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A Deusa Bandida: Capítulo 19

Novela de Carlos Mota
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A DEUSA BANDIDA - CAPÍTULO 19

Luara é transportada ao hospital mais próximo, acompanhada por muitos repórteres da grande mídia, que desejam uma exclusiva com a sequestrada, que por obra do acaso ou milagre divino, sobreviveu à investida covarde da quadrilha do Camaleão. A polícia interdita o quarteirão, facilita o serviço da equipe médica, que ainda na Emergência, realiza as primeiras avaliações, colhendo amostras para um rol extenso de exames; diagnosticada com desidratação, é internada. Conduzida ao apartamento, no 6º andar, toma um banho bem demorado, veste uma camisola, sobe o degrau, ajeita-se na cama e se deita, jogando os cabelos ainda úmidos para o lado.

— Por quanto tempo permanecerei aqui? — indaga ao médico de meia-idade, que entrara no quarto, enquanto uma enfermeira a cobria com um fino lençol de algodão, bem branquinho.

— O necessário para que se restabeleça, mas olhe, se tudo correr bem, logo estará com os seus — responde, conferindo a medicação em uma prancheta de madeira.

— E meus exames? Está tudo bem comigo? — os olhos crescem, angustiados. — Não, não está, não é? Sinto-me fraca demais, doutor. Me ajude! Não quero morrer!

— Ei, ei, acalme-se, quem lhe disse isso? Não morrerá! O que acontece é que a senhorita passou por um episódio traumático, de grande proporção; não por acaso, encontra-se tão abalada. Precisa repousar, dormir por algumas horas, desligar-se de tudo… E quando acordar, estará bem melhor! Confie em mim! — tenta tranquilizá-la. — Nós a deixaremos agora, se precisar de algo, é só apertar o botão, ok? Vai dar tudo certo!

Assim que eles saem, abandona a fragilidade acentuada de há pouco, descobre-se, enche os pulmões de ar e o solta de uma só vez; está cheia de ódio! Com o porta soro nas mãos, caminha até a janela, de onde avista uma boa amostra da região, como se estivesse à procura de algo. E estava. Queria era saber que fim levara o bandido que ousou seduzi-la como nenhum outro homem. E a ansiedade dá tréguas quando encontra, a poucas quadras, a delegacia, com muitos repórteres e populares revoltados à porta, que protestam, munidos com cartazes e gritos de guerra, exigindo justiça. Uma pobre garota rica, filha de uma das figuras mais emblemáticas da Capital – explora a imprensa marrom¹ –, havia sido sequestrada, torturada, espancada e abusada incessantemente por um dos bandidos mais procurados do país, cuja ficha policial, extensa, continha crimes de toda natureza, desde furto de celulares, estelionato, até homicídio duplamente qualificado. Ainda dentro da viatura, Álvaro aguardava os policiais controlarem a turba para que pudesse ser conduzido à cela.

— Vamos, saiam, o meliante precisa passar! — gritam as autoridades, tentado liberar o acesso. — Saiam! Vamos!

O povo ensaia um motim, mas é contido por bombas de efeito moral; basta a porta do camburão se abrir para o tumulto recomeçar, atirando contra o bandido desde garrafas, pedras, tijolos e pedaços de pau. A polícia reage, em nova ofensiva. Quando o homem deixa o veículo rumo à porta de entrada, a multidão se agita, vaia, xinga, parte para cima como touro desembestado; apanha de cassetetes, recua; insiste, quer o couro e o sangue do criminoso, porque a Justiça dos homens é falha, a das ruas não encontra limites. Matar ou Morrer? Não importava. É a lei da selva que irrompe dos corações mais primitivos cobrando uma reação à altura dos crimes praticados pelo infeliz. Para aquela gente, ainda que Álvaro fosse de fato inocente, pouco importava, serviria de exemplo para que outros não se atrevessem. Um pedaço de ferro atinge-o nas costas, fazendo-o gemer de dor. O sangue desce, o povo aplaude, os policiais o protegem com seus escudos, o caminho até a porta seria longo. Álvaro carregava a própria cruz, como o filho desvirtuado de Deus, chicoteado pela imbecilidade dos homens.

