encarar?

            Chegou na escola e esqueceu-se disso, doido que estava pra contar da casa nova.

            Aula de matemática.

            Muito mais legal que a aula era olhar pela janela, cabecinha debruçada na parede, vendo os meninos privilegiados que começavam a semana com Educação Física. Pênalti e a bola voou para o canto da quadra. Ali, detrás do alambrado, Willian notou outro gato. Esse era também preto e os seus olhos amarelos irradiavam de longe. O garoto se ergueu para ver melhor e o gato eriçou os pelos, arreganhou os dentes compridos e pontiagudos. A bocarra vermelha parecia agora tão perto, um abismo prestes a engoli-lo, engolir o mundo...

            - Willian!

            Ele tomou um susto, virando-se sobressaltado diante da professora zangada e das gargalhadas dos colegas. Olhou de relance e não viu nada lá na quadra. Desculpou-se com a professora e fingiu que prestava atenção à aula.

            Que diabos estava acontecendo? Nunca notara tantos gatos e nunca fora tão notado por eles. Devia ser coincidência, porém aquilo o deixara com a pulga atrás da orelha, mais difícil de entender que conta de matemática. Crianças não costumam ter angústias filosóficas, todavia aqueles gatos inquietaram o coração do menino.

            Na volta para casa, preferiu olhar para baixo do que para a janela. Os pais nem deram bola: a conta do carreto, mais alta que o combinado, os aborrecia mais do que os gatos fantasmas.

            Uma janta com sapoti de sobremesa fora alegria suficiente para que os dissabores do dia se esvaecessem. De bucho cheio, chutou bola lá fora até se extenuar para dormir, deixando de lado as preocupações e tarefas de casa.

            Outro baque no meio da noite, mas lá de fora agora. Dessa vez, pegaria o danado no flagra! Num pulo, Willian despertou e saiu apenas de cueca para ver o que havia lá fora. Olhou para o telhado e não viu nada. Um sapoti caiu bem nos seus pés, e um vulto passou rasante pelos galhos. Seu pai o alertara que morcegos adoravam a fruta e talvez fosse mesmo isso: o gatinho, simpático transeunte que vira ontem, deveria estar apenas de passagem e algum morcego devia ter feito todo o alarde de ontem.

            Voltou para cama satisfeito com suas próprias conclusões, fechando a porta e a janela.

            Mal se deitou e um barulho começou a surgir da porta. Era como pequenas garrinhas raspando a sua porta, como se algum animal quisesse entrar à força. Assustado, muniu-se de um chinelo e andou devagar até a porta. Se fosse o tal morcego, o lascaria numa chinelada só. Abriu a porta num ímpeto para ver apenas a cozinha vazia, exceto pela pilha de louça na pia, esperando o amanhecer.

            Sua coragem já se esvaíra quando voltara para a cama. Era menino que não tinha medo de nada, mas aquilo já era demais. Será um sonho? Enrolou-se todo no lençol.

            Foi aí que sentiu como se algo, com destreza e leveza, tivesse saltado em seu colchão. Não sabia que animal era, mas o estresse do dia o exasperara tanto que repuxou os pés e encolheu-se em posição fetal, suando frio. O animal, ou fosse lá o que fosse, pareceu andar em círculos e aninhou-se próximo a seus pés, não sem antes afofar o colchão com suas garrinhas, fazendo pequenos estalos conforme desfiava o colchão.

            Willian não se deu ao luxo de descobrir a cabeça e ver o que era o animal. Ficou ali encolhido, rezando para que seus pais entrassem a despertá-lo e espantassem aquela coisa dali. Ficou desperto até o cansaço vencer e fechar suas pálpebras, quase de manhã já.

            Acordou num susto com o barulho dos pais preparando comida na cozinha, jogando o lençol para o alto e se encolhendo na cama com medo de que isso atiçasse o visitante noturno. Sua cama porém, a não ser pelo garoto amedrontado, estava vazia.

            Comentou o episódio a seus pais, que o acalmaram e disseram ser provavelmente o estresse da mudança, de ter agora um quarto só para si e que aquilo não passava de medo pueril. Fosse o que fosse, Willian teve de encarar novamente a escola, amuado o tempo todo e ouvindo broncas por cochilar no meio da aula.

            Chegando em casa, foi buscar sua amada bola no quintal, de modo a chutar para longe suas tristezas e medos. Quando se aproximou do canto onde a deixara, estava ela desengonçada e murcha, rasgada por seja lá o que fosse. Horrorizado e sabendo que aquilo fora diabrura do ser que o visitara durante a noite, correu chorando para sua mãe. Exasperada, largou ela a faxina e foi ver o que havia acontecido, já que os soluços o impediam de explicar tudo.

            Os olhos do garoto se esbugalharam quando saiu para o quintal e viu a bola ali, plena e redonda, sem qualquer arranhão que fosse. Ouvira da mãe um turbilhão de broncas, mas dava a mínima atenção a suas palavras: ele havia visto a bola ali, toda rasgada, e ela estava agora novinha, apenas com as marcas tradicionais de seus chutes.

            Passou a tarde encolhido no quarto, cedendo apenas à fome. Quando foi à cozinha pegar um pacote de bolachas, o chão estava decorado por brilhantes cacos de vidro e pétalas floresciam aqui e ali: o vaso que decorava a mesa estava quebrado e um gato assustado o fitou por um segundo nos olhos, antes de sair correndo rumo ao quintal. Fora o tempo de ele sair e Estér entrar furiosa acusando o menino de tamanha bagunça!

            - Num me vem com esse papo de gato de novo! – e a mão da mãe ardia na sua perna direita, deixando uma marca muito mais visível que a dos gatos visitantes. Willian chorou, muito mais de agonia do que de dor. Pretendia pedir para dormir com os pais naquela noite, porém esse episódio arruinara suas chances, bem o sabia.

            Com o anoitecer, enrolou-se todo no lençol, não sem antes trancar a porta e janela. Quando tudo era silêncio e o coração do garoto batia lento rumo ao sono, esperançoso duma noite de descanso, o familiar baque surdo apareceu.

            Willian encolheu-se mais ainda, sentando-se abraçado aos joelhos e protegido pela roupa de cama. Os barulhinhos de garras chegaram, mas eram agora muito mais numerosas as patinhas que ali se faziam ouvir.

            Silêncio.

            Willian não sabia se tudo tinha acabado, se despertara do pesadelo. Ficou com medo de gritar pelos pais, diante do nervosismo que a mãe exibira durante o dia. Só restava a ele abrir os olhos e encarar o que quer que fosse. Se Deus quiser, não veria nada além do escuro aconchegante de seu novo quarto. Abriu os olhos e descobriu o rosto.

            Ali, emoldurado pela lua, na janela, um enorme gato preto, de olhos brilhantes e amarelo o observava. O garoto pensou em correr para a porta gritando, mas o que viu congelou lhe o sangue.

            Em passos mudos, gatos e mais gatos entravam. Felpudos, sujos, perfumados, com coleira, alaranjados, feridos, de pelo liso ou arrepiado. Gatos e gatos entravam no quarto e o rodeavam, sentando-se em volta da cama e olhando nos olhos arregalados do garoto.

            Um deles, um pequeno gatinho rajado, tomou a iniciativa e saltou na cama. Foi quando os demais aprumaram-se preparando para saltar que o garoto soltou um grito agudo e apavorado.



Conto escrito por
Paulo Romão

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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