
9x07 - Entre Capim, Lembranças e Renascimentos
de Vanilson Simões de Lima
A estrada vermelha do Mato Grosso sempre parecia mais longa quando chegava dezembro. O barro grudava na bota, o calor subia feito miragem, e o silêncio da mata era quebrado apenas pelos pássaros pousando nos pinheiros improvisados da fazenda Santa Aurora. Laura, uma jovem engenheira agrônoma, voltava para a casa dos pais depois de meses longe trabalhando com milho, soja e algodão. Era sua primeira visita natalina desde que se mudara para a capital.
No banco do carona, seu fiel cachorro, Trovão, abanava o rabo; no banco de trás, a gata Luna dormia com elegância felina. A fazenda estava diferente: luzes coloridas no curral, laços pendurados no galpão, e até um enorme presépio feito de madeira, lenhas e artesanato local. Sua mãe, dona Helena, sempre transformava tudo em celebração. E, ao abraçar a filha, murmurou com saudade:
— Que bom que voltou, minha menina. O Natal só começa quando você chega.
O pai, seu Orlando, um homem sério, mas de coração enorme, apertou-a no peito. — Este ano vai ser especial. A gente precisa de um renovo, minha filha.
Naquela tarde, enquanto ajudava a liberar os bichos do curral, Laura ouviu o ronco de um trator sendo desligado. Virou-se, curiosa. E então o destino lhe pregou a primeira surpresa natalina: ali estava Matheus, o novo técnico agrícola da fazenda. Moreno, riso fácil, mãos marcadas de trabalho e olhos brilhando como noite de magia.
— Desculpa a intromissão — ele disse, rindo. — Seu pai pediu pra eu terminar o plantio do capim. E o Trovão me adotou.
O cachorro, como para provar, encostou a cabeça na perna dele. Laura tentou responder, mas só conseguiu rir. Uma risada tímida, que ela já não lembrava como era. Mas foi à noite, quando a chuva fina começou a cair e todos se reuniram perto da lareira, que algo dentro dela começou a mudar. Matheus tocou violão. Sua mãe contou histórias de manjedoura, sonho, milagres, e do primeiro Natal que ela e o pai passaram juntos. Laura observava tudo, sentindo a paz daquela cena simples. Era como se a fazenda tivesse guardado fragmentos de sua infância em cada cheiro de lenha, cada luz piscando, cada canto distante dos sinos improvisados no galinheiro. No dia seguinte, a magia do Natal tomou forma de aventura. Uma das renas decorativas gigantes, colocadas na frente da casa, havia sumido. Na verdade, não era rena — era um enfeite do tamanho de um bezerro, feito de madeira.
— Aposto que foi o vento — disse o pai.
— Vento? Com esse peso todo? — Riu Laura.
Matheus sorriu. — Ou foi alguém que quis presente antes da hora.
Os dois seguiram pela trilha da roça, atravessando floresta, mato e pasto alto. Luna, a gata, resolveu acompanhar — como uma verdadeira patrulheira felina. E, no meio do caminho, encontraram pegadas profundas no barro.
— Isso não é uma rena — Matheus disse. — Isso é…
— Um bezerro! — Laura completou, rindo.
Sim, o enfeite havia sido levado por um bezerro curioso que, de alguma forma, arrastou o objeto até um canto da mata, onde a madeira brilhava cheia de perfumes do mato úmido.
Durante o resgate — que envolveu trator, cordas e muita risada — a chuva engrossou, fazendo os dois escorregarem no barro e se cobrirem até os joelhos.
— Eu devia ter previsto isso — disse Laura, tentando limpar a bota.
— Previu nada — Matheus respondeu. — Mas ganhamos um enfeite novo: Rena do Barro.
