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Cine Virtual: Hora Morta, Alma Viva

Conto de Luisa Garbazza
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Sinopse: O conto narra a experiência de Heron ao participar de uma típica tradição mineira: as festas juninas, os causos contados em volta da fogueira - quase sempre histórias assustadoras -, as consequências provocadas pelo medo dos ouvintes na volta ao lar.

Hora Morta, Alma Viva
de Luisa Garbazza
 

Heron subiu em sua moto e rumou para a cidade. Há muito passara da meia-noite. Ficou atordoado quando percebeu o negrume noturno. Sentia dificuldade de trafegar por aqueles trilhos acidentados. A ansiedade o dominava. Trafegar sozinho por aquelas veredas ladeadas de densa vegetação não estava sendo fácil.

– Nossa! As histórias daquele homem me deixaram de cabelo em pé – dizia Heron para si mesmo.

Continuava o trajeto com a cabeça cheia, atormentada, criando mil situações, mas não se arrependera do passeio.

Fora à fazenda da tia Rita e do tio Raimundo, em uma festa junina, típica do folclore regional. Viveu momentos agradáveis ao lado de parentes e amigos. A festança começou bem cedo, assim que a luz abandonou a terra por aquelas bandas.

– Venham! Dona Zefa vai começar a reza do terço! – gritou tia Rita.

Obedecendo àquela voz, todos se reuniram em torno à rezadeira. Uma oração em honra a Santo Antônio marcou a devoção ao santo tão querido:

– Viva Santo Antônio!

– Vivaaaaaaa!

A bandeira içada, bem alto, na ponta de um bambu, anunciava a tradição; as quitandas, todas preparadas no forno a lenha, construído no terreiro da cozinha, saciava os apetites mais exigentes; a fogueira, bem no meio do terreiro, alegrava e ajudava a esquentar o frio intenso; o arrasta-pé, ao som da sanfoninha do seu Antônio, alegrava a moçada e também os mais velhos, que se arriscavam pelo terreiro de terra batida.

– Heron, dança com a Ritinha. Ela está um pouco envergonhada – disse a tia Rita ao rapaz. Heron, também pouco à vontade, tirou a prima para dançar.

– Você quer dançar comigo? – disse-lhe quase sussurrando.

Sem nada dizer, a menina tomou-o pela mão e caminhou em direção ao sanfoneiro. Logo estavam tão juntinhos que pareciam namorados. E juntos ficaram, esquecidos do resto do mundo, até o pai da moça intervir:

– Ritinha! – vociferou. – Pode entrar. Sua mãe está esperando.

A contragosto, Ritinha soltou-se dos braços do primo e acatou a ordem do pai.

Assim que a dança esfriou, os remanescentes se reuniram em torno à fogueira para escutar os causos contados pelo velho João Grandão, figura indispensável nas festas nos sertões das Minas Gerais. Seus causos eram todos de assombração e almas penadas, mas a que mais assombro causou foi a do sino da Matriz:

– Havia um antigo tocador do sino que por anos e anos cumpria aquela função. Aquilo era sua vida. Cuidava dos sinos como quem cuida da família. Aliás, o sino era sua única família. Mesmo com a idade avançada, queria continuar ali. O padre ficava com pena e o deixava com aquela missão. Certo dia, quando veio um vigário novo, foi substituído contra sua vontade. O pobre coitado ficou tão decepcionado que resolveu morrer dentro da igreja. E não foi só isso! Volta de tempos em tempos, às três horas da manhã, para tocar o sino e assombrar os moradores da cidade.

– Dizem que às três horas da manhã ficou conhecida como “a hora morta”, palpitou alguém com os olhos arregalados e a respiração curta.

Sentindo calafrios com aquelas histórias, os mais medrosos deram um jeito de se despedir mais rápido. Alguns ficaram, dando uma de durões, mas, pouco depois, aceleraram o passo na volta para casa. Houve os que pernoitaram por ali mesmo, sem coragem de enfrentar os temores da noite. Heron ficou até o fim, quando as brasas da fogueira já haviam se extinguido quase por completo. Enfrentar a estrada no retorno à casa não foi tão agradável assim.

Quando Heron chegou à cidade, sentiu um alívio tomar conta de sua alma. As luzes acesas fizeram-no sentir em casa. Andou mais devagar, sem pressa, pelas ruas lisas e limpas. O perigo havia passado. Deixara para trás as imagens assombrosas que ganharam vida nas falas de João Grandão e o perigo de ser sobressaltado, na estradinha de terra, por algum acontecimento indesejado.