Luara assistia a tudo aquilo sem expressar qualquer reação, como se não fosse humana. Ao ouvir passos, corre para o leito, o teatro tinha que continuar, ainda que os atores não estivessem à sua altura – pensa ela –, enquanto se ajeita.

— Fi-filha… — pergunta uma vozinha ressabiada, entrando. É seu pai, visivelmente emocionado, com algumas flores à mão.

— Pa-pai??? — simula uma debilidade espantosa, enquanto uma lágrima solitária desce desorientada pelo semblante pálido. — É mesmo o senhor? Como orei por esse momento!!! Pensei que jamais iria vê-lo — abraça-o.

— A senhora não quer subir, dona Leonor? — pergunta Matilde, na sala de espera do hospital, comovida com o estado da mulher, que recolhida a uma poltrona de corino, sofre intensamente. — Vamos! Eu a acompanho! Será rápido, Luara vai gostar de vê-la. Deve estar com muitas saudades!

— Saaabe quanto tempo não venho a este hospitaaal??? Desde aquele fatííídico dia!!! — diz, envolta em lembranças dolorosas.

— Seja forte, Luara precisa da senhora! — senta-se.

— Eu não consigo subiiir, minhas pernas parecem não me obedeceeer… — emociona-se, revelando uma lucidez incomum. — Como eu gostariiia de entrar no elevador, ir até minha filhiiinha e beijá- la; mas algo dentro de mim me impede, é como se eu estivesse preeesa a este sofá, condenada por uma dor tão grande que me paralisasse. Não sei como agiiir, acho que vou embora… É isso, quero sair daquiii!!!

— Mas e Luara? — insiste a governanta.

— Quando reveeejo aquela entrada — aponta para o C.T.I —, lembro-me dos garotos, naqueles sacos plásticos pretos… Sabe, às vezes me vejo perdiiida nos pensamentos, é quando me pergunto se Deus realmente existe…

— E qual a resposta que obtém?

— Se Deus existiiisse, por que os levou daquele jeito? Por quê? Será que eu era um mooonstro e não sabia? Era isso? Eu gerei aqueles três moleques, dei de mamaaar, peguei-os nos braços, fiz ninaaar, sentindo o corpinho deles colado ao meu e, de repente, sem que houvesse uma explicação, tiraram-nos de mim, como se fossem desses brinquediiinhos que se encontram em qualquer barraaaca de feira… Eles eram meus fiiilhos, entende? Meus fiiilhos!!! MEUS FIIILHOS!!! — chora, consternada. — QUE DEEEUS É ESSE TÃO IMPIEDOSO, MATIIILDE??? E por que não me levou no lugar deles? Por quê? Será que sou tão desprezível assim? Eu não mereciiia isso… Não mereciiia!!!

— soluça. — Dizem que as feridas se cicatrizam com o tempo, as miiinhas nunca fecharam!!! NUUUNCA!!! — limpa as lágrimas com a ponta do terninho. — Meus filhiiinhos, Matilde, meus filhiiinhos, os três afogados… por quê? Por quê? — pergunta, inconformada. — Tem como esquecer aquela imagem? Não! Vivo perturbada todo este tempo, tentando suportar a dor que me corrói…

— Mas a senhora tem Luara e ela está à sua espera! Também é sua filha e precisa de seu colo.

— Luara… — arfa — … ela não gosta de mim, eu sinto!

— Quem disse isso? Ela a ama!

— Não! Ela é mais fiiilha daquela veeelha do que minha…

— Não diga isso, dona Beatriz amava a todos do mesmo modo.

— Se amaaasse mesmo, não teria dormiiido — enche-se de revolta —; não fazia naaada o dia todo, custava ter cuidado direiiito de meus fiiilhos??? Nããão! Dormiu feito os mortos! E ainda bem que já bateu as botas, porque eu não teria estômago para aguentar aquela coruja véia do meu lado, ah, eu não teria, lhe daria uma boas vassouraaadas… — o juízo dá os primeiros sinais de que ruiria outra vez — … ah, se dariiia!

