3x04 - Lado a Lado
de Janir Lage
Deixou
que o homem gordo descesse do ônibus na sua frente. Parecia estar com pressa. Ele
não tinha pressa nenhuma. Resolvera ir porque gostava muito da professora que
tinha naquele ano. Não queria decepcioná-la. Nos outros anos ele simplesmente
não ia. Em casa arranjava mil desculpas. Passava mal, perdia a hora,
comprometia-se em ajudar vizinhos, escondia o uniforme e nem se incomodava ao
ver a mãe vasculhando a casa toda à procura dele. Não ia.
A
professora todo dia falava que ninguém podia faltar. Vocês vão gostar. É uma
época muito bonita.
Ele
ouvia e pensava: bonita para quem? Com certeza para ela que já devia estar com
a árvore de Natal montada, os presentes dos filhos comprados, a ceia pensada.
Para
ele, era mais uma época de nada. Por muito tempo, sua mãe fizera questão de
esconder dele e ele daquela data. Qualquer contato seria extremamente perigoso,
advertia o bom senso dela que sabia que não encontraria nenhuma resposta para
dar ao filho sobre aquela fantasia tão necessária à vida, mas que não fazia
parte da deles. Descobriu por acaso, quando exatamente no dia foi com ela
entregar uma trouxa de roupa lavada e passada com um esmero exagerado na
esperança de ganhar mais uns trocados para comprar batatas. Nunca entendeu
porque batatas, já que soube depois que era um dia de frangos, perus, lombos de
porco. Lembrava muito bem da estranheza da família quando chegou uma
lavadeira, uma trouxa, um filho. O dono da casa puxou algumas notas do bolso que
parecia ter espaço para abrigar muitas outras não se incomodando com aquelas
que saíram.
Ele
reparou em tudo. O que era aquilo? Era uma festa. Mas não era festa de
aniversário .Não viu nenhum bolo nem docinhos. Só muita alegria.
Quando
vieram embora, ele pediu uma explicação para a mãe sobre o que tinha visto. Ela
ainda não tinha comprado as batatas, mas começou a falar como se tivesse a boca
cheia delas porque não conseguia entender nada do que ela falava. Aos poucos
foi prestando bastante atenção e foi entendo tudo. Foi um violento rito de
passagem da inocência para o ódio que ele passou a ter por todos os Natais que
tinha perdido. Todos aqueles embrulhos que viu embaixo da bela árvore colorida
eram presentes que se ganhava no dia do que chamavam Natal? E por que nunca
tinha ganhado um? De repente se viu abrindo caixas e mais caixas imaginárias,
mas absolutamente vazias que foi empilhando junto ao seu coração igualmente
vazio. Para proteger-se, nunca mais
pensou em Natal porque doía muito. Devia ser essa dor que estava fazendo ele
andar tão devagar não querendo chegar à escola para a festa.
O
homem gordo agradeceu ao menino. Estava realmente com pressa e muito ansioso.
Sempre ficava assim. Sempre era a primeira vez. Na véspera, havia revisado
inúmeras vezes o que tinha que levar na mala como se fosse fazer a viagem mais
importante da sua vida. Apesar de ter perdido na memória a conta de quantas
vezes fizera aquilo, não tinha perdido a emoção de relembrar como tudo começou.
Na
firma em que trabalhava a pessoa contratada para a festa não apareceu. Ele, que
tinha começado a hospedar uma barriguinha indesejável foi perguntado se não
queria ser o Papai Noel. Levou o maior susto. Ele? Não gostava nem de Natal. Não
tinha nenhuma lembrança boa da data. Sempre que pensava nela ouvia a voz da mãe
pedindo para a madrinha, tias, avós: ele precisa de roupas, sapatos, sem tocar
na palavra mágica para ele. Brinquedo. Na sua cabeça de criança, poderia
perfeitamente brincar nu. Empurrar uma variedade de carrinhos, andar numa tão
sonhada bicicleta, jogar bola com os amigos. Ninguém iria reparar. Pelo
contrário. Iriam reparar numa criança toda arrumadinha, chorando pedindo um brinquedinho pelo amor de Deus.