À medida que avançava para o centro da cidade, aumentava-lhe a convicção de que tudo fora histórias e que nada daquilo era real. Suspirou aliviado ao avistar a bela Igreja Matriz, bem no coração da cidade. A praça, no entorno da igreja, estava absurdamente deserta àquela hora da madrugada. Sem relógio, Heron não fazia ideia de que horas seriam. Avançava aos poucos. De repente, parou para observar a torre da Matriz. Nunca se ocupara em observá-la com um olhar mais acurado. Admirou-se com sua beleza iluminada, imponente e colorida. Aqueles instantes foram significativos em suas memórias. O tempo parecia ter parado. O ar calmo, a brisa leve em seu rosto, as lembranças do beijo roubado da prima Ritinha...

Com o coração à larga, absorto a contemplar tão bela construção, Heron empalideceu-se ao vê-la sumir na escuridão. Todas as luzes apagadas. A praça também estava encoberta pelas trevas. Olhou à sua volta e constatou que o mesmo acontecera com as lâmpadas das ruas, dos letreiros, das vitrines... Ao sentir o corpo e a alma serem novamente dominados pelo medo, girou a chave da moto para conseguir um pouco de luz e se afastar dali. Nada conseguiu. Tentou uma, duas, três vezes: nada. Sentiu um início de pânico dominá-lo. Arrastou a moto para a praça, frente à igreja, longe da rua. Sentou-se ao lado da máquina e encolheu-se todo. Nada havia a ser feito. Como conseguiria se deslocar até sua residência se não enxergava nem um palmo à sua frente? O jeito era esperar que as luzes voltassem.

Enquanto enfrentava aquela situação inusitada, sentia que os segundos se arrastavam pesadamente. Alguns exercícios de respiração foram experimentados com o intuito de desacelerar o coração. Achou que ia conseguir a calmaria. Mas, em vez disso, a taquicardia pela qual fora acometido anulou qualquer tentativa de sossego. Em um misto de aflição e curiosidade, Heron levantou um pouco os olhos que se esbugalharam com o que divisaram: o relógio, há tantos anos sem função, estava todo iluminado. E os ponteiros? Marcavam exatamente 3 horas. O rapaz lembrou-se imediatamente das histórias há pouco ouvidas: “Hora morta! Meu Deus! O que falta acontecer agora?”

Com os pensamentos em desatino, com medo do que poderia acontecer, fitava obsessivamente a torre. A mente não acreditou quando os ouvidos registraram o barulho dos sinos que começou com sutileza, até que o som foi ouvido com nitidez. Os repiques, cada vez mais rápidos, aumentavam de intensidade. Pareciam marcar o mesmo compasso do coração do rapaz. “Valei-me, Deus!” – foi o único som que saiu de sua boca. Nesse instante, uma imagem escura e fluida passou ao lado do jovem. O temor tirou-lhe a ação. Com o corpo gelado, Heron acocorou-se ao lado da moto e sentiu o sangue fugindo de suas veias. Entrelaçou as mãos, abraçou os joelhos e deixou a cabeça pender-se. Estava petrificado. 

Quando o dia amanheceu, Heron jazia, duro e frio, aos pés da escadaria da Matriz. As pessoas, cheias de curiosidade, paravam para olhá-lo. Alguém mais cuidadoso aproximou-se e examinou o rapaz:

– Ele está respirando. Está vivo!

Outros mais se achegaram. Trouxeram-lhe agasalhos, muitos agasalhos. O sol se encarregou de aquecê-lo por inteiro.

Logo que teve o corpo reanimado e conseguiu, aos poucos, abrir os olhos, Heron vislumbrou a luz. As trevas se foram. Nenhum ponto escuro a lhe ofuscar os sentidos e provocar arrepios de temor. Conseguiu se sentar. Percebeu a pequena multidão que se formara à sua volta. Curiosos, ansiavam por uma história convincente que justificasse sua presença desastrosa naquele lugar. O rapaz olhou para um lado, para o outro, mirou com espanto o relógio – que ainda marcava três horas – e, disfarçando um arrepio que lhe percorreu todo o corpo, desculpou-se: não se lembrava de nada.

Vivendo os próximos momentos em profundo silêncio, Heron analisou o aperto pelo qual havia passado e do infeliz momento em que o sino começou a bater: “Nossa! Que susto! Arrepiante, medonho, aterrorizante. Ainda bem que consegui me salvar! A hora era morta, mas a alma permaneceu viva.”

Agora mais consciente, olhou as pessoas presentes. Pensou em relatar o acontecido. Mudou de ideia e silenciou-se. Quem sabe em alguma roda de causos, ao redor de uma fogueira, dali a alguns anos...

O medo que sentira, porém, ficará em segredo, guardado nos espaços vazios da mente e trancado nas gavetas do tempo. 

Conto escrito por
Luisa Garbazza

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Márcio André Silva Garcia
Ney Doyle
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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