— A senhora está sendo injusta…

— Injuuusta com quem? Com aquela passageeeira da “Arca de Noé”? Aff! Tenha dó, Matildão! Se a velha não tivesse tomado um pileque, meus meninos hoje seriam homens.

— Ela não bebeu nada! Isso já está provado! Vamos virar a página, Luara está lá cima, é hora de dar-lhe colo, não acha?

— Nuuunca! Enquanto eu existiiir, jamais darei paz às memórias daquela… daquela… daquela bruxa. E quanto a você, dê o fora daqui, aproveitou-se de um momento meu de fraqueza para se aproximar… Quem não te conhece que te compre!

— Criatura estranha! — afasta-se, ofendida. — Não tem jeito mesmo, eu aqui, enternecida com sua dor, e a senhora me julgando mal.

— EEEU??? E desde quaaando sou juiz? Sai fora, capivara! Pensa que não sei, torce pra eu morrer, assim abocanha de vez o tooonto do meu marido… Ou peeensa que já não botei reparo??? É um tal de seu Martim para cá, seu Martim para lá, seu Martim acolá; certa está a Cleeeide em me abrir os olhos.

— O QUÊÊÊ??? — levanta-se, de súbito. — RESPEITE-ME! SOU UMA MULHER DE HONRA!!!

— Uhhhhhhh!!!! Muita hooonra!!! — debocha, também em pé. — AS CASAS DAS PRIMAS TÃO CHEIAS DESSA HONRA TODA!!!

— JÁ LHE DISSE, RESPEITE-ME, SENÃO NÃO RESPONDO POR MIM…

— Respeite-me, respeite-me… ui! — remenda-a —, e desde quaaando uma rampeeeira como você merece respeito?

— Eu vou lhe quebrar a cara… — ameaça a governanta, levantando os punhos.

— Pode vir — coloca-se também em posição —, o que vem de baixo não me atinge.

— DONA LEONOOOR?!! — grita uma jovem, abrindo um sorriso largo. — É ela, gente! Vejam!

— Hein??? — é atraída pela alegria da garota. — Quem é esta sirigaita? — sussurra a Matilde, que a ignora.

— Dona Leonor, não é??? — questiona, toda efusiva, aproximando-se com mais duas meninas.

— Siiim! E quem são vocês? Se forem bandiiidas, que se afastem, senão chamo a polícia. A cota de crime já deu! Será que nem no hospiiital a gente pode ter paz?

— Somos suas fãs — responde, com os dentes à mostra —, e assistimos a todas as suas lives… É muuuito massa!

— FÃS??? MI-MINHAS FÃS??? EEEEEEEEEEITA!!! Que povinho gentiiil, né, não, Matilde?

— A senhora pode nos dar um autógrafo??? — pede outra garota, a menor do grupo, com o nariz grande, fino e pontiagudo, dando-lhe o papel.

— Claaaro! Comiiigo não tem frescuuura, é dar com uma mão e tomar com a outra.

— Tira uma foto comigo??? — pede uma idosa, puxando de uma perna, ao se enfiar no meio da garotada, enquanto masca uma folha de fumo. — A senhora é a melhor “infruenci” deste país. Sigo todos seus “conseios”… E aquele de botar pozinho na comida pro véio parar de virar a birita é tiro e queda… Santo remédio! Foi tão bom que o bicho partiu dessa pra melhor.

— É MEEESMO??? ESSE POVO TÁ LOUCO OU FOI EU QUE MORRI???NÃO SOU A RITA LEE, MAS FAÇO O POVO RI!!! ATÉ RIMOU! — comemora, com os olhos brilhando, esquecendo-se mais uma vez da filha.

— A senhora é um exempro de pessoa! — o hálito é muito forte, para o infortúnio de Leonor, que dá um pulo para trás, comprimindo o nariz e revirando os olhos.

— Precisa de uma bala de hortelã, hein, véééia, ops, quer dizer, dona… o bafo tá brabo!

— Eu já chupei duas agora mesmo, mas hoje tá russo, tá pior que boca de bueiro … — não se ofende com o comentário, pelo contrário, acha-o engraçado.

