Os policiais embrenham-se no
mato, que lhes cobre completamente o corpo, à procura do fugitivo, que aparenta
conhecer bem o lugar. Divididos em frentes, vasculham cada canto, numa correria
insana. Passam por árvores, defendem-se de insetos e cobras, tropeçam em
pedras, ladeiam carcaças de animais em putrefação - tapando o nariz com as mãos
-, escorregam na parte mais íngreme, em que se é possível ouvir o som de uma
cachoeira; levantam-se, tendo sob a cabeça, um sol de rachar. De repente um
disparo ao alto, é o aviso de que uma das equipes está bem próxima do meliante,
que à ponta de um despenhadeiro, analisa o lugar antes de pular. A queda d’água
é traiçoeira e dança efusiva sobre os rochedos, até encontrar paradeiro em
algum riacho distante. Se efetivasse o plano, as chances de sobrevivência
seriam mínimas.
— ACABOU!!! ACABOU!!! — constata
um policial, o primeiro a chegar, apontando-lhe a arma. — ENTREGUE-SE!!!
Com as algemas em mãos, avança
para detê-lo, sendo imediatamente surpreendido pela agilidade do bandido, que
num só golpe, aplica-lhe uma chave de braço, desarma-o e o mantém sob a mira de
uma calibre 22, retirada da cintura.
— O que está acontecendo aqui???
— perguntam outros três agentes, achegando-se.
— Solte-o, vagabundo! Vamos! —
grita um deles, com o bandido na mira, pressionando para que o libertasse; o
plano era arriscado, bastasse uma simples ponta solta, para que o marginal
eliminasse o homem da lei ou com ele se atirasse às pedras, que lhe chamavam,
como sereias que seduzem seus parceiros.
— Vo-vo-vocês não vão me prender!
Não vão, antes, levo junto este coxinha; tentem pra ver… Tentem! — engatilha.
— Ei, pare, ninguém vai te
machucar, estamos apenas fazendo nosso trabalho… Entenda! Uma garota está
desaparecida e precisamos que nos ajude a encontrá-la.
— Que garota? — berra, desconfiado. — Não sei de nada! Não sei!
— Solano, sabemos o que você fez, e estamos dispostos a ajudá- lo, desde que solte o nosso companheiro. Vamos! — um deles assume as negociações, e avança, devagar, em direção aos dois.
— Eu não sou a pessoa que
procuram… Não sei de nada! PARE! PARE AÍ JÁ! — determina, percebendo os
movimentos do oficial.
— Mais um passo e estouro a
cachola deste puto. Acham que estou brincando, né? — faz umas caretas
estranhas. — Para quem cheirou uma carreira há pouco, tudo isso aqui parece
mais coisa da minha cabeça… É! Vocês nem devem existir! — solta um riso
endemoniado.
— … mas não é!!! Veja, veja,
somos reais e se não cooperar, ficará difícil de ajudá-lo… Tenha calma, solte o
cara, se entregue, vai ser bom para todo mundo, Solano!
— Eu não sou este cara.
— Temos uma foto sua e o
depoimento do Eufrásio.
— Eufrásio? — o homem o
interrompe. — O que fez aquele idiota?
— Contou-nos tudo, não adianta
mais fugir, para onde quer que vá, alguém estará na sua cola; então, que se
entregue e enfrente um julgamento justo.
— Julgamento justo? Cês estão é
de brincadeira, estamos no Brasil, e quem sempre paga o pato são os mais
pobres, seus merdas.
Posicionado a uma boa distância,
o quarto policial se prepara para pôr fim à vida do marginal, mas desiste, após
o comando do negociador, que tenta manter a calma, dando mais um passo à
frente, desta vez, ignorado pelo meliante, que segura firme o pescoço do
agente, com a arma rente à sua nuca.
— Entregue-se! Vamos, cara,
prometo, não lhe faremos mal algum…
— Não confio em polícia! —
vozeia.
