Luara é transportada ao hospital
mais próximo, acompanhada por muitos repórteres da grande mídia, que desejam
uma exclusiva com a sequestrada, que por obra do acaso ou milagre divino,
sobreviveu à investida covarde da quadrilha do Camaleão. A polícia interdita o
quarteirão, facilita o serviço da equipe médica, que ainda na Emergência,
realiza as primeiras avaliações, colhendo amostras para um rol extenso de
exames; diagnosticada com desidratação, é internada. Conduzida ao apartamento,
no 6º andar, toma um banho bem demorado, veste uma camisola, sobe o degrau,
ajeita-se na cama e se deita, jogando os cabelos ainda úmidos para o lado.
— Por quanto tempo permanecerei
aqui? — indaga ao médico de meia-idade, que entrara no quarto, enquanto uma
enfermeira a cobria com um fino lençol de algodão, bem branquinho.
— O necessário para que se
restabeleça, mas olhe, se tudo correr bem, logo estará com os seus — responde,
conferindo a medicação em uma prancheta de madeira.
— E meus exames? Está tudo bem
comigo? — os olhos crescem, angustiados. — Não, não está, não é? Sinto-me fraca
demais, doutor. Me ajude! Não quero morrer!
— Ei, ei, acalme-se, quem lhe
disse isso? Não morrerá! O que acontece é que a senhorita passou por um
episódio traumático, de grande proporção; não por acaso, encontra-se tão
abalada. Precisa repousar, dormir por algumas horas, desligar-se de tudo… E
quando acordar, estará bem melhor! Confie em mim! — tenta tranquilizá-la. — Nós
a deixaremos agora, se precisar de algo, é só apertar o botão, ok? Vai dar tudo
certo!
Assim que eles saem, abandona a fragilidade acentuada de há pouco, descobre-se, enche os pulmões de ar e o solta de uma só vez; está cheia de ódio! Com o porta soro nas mãos, caminha até a janela, de onde avista uma boa amostra da região, como se estivesse à procura de algo. E estava. Queria era saber que fim levara o bandido que ousou seduzi-la como nenhum outro homem. E a ansiedade dá tréguas quando encontra, a poucas quadras, a delegacia, com muitos repórteres e populares revoltados à porta, que protestam, munidos com cartazes e gritos de guerra, exigindo justiça. Uma pobre garota rica, filha de uma das figuras mais emblemáticas da Capital – explora a imprensa marrom¹ –, havia sido sequestrada, torturada, espancada e abusada incessantemente por um dos bandidos mais procurados do país, cuja ficha policial, extensa, continha crimes de toda natureza, desde furto de celulares, estelionato, até homicídio duplamente qualificado. Ainda dentro da viatura, Álvaro aguardava os policiais controlarem a turba para que pudesse ser conduzido à cela.
— Vamos, saiam, o meliante
precisa passar! — gritam as autoridades, tentado liberar o acesso. — Saiam!
Vamos!
O povo ensaia um motim, mas é
contido por bombas de efeito moral; basta a porta do camburão se abrir para o
tumulto recomeçar, atirando contra o bandido desde garrafas, pedras, tijolos e
pedaços de pau. A polícia reage, em nova ofensiva. Quando o homem deixa o
veículo rumo à porta de entrada, a multidão se agita, vaia, xinga, parte para
cima como touro desembestado; apanha de cassetetes, recua; insiste, quer o
couro e o sangue do criminoso, porque a Justiça dos homens é falha, a das ruas
não encontra limites. Matar ou Morrer? Não importava. É a lei da selva que
irrompe dos corações mais primitivos cobrando uma reação à altura dos crimes
praticados pelo infeliz. Para aquela gente, ainda que Álvaro fosse de fato
inocente, pouco importava, serviria de exemplo para que outros não se
atrevessem. Um pedaço de ferro atinge-o nas costas, fazendo-o gemer de dor. O
sangue desce, o povo aplaude, os policiais o protegem com seus escudos, o
caminho até a porta seria longo. Álvaro carregava a própria cruz, como o filho
desvirtuado de Deus, chicoteado pela imbecilidade dos homens.