— Eu deixei de seguir a Anitta por conta da senhora — confessa a garota do meio, com um olhar no peixe e outro no gato —; quando vi sua live, lá no cemitério, com aquela velha feia, não pensei duas vezes, me inscrevi em seu canal e passei a curtir tudo o que fazia. A senhora é o máximo! — aplaude. — É minha “ídola”!

— E nossa também!!! — falam numa só voz.

“Que show de horrores, meu Deus!!!” — pensa a empregada, espantada com tamanha sandice.

— TÔ MAIS FA-MO-SA QUE A ANITTA!!! GOSTOU DESSA, CANELA SECA??? — provoca. — VÊÊÊ SE APRENDE! E DE ONDE VOCÊS SÃO??? LAGO SUL, LAGO NORTE…?

— Ceilândia! — respondem, eufóricas.

— Tinha de ser! — Matilde morde os lábios para conter a risada.

— Não tinha um bairriiinho melhor??? Aff! Ídolo de pooobre ninguém merece!!! Aliás, o que vocês fazem aqui??? Estão bem longe de casa… e da classe de vocês.

— A gente veio de ambulância, os hospital de lá tão tudo cheio — responde a idosa.

— Este lugaaar anda muito maaal frequentado!!! — reclama, virando o rosto. — Aff! A gente trabalha taaanto na vida para terminar dividindo espaço com a gentaaalha… Como riiico sofre neste país!!! Hum!!!

— LEONOR FOREVER!!! — gritam de alegria, para o espanto de Matilde, que não compreende o motivo delas a idolatrarem, mesmo depois de Leonor as humilhar.

— EM INGLÊÊÊS??? — abre o sorriso. — AÍ SIM! AGORA TÁ LEGAL! POBRE BILINGUE É OUTRA COISA!!! CURTI!!!

— Que zoeira é essa? — pergunta o segurança, adentrando o recinto.

De volta ao apartamento…

— Graças a Deus, você voltou!

— Oh, paizinho, como eu sofri. Espancavam-me todos os dias, veja — mostra-lhe as marcas do rosto e as do acidente —, negavam-me água, comida e, ainda por cima…

— Filha, deixe, depois conversamos, você está debilitada… tadinha!

— Pai… desculpe!

— Do quê, meu amor?

— Eles… bem, não tive como me defender, até tentei, mas foi em vão… um deles, justamente o que foi preso, me violou…

— Oh, meu Deus! Não fale mais nada, meu amor! O pai tá aqui! — sua vontade era a de invadir a delegacia e matar o infeliz que despetalou sua rosa mais preciosa.

— Eu… eu lutei muito… muito… muito mesmo… mas ele era mais forte, pai… — finge um choro desesperado. — Foi horrível! Quando me lembro daquele homem em cima de mim, me forçando a fazer coisas, tenho vontade de vomitar…

— Oh, meu amor, acalme-se, agora você está de volta… Acalme- se! — atônito, não sabe o que dizer para acalentar o coração ferido da filha.

— Eu só pedia a Deus que me mantivesse viva para reencontrar o senhor e a mamãe!!! — completa a encenação com chave de ouro. — Era o meu único desejo!!!

— Oh, filha… — beija o rosto dela com ternura —, não fique assim, o pai tá aqui!

— O cara tá preso, mas tenho medo de que ele fuja e me ataque de novo, nem tô conseguindo dormir… — as lágrimas escorrem.

— Eu o mato se chegar de novo perto de você! — sua ira transcende a de um pai revoltado; é a de um homem íntegro que não admite que mulher alguma sofra nas mãos de um covarde. — Deixe comigo, filha, ele pagará por tudo que lhe fez. Nem que eu tenha de vender tudo o que temos, mas aquele infeliz jamais sairá da cadeia.

— Senhor… — chama-lhe uma enfermeira, à porta —, pode vir até aqui? É urgente!

Luara o acompanha com os olhos curiosos.

— Sim! Em que posso ajudar?

Leonor havia entrado em atrito com o segurança, que acionou a polícia, causando uma enorme confusão na sala de espera.