— Pois vou lhe dar uma
demonstração de confiança, baixarei minha arma e assim você também fará,
soltando nosso amigo…
— E aí vão fazer o quê comigo?
Vão me enjaular naquele camburão? Nunca! — repele a ideia. — Preciso de outra
carreira… não tô de boa, não tô!
— Quem lhe pagou para ajudar no
sequestro da filha dos Vaz? Vamos, cara, o tempo tá passando, logo vai
escurecer e as coisas vão ficar piores para você. Ande, tome coragem e proteja
sua pele, como fez Eufrásio, que o entregou de bandeja!
— Filho da puta! O que disse
aquele corno?
— Que você deu a linha da pipa aos malandros e apagou também o jovem Nicholas, filho do diplomata… — manipula os fatos a fim de que ele se renda.
— EU NÃO MATEI NINGUÉM!!! ELE
MENTE!!! FILHO DE UMA PORCA NO CIO!!! MISERÁVEL DOS INFERNOS!!!
— Então se renda e acabe com ele
na frente do juiz, porque o motorista está pagando de bom moço, jogando toda a
culpa em você; não bastasse, ainda disse que você pertence à quadrilha do
Patrão…
— QUÊ??? — o cara explode de
raiva.
— Isso é mentira!!! Vocês estão
inventando tudo isso, só pode, Eufrásio não sabia dessas coisas, nunca lhe
contei — acaba se entregando, para a satisfação do agente, que invade a mente
do criminoso, dando um verdadeiro nó.
— Então você faz parte mesmo da
quadrilha do… do… — arrisca, esperando uma resposta positiva.
— Vocês não sabem com quem estão
mexendo, o cara é foda, se quiser, aniquila todos vocês num só estalo; o único
que quis se rebelar, acabou de muleta, cuidando da Sol Nascente, porque o
Português, o grande chefão, impediu que o matassem… — sentindo os primeiros
sinais de abstinência, Solano acaba falando mais do que deveria. — Luizinho e o
Português não se bicam. Desde o assalto frustrado em Sousa, estão em pé de
guerra, e quem se puser entre eles, acabará num buraco, com a boca cheia de
bicho.
— E por que você entrou nessa,
cara? Cê parece gente boa, diferente de Eufrásio, que fugiu da reta, pondo toda
a culpa sobre seus ombros.
— Aquele puto me paga, deixe ele
comigo… — um fio de baba desce de sua boca — … eu sempre fui uma boa pessoa,
maluco, e só entrei nessa depois que o último toró derrubou meu barraco e
destruiu meus equipamentos de filmagem. De uma hora para outra fiquei sem casa,
sem trabalho, sem o que comer, restando-me apegar às mãos do patrão, que bem
generoso, pagou-me para desligar o sistema de câmeras da Hedonê, facilitar a
entrada do cara, além de lhes entregar uma cópia da planta do lugar, porque
tinham medo de que, diante de tanta gente, a fuga fosse dificultada. Mas
ninguém esperava que o malandro fosse matar o filho do diplomata…
— Então não foi você que matou o
Nicholas?
— PÔ, VOCÊ TÁ ME ENCHENDO, MEU;
JÁ DISSE QUE NÃO! FOI O LOUCO DO ÁLVARO…
— ÁLVARO???
— É, um bandidinho da Família,
dado a galanteador, pelo menos dizem…
— … e onde está este Álvaro???
— Com o patrão!
— E onde o encontro?
— O PATRÃO?
À surdina, um dos policiais dá
alguns passos para trás, e sob a proteção do matagal, saca-se de um celular, de
onde escreve:
“Foge daí, Solano deu com a
língua nos dentes”.