Luara assistia a tudo aquilo sem
expressar qualquer reação, como se não fosse humana. Ao ouvir passos, corre
para o leito, o teatro tinha que continuar, ainda que os atores não estivessem
à sua altura – pensa ela –, enquanto se ajeita.
— Fi-filha… — pergunta uma
vozinha ressabiada, entrando. É seu pai, visivelmente emocionado, com algumas
flores à mão.
— Pa-pai??? — simula uma debilidade espantosa, enquanto uma lágrima solitária desce desorientada pelo semblante pálido. — É mesmo o senhor? Como orei por esse momento!!! Pensei que jamais iria vê-lo — abraça-o.
— A senhora não quer subir, dona Leonor? — pergunta Matilde, na sala de espera do hospital, comovida com o estado da mulher, que recolhida a uma poltrona de corino, sofre intensamente. — Vamos! Eu a acompanho! Será rápido, Luara vai gostar de vê-la. Deve estar com muitas saudades!
— Saaabe quanto tempo não venho a
este hospitaaal??? Desde aquele fatííídico dia!!! — diz, envolta em lembranças
dolorosas.
— Seja forte, Luara precisa da
senhora! — senta-se.
— Eu não consigo subiiir, minhas
pernas parecem não me obedeceeer… — emociona-se, revelando uma lucidez incomum.
— Como eu gostariiia de entrar no elevador, ir até minha filhiiinha e beijá-
la; mas algo dentro de mim me impede, é como se eu estivesse preeesa a este
sofá, condenada por uma dor tão grande que me paralisasse. Não sei como agiiir,
acho que vou embora… É isso, quero sair daquiii!!!
— Mas e Luara? — insiste a
governanta.
— Quando reveeejo aquela entrada
— aponta para o C.T.I —, lembro-me dos garotos, naqueles sacos plásticos
pretos… Sabe, às vezes me vejo perdiiida nos pensamentos, é quando me pergunto
se Deus realmente existe…
— E qual a resposta que obtém?
— Se Deus existiiisse, por que os
levou daquele jeito? Por quê? Será que eu era um mooonstro e não sabia? Era
isso? Eu gerei aqueles três moleques, dei de mamaaar, peguei-os nos braços, fiz
ninaaar, sentindo o corpinho deles colado ao meu e, de repente, sem que
houvesse uma explicação, tiraram-nos de mim, como se fossem desses
brinquediiinhos que se encontram em qualquer barraaaca de feira… Eles eram meus
fiiilhos, entende? Meus fiiilhos!!! MEUS FIIILHOS!!! — chora, consternada. —
QUE DEEEUS É ESSE TÃO IMPIEDOSO, MATIIILDE??? E por que não me levou no lugar
deles? Por quê? Será que sou tão desprezível assim? Eu não mereciiia isso… Não
mereciiia!!!
— soluça. — Dizem que as feridas
se cicatrizam com o tempo, as miiinhas nunca fecharam!!! NUUUNCA!!! — limpa as
lágrimas com a ponta do terninho. — Meus filhiiinhos, Matilde, meus
filhiiinhos, os três afogados… por quê? Por quê? — pergunta, inconformada. —
Tem como esquecer aquela imagem? Não! Vivo perturbada todo este tempo, tentando
suportar a dor que me corrói…
— Mas a senhora tem Luara e ela
está à sua espera! Também é sua filha e precisa de seu colo.
— Luara… — arfa — … ela não gosta
de mim, eu sinto!
— Quem disse isso? Ela a ama!
— Não! Ela é mais fiiilha daquela
veeelha do que minha…
— Não diga isso, dona Beatriz
amava a todos do mesmo modo.
— Se amaaasse mesmo, não teria dormiiido — enche-se de revolta —; não fazia naaada o dia todo, custava ter cuidado direiiito de meus fiiilhos??? Nããão! Dormiu feito os mortos! E ainda bem que já bateu as botas, porque eu não teria estômago para aguentar aquela coruja véia do meu lado, ah, eu não teria, lhe daria uma boas vassouraaadas… — o juízo dá os primeiros sinais de que ruiria outra vez — … ah, se dariiia!