— Aquela não tem jeito! — leva as mãos à cabeça, voltando-se à garota. — O pai já volta, filha! Só um minuto.

Assim que se retira, a garota cai em gargalhada ao recordar-se das reações dele diante de suas mentiras.

— Idiota! Acreditou em tudo o que eu disse! — caçoa do sofrimento do pai. — Como é fácil manipular as pessoas… Se eu soubesse, já teria feito isso há muito tempo, mas não, sempre boazinha, recatada, guardadinha como uma boneca, jamais viveria a vida como deveria ser. Estou cheia de tudo isso, vou é viver da agonia e do caos, cultuando o perigo… Que adrenalina! Que sensação gostosa de poder! — debocha. — Deixe-me ver como está em frente à delegacia, aquele tolo deve estar apavorado, chorando feito uma besta, exalando paixão por todos os poros… Hum! Não posso negar, por ser o primeiro macho que me fez ter prazer, até que foi bom!!! — levanta-se, puxando com tudo a agulha. — Quem quer essa droga?

— O que você disse, Luara? — estranha Matilde, entrando no quarto, após ouvir parte do monólogo.

— Ma-Ma-til-de??? Eu… eu… não estou bem! — volta a atuar.

— Me ajude, por favor, não estou me aguentando!

A mulher não consegue se aproximar, é como se houvesse uma barreira invisível entre elas.

— Me a-a-jude!!! — implora, dissimulando, enquanto o sangue escorre pelo braço. — Está tudo virando, acho que vou desmaiar.

“Não posso evitar o inevitável, ainda que tenha feito uma promessa à minha neta; por isso, quando eu partir, tenha-a por perto, seja a sua consciência, antes que o mundo a roube de nós. Luara não é uma criatura capaz de se defender; frágil como é, ruirá à primeira tempestade e isso não poderemos permitir.” — a governanta relembra- se da conversa que teve com dona Beatriz.

— Matilde, me… me a-a-ajude!!! — suplica, num choro comovente – se fosse verdadeiro.

“… É o seu anjo protetor, mas lembre-se, os desafios que virão não serão páreos apenas para um anjo, é necessário que você vá além dos próprios limites, vista-se de fera e ruja, ruja, ruja o mais alto que puder, afastando dela todos aqueles que insistirem em lhe fazer o mal. E serão muitos. EU SINTO!” — as palavras da idosa continuam a atormentá-la.

— Po-por favor! — simula um desmaio, mas a governanta não cede, sentindo que tudo aquilo era fruto de uma encenação barata. Só não compreendia o motivo! Trauma do sequestro? Talvez! Mas a ponto de mexer com sua personalidade? Não! Estava estranho demais, como se esta fosse a verdadeira Luara, e não a outra, que sempre se mostrava contida, de humor depressivo, sofrida, de poucos amigos. Seria possível ter se enganado por tantos anos? O diamante que nunca deixou de ser uma pedra bruta? Como acreditar nisso?

A noite é um manto negro que vaga sobre a terra… Na delegacia…

— Qual o seu nome, senhorita? — pergunta a delegada substituta, preparando-se para ouvir o relato.

— Sofia! Sofia Ricci.

— Quer que eu a acompanhe, filha? — pergunta o pai, um homem de boa aparência, em terno sob medida, no auge dos quarenta e poucos anos.

A garota confirma com a cabeça.

— E qual é sua denúncia?

— Aquele homem matou o filho do diplomata.

— Que homem?

— O que apareceu na tevê, o tal de Álvaro!

— Como assim? — especula a autoridade. — Seja mais objetiva.

— Eu estava na Hedonê quando ele atirou no meu amigo Nicholas.

— Tem certeza? — insiste, apesar de já conhecer a história por meio da confissão de Solano, antes de morrer. — E por que não procurou a polícia antes? Medo?

— Claro! O que a senhora acha? — o homem intervém, ironizando. — Estamos falando de um bandido, que comete todo tipo de crime, inclusive o de estupro. É óbvio que minha filha estava amedrontada. Só faltava essa!