Egídio recebe a mensagem e a
repassa a Luizinho, que encurralado, ordena que se munam do arsenal que se
encontra dentro de caixas, num quartinho, na lavanderia, pois iriam para cima
dos policiais, que agora batiam à sua porta, mas antes, lhes agraciariam com o
corpo da moleca. Isso mesmo, se ele não podia levar o dinheiro; que levassem o
corpo dela, cheio de furos, escorrendo o sangue que lhe corria às veias pela
última vez. E, para se vingar do bandido galanteador, que ousou mexer com os
sentimentos mais profundos de seu amuleto, atribuía-lhe esta última tarefa.
Álvaro seria o algoz de Luara. Que fim doloroso para um tolo apaixonado!
— Pegue a arma e vá lá dar um fim
àquela puta!
— Senhor, vamos, daqui a pouco
isso aqui terá tira saindo pelo ladrão — berra Egídio, atraindo a atenção do
homem.
— Eu quero a garota morta,
entendeu?
Aurora não tem forças para
intervir; está exausta, caída ao chão, com a pele gélida e empalidecida, como
se tivesse visitado a mansão dos mortos. O poder que invocou para proteger o
amado era mais forte do que podia resistir e, sua vida, agora, mostrava-se
frágil como os fios que tecem uma teia de aranha. Mal conseguia respirar e
Álvaro, o pivô de todo aquele cenário místico, era o único que lhe oferecia as
mãos, completamente comovido, com os olhos perdidos.
— Senhora, não parta… — pede,
engasgando-se com as palavras… — Não parta!
Com ela nos braços, procura um
lugar seguro onde possa colocá-la; como não há, sobe até o outro andar,
enquanto Luizinho, aos pés de um tanque, dentro do quartinho guardado por uma
porta de aço, desembala o gigantesco armamento, repleto de granadas, pistolas
9mm, fuzis calibre 5,56, carregadores e munições, além de metralhadoras
surrupiadas do próprio Exército Brasileiro.
Colocada sobre a cama com todo o carinho, Aurora dá um sorrisinho tímido como agradecimento.
— Por que a senhora fez aquilo por mim? — pergunta o homem, assustado por vê-la naquele estado, temendo o pior. — Eu não merecia. O que estava em xeque não era o merecimento, mas o que as pessoas são capazes de fazer por aqueles a quem entregam suas almas. Perdem o juízo, se necessário, mas não se arrependem, porque morrer por quem se ama é uma dádiva, não um castigo, como pregam os dramas populares. E ela sabia, um dia mostraria toda a sua essência, só não sabia a quem, até conhecê-lo. De uma coisa tinha certeza, estava feliz, com uma sensação incrível de liberdade. E que liberdade! Como nunca havia sentido!
— Por favor, não me deixe,
senhora! — implora o homem, sentado ao seu lado, enquanto lhe acaricia a
fronte. — O que será de… de… mim?
Foi esta a última pergunta que
ela fez ao avô, antes que ele deixasse este mundo. Aurora sempre foi uma boa
menina, daquelas bem sapecas, que escondia a boneca da irmã, pintava o rosto
com as maquiagens da avó, dançava no meio do bando com as pulseiras e os
colares da mãe, imitava o jeito grosseiro do pai comer, numa alegria que
encantava. Não havia quem não se envolvesse com seus gracejos.
E seus poderes a acompanhavam,
sempre tímidos, até que, ao ver um passarinho cair, após ser atingido por uma
estilingada, entrou em prantos e, com a ajuda do avô, invadiu um matagal à sua
procura e só parou quando o encontrou. E o que fez ao pegá-lo nas mãos? Correu
os dedos pela ferida do coitado, que tinha uma das asas completamente
destruída. Fechou os olhos e orou… orou… orou tanto que uma claridade irrompeu
do centro da terra e a contornou, como há pouco, e de suas mãos saltou uma
forte energia, com a cor do fogo, mas que não queimava. E a olhos nus, o
machucado começou a se fechar, o bichinho ganhou força e passou a piar, para o
espanto do homem, que estendeu as mãos aos céus, dizendo que sua neta era uma
mulher abençoada pelos deuses. Recuperado, bateu as asas e voou e, a certa
altura, parou, fixou-se nela, como se estivesse sorrindo e, antes da partida,
cantou, para que o mundo soubesse que ali se encontrava uma serva de Santa Sara
Kali.