— A senhora está sendo injusta…
— Injuuusta com quem? Com aquela
passageeeira da “Arca de Noé”? Aff! Tenha dó, Matildão! Se a velha não tivesse
tomado um pileque, meus meninos hoje seriam homens.
— Ela não bebeu nada! Isso já
está provado! Vamos virar a página, Luara está lá cima, é hora de dar-lhe colo,
não acha?
— Nuuunca! Enquanto eu existiiir,
jamais darei paz às memórias daquela… daquela… daquela bruxa. E quanto a você,
dê o fora daqui, aproveitou-se de um momento meu de fraqueza para se aproximar…
Quem não te conhece que te compre!
— Criatura estranha! — afasta-se,
ofendida. — Não tem jeito mesmo, eu aqui, enternecida com sua dor, e a senhora
me julgando mal.
— EEEU??? E desde quaaando sou
juiz? Sai fora, capivara! Pensa que não sei, torce pra eu morrer, assim
abocanha de vez o tooonto do meu marido… Ou peeensa que já não botei reparo???
É um tal de seu Martim para cá, seu Martim para lá, seu Martim acolá; certa
está a Cleeeide em me abrir os olhos.
— O QUÊÊÊ??? — levanta-se, de súbito. — RESPEITE-ME! SOU UMA MULHER DE HONRA!!!
— Uhhhhhhh!!!! Muita hooonra!!! —
debocha, também em pé. — AS CASAS DAS PRIMAS TÃO CHEIAS DESSA HONRA TODA!!!
— JÁ LHE DISSE, RESPEITE-ME,
SENÃO NÃO RESPONDO POR MIM…
— Respeite-me, respeite-me… ui! —
remenda-a —, e desde quaaando uma rampeeeira como você merece respeito?
— Eu vou lhe quebrar a cara… —
ameaça a governanta, levantando os punhos.
— Pode vir — coloca-se também em
posição —, o que vem de baixo não me atinge.
— DONA LEONOOOR?!! — grita uma jovem, abrindo um sorriso largo. — É ela, gente! Vejam!
— Hein??? — é atraída pela
alegria da garota. — Quem é esta sirigaita? — sussurra a Matilde, que a ignora.
— Dona Leonor, não é??? —
questiona, toda efusiva, aproximando-se com mais duas meninas.
— Siiim! E quem são vocês? Se
forem bandiiidas, que se afastem, senão chamo a polícia. A cota de crime já
deu! Será que nem no hospiiital a gente pode ter paz?
— Somos suas fãs — responde, com
os dentes à mostra —, e assistimos a todas as suas lives… É muuuito massa!
— FÃS??? MI-MINHAS FÃS??? EEEEEEEEEEITA!!! Que povinho gentiiil, né, não, Matilde?
— A senhora pode nos dar um
autógrafo??? — pede outra garota, a menor do grupo, com o nariz grande, fino e
pontiagudo, dando-lhe o papel.
— Claaaro! Comiiigo não tem
frescuuura, é dar com uma mão e tomar com a outra.
— Tira uma foto comigo??? — pede
uma idosa, puxando de uma perna, ao se enfiar no meio da garotada, enquanto
masca uma folha de fumo. — A senhora é a melhor “infruenci” deste país. Sigo
todos seus “conseios”… E aquele de botar pozinho na comida pro véio parar de
virar a birita é tiro e queda… Santo remédio! Foi tão bom que o bicho partiu
dessa pra melhor.
— É MEEESMO??? ESSE POVO TÁ LOUCO OU FOI EU QUE MORRI???NÃO SOU A RITA LEE, MAS FAÇO O POVO RI!!! ATÉ RIMOU! — comemora, com os olhos brilhando, esquecendo-se mais uma vez da filha.
— A senhora é um exempro de
pessoa! — o hálito é muito forte, para o infortúnio de Leonor, que dá um pulo
para trás, comprimindo o nariz e revirando os olhos.
— Precisa de uma bala de hortelã,
hein, véééia, ops, quer dizer, dona… o bafo tá brabo!