— Acalme-se, senhor, tenho de fazer as perguntas…

— Tá, desculpe, mas é que esta história do sequestro mexeu com nossa casta.

— A senhorita bebe, dona Sofia?

— Que tipo de pergunta é essa? — o homem não deixa a filha responder. — Minha filha nunca pôs uma gota de álcool na boca, entendeu? — revolta-se. — É uma santa em vida!

A garota se retrai.

— Essa gentalha não sabe o seu lugar, como pode ofender um Ricci desse jeito? — comenta consigo mesmo, enquanto acende um cigarro. — Amanhã hei de me queixar ao Secretário da Segurança Pública do DF.

Não tão distante dali, isolado em uma das celas, nos fundos da delegacia, com o corpo repleto de hematomas, Álvaro geme de dor, deitado sobre o chão fétido e gelado. Não é o suficiente para calar os outros criminosos, que revoltados com sua presença, ameaçam uma rebelião.

— Aqui, vagabundo, cê cala a boca aí, porque se eu te cato, não sobra nada — berra um malandrinho de pouca idade, anêmico, com uma barbicha descolorida, trajando roupas escuras e largas. — Cê é macho só com as mina, né? Por que não vem aqui me estrupar? Vem, vem, que te esfolo inteirinho e ainda te faço de mulherzinha… Uhhh!!! Vai gemer de prazer!!! O que faiz com elas, farei o dobro com você!

— Dexa pra mim, Salsicha, tô que tô, se eu pegar ele, vai ver até estrelas… — pede outro gatuno, de uns trinta e poucos anos, obeso, com camiseta regata e bermuda até o joelho, com as barras desfiadas.

— Me-me-me dei-dei-xem… — implora, febril, com as vestes manchadas de sangue.

— Ele quer ficá sozinho, Presuntinho! — ironiza Salsinha. — O troxa acha que tem alguma chance; é bom que morra antes, se a gente te cata, te capa e te fode sem dó. Cara que ferra uma fêmea não vive muito tempo, cê tá marcado, aonde for, sempre terá alguém na sua cola, basta um simples deslize, pra um trabuco rasgar seu bucho.

— Dexa o cara, meu, não tá vendo que ele tá mais prá lá do que pra cá; se bobear, dessa noite não passa… — intervém um velhote, sentado no chão, numa cela um pouco mais distante, apiedado com o estado do malandro.

— Óia o vovô, Salsicha… — coça a virilha — … já deve ter passado o rodo no cara, pra tá defendendo ele… Só pode! Mas fica sussa, parcero, nós não qué nada demais, só as tripa dele, o resto a gente dexa procê.

— Oh, Presuntinho, cê é foda, cara! — diz o velhote. — Não tá vendo o estado do bandido, meu? Tá com os zóio revirando, babando feito cachorro louco… Deve tá com uma febre braba!

— Estruprador aqui não se cria, véio! Cê qué o cara como sua fêmea, tá feito, mas antes, nóis também vai brincá com ele… Hum! Nem acredito, vou tirá o atraso, fazê um rombo qui o cara vai fica uns dia sem podê sentar, né, não, Salsinha?

— Certeza, malandro!

— Bem, se eu fosse cês dois, ficava de boa, o cara é da Família… Vão encarar? — pergunta o velho.

— Esse daí? — estranha Salsicha. — Isso é conversa!

— É nada! O coxinha me soprou que ele tava com o Patrão, que também não terminou aqui, porque tinha um arsenal capaz de destruir qualquer exército, tanto que da operação não sobrô nenhum polícia pra contar história, a não ser o delegado cheio de querê. Continuem, cês sabe quem é o Camaleão, se ele resolve resgatar o pilantra, passa fogo em todos nóis. Quero ver o safado metido a machão enfrentar o protegido do Português… Vai todo mundo de tobogã pro fogo do inferno antes da hora — alerta o velhote.

Com a temperatura descontrolada, os músculos contraindo-se com força, lábios e dentes trepidando, saliva escorrendo em grande volume, Álvaro perde a consciência, atraindo a atenção dos criminosos, que silenciam diante de seu estado.