Por esse motivo, depois de grande, quando começou a trabalhar, comprou muitos
brinquedos, que trancava no armário. E quando tinha tempo, brincava, sim, com
todos eles, sem se importar se era Natal ou não.
Voltando
das suas lembranças, viu que todos os colegas estavam à sua volta esperando uma
resposta. Da sua boca saiu a exigência que seria o pagamento da sua apresentação
e de todas as outras que faria dali em diante. Só vou se tiver muitos
brinquedos para dar. Como garantiram que sim, ele topou. Como topou com ele
mesmo, continuar hospedando a sua barriguinha que virou barrigão, deixar a
barba crescer para se transformar de fato num verdadeiro Papai Noel que
encantava a todos. Os convites eram muitos. Sua fama corria de boca em boca.
Quando recebeu o convite para ir àquela escola, fez a exigência. Por isso,
estava com pressa. Sempre chegava ao
local antes para olhar com olhos de criança todos os presentes que iria dar.
Achava que assim saberia combiná-los com o desejo da criança.
Sem se
verem de novo, o homem gordo e o menino entraram na escola.
O
pátio já estava cheio de crianças todas azuis e brancas por conta dos seus
uniformes. O inspetor organizava as filas. A ansiedade de plantão nos ombros das
crianças menores .As maiores pagavam para ver, porque já tinham começado a
perder a inocência. Um a um foram entrando na quadra onde ele chegaria. Mas ao
entrarem silenciavam e iam se sentando com pernas de índio sendo envolvidos por um comando que não era
visível, só sentido.
Do
alto, no balcão da quadra, o inspetor colocava a mão em concha atrás do ouvido e
levava o dedo em riste à boca, convidando a todos para ouvirem alguma coisa. Todos
começaram a ouvir. É um sino. Muito longe. É preciso silenciar todo som do
corpo, virar estátua para poder ouvir de novo, de novo, de novo. De repente, todos
olham para cima e lá está ele. As estátuas se erguem e levitam seguras pelo fio
mágico do Natal e ficam assim por inacreditáveis minutos até voltarem ao chão.
Crentes e descrentes todos gritando: Papai Noeeeeeeeeeeeeeel!
O
menino que desceu do ônibus ouve um barulho ensurdecedor de tambor. Olha para
os lados e não vê nenhum. Logo descobre que o tambor é seu coração que parecer
querer sair do seu peito. Todos passam por ele para irem pegarem seus
presentes. Ele não consegue andar. É preciso que a sua professora o pegue pela
mão e o coloque na fila.
-Não
falei que você ia gostar!
Ele é o último. Papai Noel o olha com um olhar
de encontro adiado e lhe pede desculpas por todos os Natais em que esteve
ausente. Pega o presente para lhe dar. As bolas e os carrinhos acabaram. Mas
tinha uma caixinha de música com um Papai Noel em cima que ao virar a chave
atrás dele tocava um sino. Teve a certeza que não tinha visto aquele presente
quando chegou, mas achou-o perfeito para o menino à sua frente. Fizeram as pazes.
É
Natal de novo. O menino, agora adulto, tem vontade de pegar a sua caixinha de
música. Lembra do Papai Noel e se sente muito feliz.
Uma
coisa ele nunca soube e nem precisa saber. Aquele Papai Noel morreu naquele ano.
Naquele Natal.
Todos
sabiam do seu pedido, que não foi esquecido. Ser enterrado com a roupa de Papai
Noel.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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Sinopse: Com a proximidade do Natal, a líder comunitária de uma favela empenha-se na organização de um evento para homenagear o aniversariante. E, indo em busca de um senhor que costuma encarnar o Papai Noel da comunidade, ela se choca ao encontrá-lo muito magro. Assim, enquanto os dois conversam sobre as dificuldades enfrentadas, surge um menino cuja presença muda o clima e o desfecho da história.
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