— Eu já chupei duas agora mesmo,
mas hoje tá russo, tá pior que boca de bueiro … — não se ofende com o
comentário, pelo contrário, acha-o engraçado.
— Eu deixei de seguir a Anitta por conta da senhora — confessa a garota do meio, com um olhar no peixe e outro no gato —; quando vi sua live, lá no cemitério, com aquela velha feia, não pensei duas vezes, me inscrevi em seu canal e passei a curtir tudo o que fazia. A senhora é o máximo! — aplaude. — É minha “ídola”!
— E nossa também!!! — falam numa
só voz.
“Que show de horrores, meu
Deus!!!” — pensa a empregada, espantada com tamanha sandice.
— TÔ MAIS FA-MO-SA QUE A
ANITTA!!! GOSTOU DESSA, CANELA SECA??? — provoca. — VÊÊÊ SE APRENDE! E DE ONDE
VOCÊS SÃO??? LAGO SUL, LAGO NORTE…?
— Ceilândia! — respondem,
eufóricas.
— Tinha de ser! — Matilde morde
os lábios para conter a risada.
— Não tinha um bairriiinho
melhor??? Aff! Ídolo de pooobre ninguém merece!!! Aliás, o que vocês fazem
aqui??? Estão bem longe de casa… e da classe de vocês.
— A gente veio de ambulância, os hospital de lá tão tudo cheio — responde a idosa.
— Este lugaaar anda muito maaal
frequentado!!! — reclama, virando o rosto. — Aff! A gente trabalha taaanto na
vida para terminar dividindo espaço com a gentaaalha… Como riiico sofre neste
país!!! Hum!!!
— LEONOR FOREVER!!! — gritam de
alegria, para o espanto de Matilde, que não compreende o motivo delas a
idolatrarem, mesmo depois de Leonor as humilhar.
— EM INGLÊÊÊS??? — abre o
sorriso. — AÍ SIM! AGORA TÁ LEGAL! POBRE BILINGUE É OUTRA COISA!!! CURTI!!!
— Que zoeira é essa? — pergunta o
segurança, adentrando o recinto.
De volta ao apartamento…
— Graças a Deus, você voltou!
— Oh, paizinho, como eu sofri.
Espancavam-me todos os dias, veja — mostra-lhe as marcas do rosto e as do
acidente —, negavam-me água, comida e, ainda por cima…
— Filha, deixe, depois
conversamos, você está debilitada… tadinha!
— Pai… desculpe!
— Do quê, meu amor?
— Eles… bem, não tive como me
defender, até tentei, mas foi em vão… um deles, justamente o que foi preso, me
violou…
— Oh, meu Deus! Não fale mais nada, meu amor! O pai tá aqui! — sua vontade era a de invadir a delegacia e matar o infeliz que despetalou sua rosa mais preciosa.
— Eu… eu lutei muito… muito…
muito mesmo… mas ele era mais forte, pai… — finge um choro desesperado. — Foi
horrível! Quando me lembro daquele homem em cima de mim, me forçando a fazer
coisas, tenho vontade de vomitar…
— Oh, meu amor, acalme-se, agora
você está de volta… Acalme- se! — atônito, não sabe o que dizer para acalentar
o coração ferido da filha.
— Eu só pedia a Deus que me
mantivesse viva para reencontrar o senhor e a mamãe!!! — completa a encenação
com chave de ouro. — Era o meu único desejo!!!
— Oh, filha… — beija o rosto dela
com ternura —, não fique assim, o pai tá aqui!
— O cara tá preso, mas tenho medo
de que ele fuja e me ataque de novo, nem tô conseguindo dormir… — as lágrimas
escorrem.
— Eu o mato se chegar de novo
perto de você! — sua ira transcende a de um pai revoltado; é a de um homem
íntegro que não admite que mulher alguma sofra nas mãos de um covarde. — Deixe
comigo, filha, ele pagará por tudo que lhe fez. Nem que eu tenha de vender tudo
o que temos, mas aquele infeliz jamais sairá da cadeia.
— Senhor… — chama-lhe uma
enfermeira, à porta —, pode vir até aqui? É urgente!
Luara o acompanha com os olhos
curiosos.