— Corram aqui!!! — grita o velhote, batendo uma caneca de alumínio contra as barras de ferro da cela. — EI, MEU!!! O CARA TÁ BATENDO AS BOTAS!!! ACUDAM!!!

Distante dali, na aeronave que os conduzia de Brasília a Goiânia, Aurora pressente o mal que abraça o amado e se desespera. Levanta- se da poltrona e se dirige ao banheiro, sendo acompanhada pelos olhos curiosos de Luizinho. Fecha a porta, olha-se no espelho, está enfraquecida, mas faria o que fosse necessário para convencê-lo a não abandonar este mundo. Arfando, lava o rosto, o enxuga e ao levar as mãos às têmporas, é interrompida por Luizinho, que bate à porta com força.

— O que há, homem? — pergunta, bastante irritada, diante dele.

— Só queria ter a certeza de que não estava invocando de novo o capeta; do jeito como as coisas estão, é bem capaz deste avião cair e só você se salvar, sem um arranhão que seja, envolta a um clarão de luz — debocha.

— Não brinque com isso, você não sabe do que está falando — abre uma das mãos.

— Por quê? — segura-a pelo punho, impedindo que ela levantasse o braço. — Quer me ver pelas costas, não é? Está mesmo doida pelo bandido… Quem te viu, quem te vê, ciganinha de quinta! Era o esterco de uma terra abandonada, criatura sem luz, rato do esgoto, que vivia no meio do nada, lendo as mãos alheias para ganhar um troco, mas tudo isso mudou a partir do momento que a conheci, não é? Dei-lhe roupas, joias, status, poder… muito poder… poder para mudar o mundo… e o que fez? Abandona tudo em nome de um sentimento que mal consegue decifrar, uma paixãozinha de adolescente, daquelas que entorpece o juízo, a ponto de invocar todas as suas forças para salvar um bandido sem futuro.

Os olhos dela enchem-se de lágrimas.

— Tem coragem de me trair e logo com um… um… bobalhão?

— continua. — Tem, Aurora? Prefere regressar ao esgoto a ter um vida de luxo, como a que lhe ofertei?

— Não sou feliz! — afirma.

— E quem vive de felicidade, minha queridinha? Ninguém. Vocês, mulheres, se dizem espertas, quando, na verdade, não passam de putas assanhadas, ávidas por sexo e prazer.

— Você está me ofendendo…

— É mesmo? Eu deveria é matá-la, assim me livraria do fardo que se tornou.

— E por que não tenta? — desafia. — Vamos! Retire minha vida e apague toda a vergonha que sinto por ter me entregue a você.

Ele a esbofeteia, para o sofrimento da mulher, que resiste ao choro.

— Na hora certa! E já lhe adianto, será uma morte lenta e muito dolorosa.

Cabisbaixo, regressa ao assento, ao lado da janela, de onde se mantém em silêncio pelo resto da viagem. Aurora, mesmo ameaçada, tranca-se de novo, mas os poderes lhe faltam, está muito abalada, não há como invocar os oráculos, clamar pelos santos ciganos. Aflita, entrega- se, enfim, às lágrimas, com a imagem do amado definhando diante dos olhos, sem que nada pudesse fazer para ajudá-lo.

“Senhor, o plano saiu como o combinado! O Patrão e a cigana estão desnorteados, literalmente sem chão; se quer mesmo que eu os elimine, a hora é agora! Aguardo suas ordens!” — escreve Egídio ao Português, após certificar-se de que não estava sendo vigiado.
_____________

1. Expressão de cunho pejorativo, utilizada popularmente no Brasil para se referir à imprensa sensacionalista. Isto é, veículos de comunicação buscam elevadas audiências e vendagem através da divulgação exagerada de fatos e acontecimentos.

autor
Carlos Mota

com ilustrações de
Andrea Mota
 
elenco
Luara
Álvaro
Aurora
Diana
Martim Vaz
Leonor Moreira Vaz
Beatriz Vaz
Matilde
Cleide
Eufrásio
Sofia
Luizinho como Patrão e Camaleão
Egídio
Enrico
Português

trilha sonora
Immortal - Thomas Bergensen
 
produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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