Eles riram tanto que até Luna miou como se estivesse participando da comédia rural. À noite, o reencontro familiar aconteceu no salão da fazenda. Os panetones, as velas, os pacotes, os presépios, os pinheiros, tudo parecia mais vivo do que nunca. Os parques improvisados para as crianças receberem o Papai Noel estavam cheios, e até falaram que “ia nevar”. Claro que não ia — estavam no Mato Grosso —, mas a criançada acreditava, e isso já bastava para encher a sala de mágica natalina. Quando todos se reuniram para orar, Laura fechou os olhos e sentiu algo diferente dentro de si. Talvez fosse gratidão. Talvez fosse a lembrança dos natais passados. Talvez fosse o olhar de Matheus, que a observava com carinho sincero. Era um sentimento quente, como renas na lareira, como a chama de uma vela que insiste em permanecer acesa. Depois da oração, Matheus se aproximou com timidez bonita.
— Posso te dar um presente?
— Pode… — ela respondeu, com um friozinho no estômago.
Ele tirou do bolso um pequeno bilhete dobrado, com cheiro de mato e perfume de chuva.
Escrito à mão, dizia:
“Que este Natal seja o começo de algo bonito.
Que a magia não termine amanhã.”
Laura sentiu o mundo parar. Aquela mensagem simples carregava uma verdade que atravessava a alma.
E então, sob as luzes, com o cheiro da fazenda e a música suave dos sinos improvisados, ela o beijou — um beijo quente, inesperado, cheio de promessa e renovo.
E naquele instante, entre barro, bichos, café com panetone e memórias antigas, Laura percebeu algo:
A magia do Natal não está na cidade, nem na neve, nem nos presentes, nem nas grandes festas.
Está no reencontro.
No riso.
Na união.
Na surpresa de um amor que nasce onde menos se espera.
E enquanto a noite caía, com serenidade e perfume de capim molhado, ela agradeceu em silêncio o milagre discreto daquele Natal na fazenda. Na manhã seguinte ao beijo, Laura acordou com o coração leve, mas também com uma inquietação que não sabia nomear. Saiu cedo para caminhar pela fazenda, entre o cheiro de capim molhado, o barulho dos pássaros e o vento que balançava as folhas da mata. Era um dia tão calmo que parecia desejar silêncio — mas a vida raramente obedece aos desejos da gente. Quando voltou ao casarão, encontrou a mãe e o pai na cozinha, mas o clima era tenso. Antes que perguntasse qualquer coisa, ouviu passos na varanda. E então, como um trovão inesperado, uma figura entrou: Luana. De cabelos curtos, sorriso aberto e botas sujas de barro, ela parecia carregar o próprio espírito da aventura nas costas.
— Laurinha?! — Ela exclamou, emocionada.
Era sua amiga de adolescência. Não qualquer amiga — mas alguém com quem Laura partilhou segredos, medos, descobertas e um amor silencioso que nunca aconteceu por medo, por fuga, por falta de coragem dos dois lados.
Laura congelou. O coração dela bateu tão rápido que parecia acompanhar o som dos sinos de Natal lá fora.
— Lu! O que você está fazendo aqui?!
— Vim pra uma visita surpresa. Tua mãe me chamou. Disse que… você podia precisar de mim.
A mãe, que observava tudo, sussurrou baixinho:
— Natal é tempo de reencontros, filha. Às vezes, a gente precisa lembrar de onde veio pra entender pra onde quer ir.
Matheus apareceu na porta logo depois, sorrindo ao ver a cena — sem imaginar nada além de amizade. Mas Luana percebeu tudo. Principalmente o jeito como Laura desviou o olhar. Durante o almoço, as conversas fluíram como antigamente. Riram, contaram histórias, lembraram das travessuras na roça, da vez em que se esconderam no curral, das noites ouvindo música juntas, das conversas sobre quem eram e quem queriam ser. E foi quando Laura percebeu: Matheus era um carinho. Luana era um espelho. No meio da tarde, a típica chuva rápida de verão caiu forte, fazendo todo mundo correr para dentro. No cheiro de terra molhada, enquanto as luzes piscavam e sua mãe preparava panetones, Luana pediu para conversar a sós.
— Lembra quando a gente tinha 17 anos? — Luana perguntou, tocando de leve a mão de Laura.
— Lembro… de tudo.