— Sim! Em que posso ajudar?
Leonor havia entrado em atrito
com o segurança, que acionou a polícia, causando uma enorme confusão na sala de
espera.
— Aquela não tem jeito! — leva as
mãos à cabeça, voltando-se à garota. — O pai já volta, filha! Só um minuto.
Assim que se retira, a garota cai
em gargalhada ao recordar-se das reações dele diante de suas mentiras.
— Idiota! Acreditou em tudo o que eu disse! — caçoa do sofrimento do pai. — Como é fácil manipular as pessoas… Se eu soubesse, já teria feito isso há muito tempo, mas não, sempre boazinha, recatada, guardadinha como uma boneca, jamais viveria a vida como deveria ser. Estou cheia de tudo isso, vou é viver da agonia e do caos, cultuando o perigo… Que adrenalina! Que sensação gostosa de poder! — debocha. — Deixe-me ver como está em frente à delegacia, aquele tolo deve estar apavorado, chorando feito uma besta, exalando paixão por todos os poros… Hum! Não posso negar, por ser o primeiro macho que me fez ter prazer, até que foi bom!!! — levanta-se, puxando com tudo a agulha. — Quem quer essa droga?
— O que você disse, Luara? —
estranha Matilde, entrando no quarto, após ouvir parte do monólogo.
— Ma-Ma-til-de??? Eu… eu… não
estou bem! — volta a atuar.
— Me ajude, por favor, não estou
me aguentando!
A mulher não consegue se
aproximar, é como se houvesse uma barreira invisível entre elas.
— Me a-a-jude!!! — implora,
dissimulando, enquanto o sangue escorre pelo braço. — Está tudo virando, acho
que vou desmaiar.
“Não posso evitar o inevitável,
ainda que tenha feito uma promessa à minha neta; por isso, quando eu partir,
tenha-a por perto, seja a sua consciência, antes que o mundo a roube de nós.
Luara não é uma criatura capaz de se defender; frágil como é, ruirá à primeira
tempestade e isso não poderemos permitir.” — a governanta relembra- se da
conversa que teve com dona Beatriz.
— Matilde, me… me a-a-ajude!!! —
suplica, num choro comovente – se fosse verdadeiro.
“… É o seu anjo protetor, mas
lembre-se, os desafios que virão não serão páreos apenas para um anjo, é
necessário que você vá além dos próprios limites, vista-se de fera e ruja,
ruja, ruja o mais alto que puder, afastando dela todos aqueles que insistirem
em lhe fazer o mal. E serão muitos. EU SINTO!” — as palavras da idosa continuam
a atormentá-la.
— Po-por favor! — simula um
desmaio, mas a governanta não cede, sentindo que tudo aquilo era fruto de uma
encenação barata. Só não compreendia o motivo! Trauma do sequestro? Talvez! Mas
a ponto de mexer com sua personalidade? Não! Estava estranho demais, como se
esta fosse a verdadeira Luara, e não a outra, que sempre se mostrava contida,
de humor depressivo, sofrida, de poucos amigos. Seria possível ter se enganado
por tantos anos? O diamante que nunca deixou de ser uma pedra bruta? Como
acreditar nisso?
A noite é um manto negro que vaga
sobre a terra… Na delegacia…
— Qual o seu nome, senhorita? —
pergunta a delegada substituta, preparando-se para ouvir o relato.
— Sofia! Sofia Ricci.
— Quer que eu a acompanhe, filha? — pergunta o pai, um homem de boa aparência, em terno sob medida, no auge dos quarenta e poucos anos.
A garota confirma com a cabeça.
— E qual é sua denúncia?
— Aquele homem matou o filho do
diplomata.
— Que homem?
— O que apareceu na tevê, o tal
de Álvaro!
— Como assim? — especula a
autoridade. — Seja mais objetiva.
— Eu estava na Hedonê quando ele
atirou no meu amigo Nicholas.
— Tem certeza? — insiste, apesar
de já conhecer a história por meio da confissão de Solano, antes de morrer. — E
por que não procurou a polícia antes? Medo?