Temendo as maldades do mundo, o avô a ensinou a domar o que guardava dentro de si; nunca deveria ir além dos próprios limites, temia que, numa dessas, como os grãos que atravessam a ampulheta, o tempo se acelerasse e levasse para sempre o lindo sorriso que exibia. Disse ainda, como líder do povo, que um cigano deve sempre ouvir seu coração, praticar o bem, prezar pelos mais próximos, cultivar suas raízes, elevar o pensamento à mãe natureza e jamais se abdicar de ajudar o próximo. Por mais preconceito que sofressem da sociedade, não lhes competia revidar o tapa que recebiam. Estava nas escrituras. E assim os tempos passaram e, na entrada da adolescência, perdera o seu esteio.
Ficou reclusa à tenda por dias,
onde chorou todas as dores do mundo, recebendo o afago dos familiares. A
tristeza havia agasalhado seu coração. E esta dor perdurou até o dia em que a
brisa, oriunda de alguma fresta do palácio dos anjos, a acordou em plena noite
e a pegou pelas mãos, levando-a até o lugar onde curou o passarinho. Lá
chegando, sentiu um arrepio lhe correr a espinha e quando se virou, a surpresa.
O avô estava diante de si, envolto a uma luzerna, que abria fendas no meio da
escuridão, em trajes branquinhos, tão branquinhos, que lembravam a neve e,
antes que ela pudesse cobrá-lo de algo, ele rebateu:
— É por isso que choras, minha
menina? — mostra-lhe o círculo. — Não vês? Estou feliz! E quero vê-la assim
também a partir de agora… Não deves mais chorar! A terra está encharcada e, se
persistir, os brotos não vingarão. Lembre-se, viemos da natureza e a ela
seremos devolvidos… É o maravilhoso ciclo da vida! Então arrumes o corpo,
levantes a cabeça e sorrias… O destino te espera! Vá! E faças de teu dom, o teu
guia.
Antes que ela pudesse perguntar
alguma coisa, o homem desapareceu, sem deixar vestígios. E desde então, ela fez
o que o avô pediu, até que, levada pela cobiça, caiu nos braços de Luizinho. Se
pudesse regredir os ponteiros do relógio…, mas uma vez escrito, não havia como
se apagar; o que aconteceu está registrado no livro da Vida. O que virá, só
conheceremos com o tempo, quando nosso autor puser no papel… Somos as
criaturas, não o Criador, a quem devemos venerar pela vida que nos concede!
— Senhora… — o bandido chora, abraçando-a, ao perceber que partia. E sem se dar conta do perigo, beija sutilmente seus lábios, retribuindo-lhe todo o carinho. E antes que pudesse ser flagrado, deixa o local.
E a flor que definhava, após o beijo, se agita… Com o coração acelerado, o pulso se normaliza, a tez resgata o brilho e, assim como o passarinho, agora ela canta, completamente recuperada. Obra do amor? Alguns diriam que sim; outros que não. Talvez uma peça do acaso!
Ao vê-lo descer as escadarias,
Luizinho avança sobre o bandido, perguntando:
— ONDE VOCÊ ESTAVA, SEU
LAZARENTO? JÁ MATOU
A GAROTA, COMO ORDENEI? — corre
os olhos pelo lugar e nota a ausência da cigana. — E CADÊ AURORA? O QUE FEZ COM
ELA?
— Nada, senhor! Eu a levei até o
quarto de cima. Ela estava muito mal! Até achei que não fosse resistir.
— Você avariou meu amuleto, seu
desgraçado… Eu vou é lhe passar fogo!