— Eu também. E lembra que nenhuma de nós teve coragem de dizer o que sentia?
Laura engoliu seco.
— Lu, aquele tempo me assustava.
— Eu sei. E não estou aqui pra bagunçar sua vida, Laurinha. Só queria que você soubesse de uma coisa… eu nunca esqueci. E vejo que você ainda não esqueceu também.
As palavras bateram fundo, profundas como uma raiz antiga que nunca foi arrancada.
— Eu tô diferente agora — Luana continuou, com um sorriso tranquilo. — Me aceitei. Me entendi. Não espero nada de você. Só queria que você lembrasse que... a gente também é um tipo de magia. Sempre foi.
Laura sentiu o peito apertar. Era como se seu coração fosse uma encruzilhada: uma estrada levava ao novo, a outra ao que sempre esteve lá.
À noite, enquanto as crianças ensaiavam o coral perto do presépio, e as luzes iluminavam o galpão, Laura se afastou para pensar. Olhou para a fazenda, para o mato, para o céu claro. Era tudo tão simples… e tão profundamente complexo.
Matheus se aproximou devagar, respeitando o silêncio dela.
— Você está estranha desde que a Luana chegou. Quer conversar?
Laura hesitou.
— Matheus… eu gosto de você. De verdade. Mas… existe uma parte de mim que eu nunca tive coragem de olhar direito. E a Luana faz eu lembrar dessa parte.
Ele respirou fundo.
— Então olha pra ela, Laura. Não foge.
— Você não está com raiva?
— Claro que não. A gente não escolhe quem a gente ama. Mas escolhe quem a gente quer bem. E eu quero o seu bem.
Ela chorou. Não de dor — mas de alívio.
— Obrigada por ser tão… humano.
— É Natal, né? Tempo de renovo, tempo de coragem.
Laura encontrou Luana na varanda, olhando a tempestade de luzes dos vaga-lumes na beira do pasto.
— Lu… eu preciso ser sincera. Você mexe em partes minhas que eu escondi por anos. E isso me assusta.
— Eu sei. Mas você não precisa decidir nada agora. Só precisa se permitir sentir.
Laura olhou para a fazenda iluminada, para o cachorro dormindo na porta, para o barulho suave dos sinos improvisados pelo vento. E ali, pela primeira vez, ela sentiu que tudo fazia sentido.
— Lu… eu quero tentar. Sem pressa. Sem medo. Sem rótulos que me prendam. Só sendo eu.
Luana sorriu, um sorriso que acolhia o mundo.
— Então é o melhor presente de Natal que eu já ganhei.
As duas se abraçaram, um abraço cheio de verdade, como se a vida inteira coubesse ali.
Naquela noite, Laura percebeu:
O Natal não tinha trazido apenas romance.
Tinha trazido reencontro.
Tinha trazido cura.
Tinha trazido coragem.
Tinha trazido ela mesma.
E entre a fazenda iluminada, os bichos dormindo, o cheiro de capim, a chuva fina e o coração finalmente em paz, ela entendeu:
A verdadeira magia natalina é quando você para de se esconder… e começa, finalmente, a existir. O silêncio daquela noite — quebrado apenas pelos sinos distantes da igrejinha da vila — fez Laura refletir sobre quantas vezes a vida tentara afastá-la das suas raízes. Pensou no Mato Grosso que carregava no peito, na fazenda onde crescera entre barro, capim e milho, nas mães que a ensinaram que coragem não nasce do tamanho da terra, mas do tamanho do coração. Ali, naquele reencontro inesperado com a própria história, ela se deu conta de que o passado não tinha vindo cobrar nada, apenas mostrar que ela podia, enfim, seguir sem medo. Luana, sentada ao lado dela no degrau da varanda, observava os pinheiros iluminados e comentou, rindo baixinho, que nunca imaginou celebrar um Natal tão cheio de riso, renovo e magia. Laura se perguntou quantas vezes deixou de viver algo verdadeiro por temer julgamentos da família, dos vizinhos, da comunidade rural que parecia sempre tão presa a tradições. Mas agora, ao sentir o aconchego daquela noite, percebeu que a roça também podia mudar, crescer, acolher. Afinal, até o mato renasce depois da chuva — por que o coração humano não faria o mesmo? O pai, emocionado, reparava nas duas de longe, percebendo que a filha estava finalmente inteira. Laura levou anos para entender que laços não se desfazem quando mudam de forma; apenas se transformam. Pensou nos parques onde brincou na infância, nos curralzinhos onde ajudava a tratar dos bichos, no cheiro da lenha queimando nas lareiras e nas lembranças suaves da mãe lhe ensinando a orar diante da manjedoura do presépio caseiro. Aquele passado, antes pesado, agora parecia pano macio: não mais um fardo, mas um abraço.