— Claro! O que a senhora acha? —
o homem intervém, ironizando. — Estamos falando de um bandido, que comete todo
tipo de crime, inclusive o de estupro. É óbvio que minha filha estava
amedrontada. Só faltava essa!
— Acalme-se, senhor, tenho de
fazer as perguntas…
— Tá, desculpe, mas é que esta
história do sequestro mexeu com nossa casta.
— A senhorita bebe, dona Sofia?
— Que tipo de pergunta é essa? —
o homem não deixa a filha responder. — Minha filha nunca pôs uma gota de álcool
na boca, entendeu? — revolta-se. — É uma santa em vida!
A garota se retrai.
— Essa gentalha não sabe o seu
lugar, como pode ofender um Ricci desse jeito? — comenta consigo mesmo,
enquanto acende um cigarro. — Amanhã hei de me queixar ao Secretário da
Segurança Pública do DF.
Não tão distante dali, isolado em
uma das celas, nos fundos da delegacia, com o corpo repleto de hematomas,
Álvaro geme de dor, deitado sobre o chão fétido e gelado. Não é o suficiente
para calar os outros criminosos, que revoltados com sua presença, ameaçam uma
rebelião.
— Aqui, vagabundo, cê cala a boca aí, porque se eu te cato, não sobra nada — berra um malandrinho de pouca idade, anêmico, com uma barbicha descolorida, trajando roupas escuras e largas. — Cê é macho só com as mina, né? Por que não vem aqui me estrupar? Vem, vem, que te esfolo inteirinho e ainda te faço de mulherzinha… Uhhh!!! Vai gemer de prazer!!! O que faiz com elas, farei o dobro com você!
— Dexa pra mim, Salsicha, tô que
tô, se eu pegar ele, vai ver até estrelas… — pede outro gatuno, de uns trinta e
poucos anos, obeso, com camiseta regata e bermuda até o joelho, com as barras
desfiadas.
— Me-me-me dei-dei-xem… —
implora, febril, com as vestes manchadas de sangue.
— Ele quer ficá sozinho,
Presuntinho! — ironiza Salsinha. — O troxa acha que tem alguma chance; é bom
que morra antes, se a gente te cata, te capa e te fode sem dó. Cara que ferra
uma fêmea não vive muito tempo, cê tá marcado, aonde for, sempre terá alguém na
sua cola, basta um simples deslize, pra um trabuco rasgar seu bucho.
— Dexa o cara, meu, não tá vendo
que ele tá mais prá lá do que pra cá; se bobear, dessa noite não passa… —
intervém um velhote, sentado no chão, numa cela um pouco mais distante,
apiedado com o estado do malandro.
— Óia o vovô, Salsicha… — coça a
virilha — … já deve ter passado o rodo no cara, pra tá defendendo ele… Só pode!
Mas fica sussa, parcero, nós não qué nada demais, só as tripa dele, o resto a
gente dexa procê.
— Oh, Presuntinho, cê é foda,
cara! — diz o velhote. — Não tá vendo o estado do bandido, meu? Tá com os zóio
revirando, babando feito cachorro louco… Deve tá com uma febre braba!
— Estruprador aqui não se cria,
véio! Cê qué o cara como sua fêmea, tá feito, mas antes, nóis também vai brincá
com ele… Hum! Nem acredito, vou tirá o atraso, fazê um rombo qui o cara vai
fica uns dia sem podê sentar, né, não, Salsinha?
— Certeza, malandro!
— Bem, se eu fosse cês dois,
ficava de boa, o cara é da Família… Vão encarar? — pergunta o velho.
— Esse daí? — estranha Salsicha.
— Isso é conversa!
— É nada! O coxinha me soprou que
ele tava com o Patrão, que também não terminou aqui, porque tinha um arsenal
capaz de destruir qualquer exército, tanto que da operação não sobrô nenhum
polícia pra contar história, a não ser o delegado cheio de querê. Continuem,
cês sabe quem é o Camaleão, se ele resolve resgatar o pilantra, passa fogo em
todos nóis. Quero ver o safado metido a machão enfrentar o protegido do
Português… Vai todo mundo de tobogã pro fogo do inferno antes da hora — alerta
o velhote.