— Chega desta história! —
determina a mulher, no alto da escadaria, plenamente restabelecida, para a
alegria de Álvaro, que deixa escapar um suspiro de felicidade. — Se continuar
nesta guerrinha, não irá além desta porta. A polícia o aguarda e fará o que for
necessário para vê-lo enjaulado.
— É, você tem razão! — coça a
cabeça de preocupação. — Mas o que fazer? O infiltrado me disse que a casa
caiu… Como vamos fugir?
— Como sempre fizemos,
enfrentando…
— E quanto a você, dê um fim logo à pirralha — entrega-lhe o fuzil.
— Deixe-a, meu querido! Que
diferença faz? — Aurora intercede. “A vingança não tem preço, ele danificou meu
amuleto, chegou
a hora de eu fazer o mesmo com o
dele, se é que a menina já ocupa tal posição no coração do infeliz… Com o tempo
saberemos!” — pensa o patrão, decidido.
— Eu não posso matá-la, senhor.
— E por quê? Sente algo por ela,
não é?
— Claro que sente! — confirma
Egídio, em tom de deboche, entrando na sala.
— Cale a boca, senão… — ameaça-o
com o olhar afiado, elevando a voz.
— Senão o quê??? — estranha
Luizinho. — Tem alguma coisa que eu ainda não saiba?
— Não é nada, senhor! — responde
o bandido bonzinho.
— Então faça o que eu ordenei: a vida dela pela sua! — sentencia. — Vá!
Com a arma nas mãos, Álvaro se encaminha à escadaria e, antes de descê-la, reencontra a cigana, que o observa sem poder fazer nada; e mesmo que quisesse, não faria. Luara era sua oponente e, com ela fora do caminho, o homem que agora lhe suplica ajuda com os olhos grandes e arregalados, seria apenas seu.
A porta se abre, Luara levanta a
cabeça e se depara com o rapaz, a alguns metros, com o rosto cortado por
lágrimas, com um potente armamento apontado para ela. E, diferentemente do que
imaginava, a garota não reage, apenas o encara com uma frieza espinhosa, como
se entrasse na mente dele e fizesse morada.
— Me desculpe, não faço isso por
querer…
Ela mexe a cabeça sinalizando
para que retire sua mordaça, e assim ele o faz.
— Você vai mesmo me matar? Pois
estou pronta! — diz, numa voz aveludada, como se fosse outra pessoa.
— Como assim? Você não pode estar
falando sério! — assusta-se.
— Claro que estou! Mas antes de
me despachar, vamos curtir um pouco, eu adoraria beijar esta sua boca gostosa.
Venha! Estou em brasa
— seus olhos crescem à medida que apimenta ainda mais a conversa —, nunca desejei tanto um homem como você. Venha, caralho, ou vai recusar este banquete?
De volta ao matagal…
— O Patrão??? — gargalha em meio
à saliva que agora desce pelo pescoço. — Ele está em todo lugar, até entre
vocês.
— Entre nós? Como assim? — não
entende o negociador.
— Pergunte para ele… — responde
Solano, apontando para o policial que estava a alguns metros atrás, dentro do
matagal, com apenas parte da cabeça visível, de onde repassava as informações a
Luizinho.
Todos se viram; é quando o
inesperado acontece. Uma bala solta-se do cano do traidor e atinge a cabeça do
bandido, que dá um pulo para trás, caindo no despenhadeiro, levando junto a
vítima, que não consegue se desvencilhar.
— O QUE VOCÊ FEZ??? VOCÊ MATOU SOLANO E O NOSSO AGENTE… POR QUÊ??? — berra o negociador, com as mãos à cabeça, vendo-os sem vida entre as pedras. POR QUE FEZ ISSO??? POR QUÊ??? — recua, indo em sua direção. — ESTAVA TUDO SOB CONTROLE!
— Eu pensei que ele iria… —
procura uma desculpa convincente.