Ela se questionou sobre o futuro: e se a vida na cidade fosse mesmo passageira? E se seu caminho estivesse, desde sempre, entre pássaros, pastos e estradas de terra? A engenheira que um dia sonhou com prédios e máquinas agora se via encantada com a paz simples dos campos, com a serenidade da mata, com o canto noturno dos grilos. Talvez os milagres natalinos fossem isso: pequenas revelações que iluminam o caminho sem pressa, como luzes miúdas no meio do escuro. Por fim, Laura suspirou fundo, agradecida. Entendeu que cada viagem que fez, cada visita que adiou, cada saudade que tentou esconder, tudo a trouxe até aquele momento. À união improvável, ao amor que brotava entre galpões e presépios, à surpresa bonita de reencontrar raízes e construir um futuro novo ao lado de alguém que também buscava seu lugar no mundo. A fazenda parecia respirar com elas — e a noite natalina, com seus perfumes, sinos e velas tremulando, sussurrou que o maior presente era aquele: permitir-se viver com verdade, leveza e coragem.
Às vezes, assim como Ana, a gente passa anos acreditando que precisa se afastar do lugar de onde veio para encontrar o que procura. Mas a vida nos ensina que o reencontro com nossas raízes — sejam elas pessoas, memórias, valores ou sonhos — pode ser a chave para entender quem realmente somos. Não importa onde você esteja agora: sempre é possível voltar para dentro de si e recuperar partes esquecidas, partes que ainda têm muito a dizer. Também é importante lembrar que mudar não significa trair o passado. Crescer não significa abandonar quem você foi. A vida é como uma estrada de interior: com curvas, poeira, imprevistos e beleza. Cada trecho que você percorre — da roça à cidade, da dor à cura — faz parte do processo de se tornar alguém mais inteiro. Não tenha medo de recomeçar. Recomeços não são retornos ao início; são retornos a você.
O conto nos lembra que família é importante, mas não precisa ser perfeita para valer a pena. Às vezes, o amor chega torto, falho, cheio de silêncio. Mas também pode renascer, se houver disposição para ouvir, acolher e perdoar. Relacionamentos — familiares, românticos, de amizade — exigem coragem para ser vulnerável. E vulnerabilidade não é fraqueza: é a forma mais profunda de verdade que podemos oferecer a alguém.
Outro ponto essencial é entender que felicidade não é um destino fixo, nem algo que chega somente nas grandes conquistas. Ela mora nos pequenos gestos que, muitas vezes, ignoramos: um riso que surge sem aviso, um abraço inesperado, um café quente numa manhã qualquer, uma palavra gentil, uma lembrança bonita que decide retornar. Comece a reparar nessas miudezas. É nelas que a vida ganha textura. Por fim, permita-se viver aquilo que é seu, sem pedir desculpa pela sua existência. Amor verdadeiro — seja por alguém, por um projeto, por uma causa ou por si mesmo — exige autenticidade. O mundo tenta nos moldar, mas só quem se permite ser real encontra paz de verdade. Seja honesto com seus desejos, gentil com suas feridas e paciente com seus processos. A magia da vida — assim como a do Natal — não vem pronta: ela surge quando você abre espaço para sentir, aceitar, renovar… e seguir.
Tema de abertura
Jingle Bell Rock
Intérprete
Glee
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO

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