Com a temperatura descontrolada, os músculos contraindo-se com força, lábios e dentes trepidando, saliva escorrendo em grande volume, Álvaro perde a consciência, atraindo a atenção dos criminosos, que silenciam diante de seu estado.
— Corram aqui!!! — grita o
velhote, batendo uma caneca de alumínio contra as barras de ferro da cela. —
EI, MEU!!! O CARA TÁ BATENDO AS BOTAS!!! ACUDAM!!!
Distante dali, na aeronave que os
conduzia de Brasília a Goiânia, Aurora pressente o mal que abraça o amado e se
desespera. Levanta- se da poltrona e se dirige ao banheiro, sendo acompanhada
pelos olhos curiosos de Luizinho. Fecha a porta, olha-se no espelho, está
enfraquecida, mas faria o que fosse necessário para convencê-lo a não abandonar
este mundo. Arfando, lava o rosto, o enxuga e ao levar as mãos às têmporas, é
interrompida por Luizinho, que bate à porta com força.
— O que há, homem? — pergunta,
bastante irritada, diante dele.
— Só queria ter a certeza de que
não estava invocando de novo o capeta; do jeito como as coisas estão, é bem
capaz deste avião cair e só você se salvar, sem um arranhão que seja, envolta a
um clarão de luz — debocha.
— Não brinque com isso, você não
sabe do que está falando — abre uma das mãos.
— Por quê? — segura-a pelo punho,
impedindo que ela levantasse o braço. — Quer me ver pelas costas, não é? Está
mesmo doida pelo bandido… Quem te viu, quem te vê, ciganinha de quinta! Era o
esterco de uma terra abandonada, criatura sem luz, rato do esgoto, que vivia no
meio do nada, lendo as mãos alheias para ganhar um troco, mas tudo isso mudou a
partir do momento que a conheci, não é? Dei-lhe roupas, joias, status, poder…
muito poder… poder para mudar o mundo… e o que fez? Abandona tudo em nome de um
sentimento que mal consegue decifrar, uma paixãozinha de adolescente, daquelas
que entorpece o juízo, a ponto de invocar todas as suas forças para salvar um
bandido sem futuro.
Os olhos dela enchem-se de
lágrimas.
— Tem coragem de me trair e logo
com um… um… bobalhão?
— continua. — Tem, Aurora?
Prefere regressar ao esgoto a ter um vida de luxo, como a que lhe ofertei?
— Não sou feliz! — afirma.
— E quem vive de felicidade, minha queridinha? Ninguém. Vocês, mulheres, se dizem espertas, quando, na verdade, não passam de putas assanhadas, ávidas por sexo e prazer.
— Você está me ofendendo…
— É mesmo? Eu deveria é matá-la,
assim me livraria do fardo que se tornou.
— E por que não tenta? — desafia.
— Vamos! Retire minha vida e apague toda a vergonha que sinto por ter me
entregue a você.
Ele a esbofeteia, para o sofrimento da mulher, que resiste ao choro.
— Na hora certa! E já lhe adianto, será uma morte lenta e muito dolorosa.
Cabisbaixo, regressa ao assento,
ao lado da janela, de onde se mantém em silêncio pelo resto da viagem. Aurora,
mesmo ameaçada, tranca-se de novo, mas os poderes lhe faltam, está muito
abalada, não há como invocar os oráculos, clamar pelos santos ciganos. Aflita,
entrega- se, enfim, às lágrimas, com a imagem do amado definhando diante dos
olhos, sem que nada pudesse fazer para ajudá-lo.
“Senhor, o plano saiu como o
combinado! O Patrão e a cigana estão desnorteados, literalmente sem chão; se
quer mesmo que eu os elimine, a hora é agora! Aguardo suas ordens!” — escreve
Egídio ao Português, após certificar-se de que não estava sendo vigiado.
_____________
1. Expressão de cunho pejorativo, utilizada popularmente no Brasil para se referir à imprensa sensacionalista. Isto é, veículos de comunicação buscam elevadas audiências e vendagem através da divulgação exagerada de fatos e acontecimentos.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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