— FALE A VERDADE, DO QUE NÃO
SABEMOS? FALE!
— Eu… eu…
— PRENDA-O! — ordena o negociador
ao outro oficial.
Vendo-se acuado, o traidor não
pensa duas vezes e dispara contra a própria cabeça.
— POOOORA!!! O CARA SE MATOU!!!
QUE INFERNO!!!
O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI??? —
indaga ao parceiro, que retira o celular das mãos do homem, e após a leitura de
algumas mensagens, chega à conclusão de que ele era um desertor.
— QUEM DIRIA!!! — impressiona-se
o negociador. — Temos de avisar o delegado! É emboscada das brabas.
Regressando à mansão de Luizinho…
— Cadê seu patrão? Estou aqui há
um bom tempo, preciso falar com ele — cobra Enrico ao segurança, ainda na
calçada, ao lado da guarita.
— Ele… ele já vem, senhor… muito
trabalho! Pediu mais alguns minutinhos!
— Olha lá o delegado gostosão,
dona Leonor — alerta Cleide, no banco de trás do carro.
— É meeesmo, Melancia! Será que
ele errou nossa casa???
Moramos na rua de cima…
— Ele deve estar fazendo algum
serviço, mulher.
— Procurar nossa filhiiinha,
nada, né? Mas ficar de siricutico com alguma sirigaita, disso ele gosta. Aliás,
meu fiiilho, quem mora ali??? — aponta para a casa. — Serão os Roussef, os
Cardoso ou os Lira??? Hum! Não sei! Mas não deve ser gente de nosso cííírculo
de amizade, senão já teriam nos convidado para o chá das cinco.
— Chá??? Quem bebe isso é
doente!!! Credo, dá até uma coisa ruim no corpo!!! Prefiro uma breja ao som de
um pagode… Muito mais animado!!!
— Caaale a boca, Cleeeide!!! Você
não entende naaada de aristocracia.
— Mas entendo de coisa boa —
rebate.
— Como o quêêê? Favelado???
Melhor, churrasquiiinho de gato??? — ri com vontade. — Vocês, pobres, me
divertem! Ei, espere, Melanciiia… — abre o vidro do carro — … uhuuu,
“delegaaato”, digo, delegaaado!!! Sou eu, a Leonooorrrrr… como está essa
fooorça??? E que fooorça… “Benzadeus”!!! — dá uns tremeliques, sendo
prontamente repreendida pelo marido.
— Ah, não, seu Martim com as duas loucas. Ninguém merece! — faz um gesto tímido com a cabeça. — Será que estão chegando agora? É, o general dirige mesmo mal.
— Imagina um desses no meu
barraco, dona Leonor? Tô até suando de nervoso. Nem o telhado resistiria com o
terremoto.
— Olha o respeito! — adverte-lhe
Martim.
— Deeeixe ela, Melancia! Pobre é
tudo igual, sonha com o que não pode consumir.
— E por que não? — estranha.
— Olhe para vocêêê, criatuuura!!!
Gorda como a Jojo Todynho, feia como o Marquito, acha que um homem daqueles lhe
daria trela???
— esnoba. — Enxergue-se!!! E se
contente com os restos.
“Pelo menos não sou doida de
pedra” — pensa Cleide, enfezada.
— Mulheeer! O que é isso?
Gordofobia, não! Dê-se ao respeito!
— Eu não estou daaando mais nada,
Martim, quanto mais ao respeito. Hum! — volta-se para a empregada. — E tem
mais, Cleeeide, com esse perfume vagabundo que está usando, não atrairá nem as
moscas, quem dirá homens daquele calibre — vinga-se da última ofensa da
empregada. — A fedentina está cruel, se bobear, teremos de mandar desinfectar o
carro. Aff!
— Credo, dona Leonor, a senhora
anda pegando pesado comigo, tô até magoada.
— Azar o seu! Quem manda mexer
com quem não pooode!
— A senhora diz isso a quem está
lhe preparando uma grande homenagem?
— HO-HOMENAGEM??? QUE TIPO DE
HOMENAGEM???
— Deixe pra lá, estou sem clima…
— Dou-lhe mais um aumento…
— O clima voltou, que estranho!
— Seeei! — a mulher vira a boca,
antenando-se às espertezas da empregada. — Agora que começou, termine.
— O povo de Ceilândia quer dar
seu nome à nova creche que será inaugurada daqui a algumas semanas, vai ser um
festão daqueles, com a presença de um bando de artistas, inclusive - segure o
coração -, do Chitãozinho e Xororó. E eles disseram que só cantam, se a senhora
subir no palco com eles… O povo foi ao delírio! De um lado a musa deles, do
outro, artistas que cantam o AMOR! Ui! Será um “showzaço”! Tô que nem me
aguento de tanto esperar.
— Mas…, mas… só se homenageia um lugar com o nome de uma pessoa morta, né, não, Melancia? E eu tô mais viva que suas lorotas, Cleeeide!
— Pois lhe juro, que morram meus
filhos se eu estiver mentindo…
— Você não tem filhos…
— Modo de dizer, dona Leonor — a
enxerida estranha a astúcia da mulher, como se ela tivesse acordado para seus
golpes —, o povo fez uma enquete e seu nome ganhou disparado.
— E quem ficou em segundo? —
pergunta Martim, rindo-se.
— O deputado Tiririca — responde,
tentando conter o riso.
— EEEU GANHEI DO TIRIRIIICA??? QUE HORROOOOR!!! Esse paííís virou mesmo um ciiirco!!! — constata.
— Mas não gostei muito dos
cantores, prefiro o Daniel, aí sim, o bicho ia pegar, era bem capaz de eu
deixar este velho gagá só para estar ao lado daqueeele homem uma úúúnica noite.
— Sangue de Jesus tem poder!
— Caaale a boca, Melancia!!!
Ninguém tá falando de igreja.
— A falta de respeito é gritante!
Ainda me separo de você, Leonor! — rebate o general.
— E quem disse que ele não
estará? O Daniel também virá! — completa a fofoqueira.
— DANIEEEL, AQUIII??? HUUURRA!!!
AGORA GOSTEI!!! TÔ LOUCA PARA BOTAR UNS GALHOS NESSE HOMEM, CLARO, COM TODO
RESPEITO, NÉ??? PORQUE SOU UMA MULHER DE BEM, RECATADA E DO LAR!!!
— E digo mais, ele quer cantar
com a senhora aquela canção que o povão adora.
— QUAL??? QUAL??? QUAL, MINHA
FILHA??? TÔ ATÉ ME COÇANDO!!! FALE LOGO!!!
— “Adoro amar você”!!!
— EEEEEEEEEEEEEEEITA!!!!!!!!
ADORO AMAR VOCÊ???
Pois é pra já, que comecem os
ensaios: “Ah, eu adoro amar você (amar você); Como eu te quero, eu jamais quis;
Você me faz sonhar, me faz realizar; Me faz crescer, me faz feliz…” — a
desafinação machuca os ouvidos, mas Cleide, dissimulada, aplaude, fazendo a
mulher sentir-se uma estrela.
Enquanto isso…
Enrico corre o portão da mansão,
tentando ver do lado de dentro, quando avista, por uma fresta, o carro preto,
levando a mão ao coldre.
— Bingo! Aí está a prova!
O celular vibra com a chegada de uma mensagem. Ao ler, já não lhe restam mais dúvidas, a garota se encontra na casa. É preciso quebrar o cativeiro e salvá-la, para isso, seria necessário reforços e todas as cautelas de praxe, mas o que ele não espera é que, do lado de dentro, está Luizinho, com armamento pesado, à sua espera. Um banho de sangue seria derramado, maculando para sempre a história de uma Brasília desmiolada.
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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