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A Deusa Bandida: Capítulo 15

Novela de Carlos Mota
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A DEUSA BANDIDA - CAPÍTULO 15

Luara estava de volta ao quartinho, com pés e mãos amarrados e boca amordaçada. Mas alguma coisa havia mudado nela. Antes frágil, chorosa e doce como o mel retirado dos favos que formam o interior das colmeias; agora, forte, decidida e com o ódio evidente nos olhos, que correm o lugar, à procura de algo que pudesse facilitar sua fuga. E, diferente de outrora, não seria apenas para reencontrar os pais, os amigos e reaver sua vida monótona; mas para ter um acerto de contas com todos que a fazem tanto sofrer, principalmente aquela cigana, que em um ato de plena insanidade, deu-lhe vários golpes à face, deixando marcas profundas ao redor dos olhos, do nariz, da sobrancelha, além de cortes nos lábios, alguns mais profundos, outros mais superficiais, mas todos muito doloridos.

A pobre menina rica, filha de uma elite narcisista, que se nutre do suor dos mais frágeis, havia morrido ao receber o primeiro tapa. Em seu lugar, fisgada de um enorme buraco negro aberto nas paredes de seu recôndito, nascia uma outra, de uma perversidade que ameaçaria o trono de Éris¹; sedutora e suculenta como os brotos de Afrodite² semeados em campos subjugados por pragas; com o assombroso poder de uma Empusa³, que nas noites mais tenebrosas, deixava o Mundo Subterrâneo, metamorfoseava-se em uma jovem e bela garota, atraindo suas vítimas e delas se alimentando.

E na selva dos homens, caçaria um a um com a mesma expertise de Diana, despertando quantas guerras fossem necessárias, até que sua última lágrima fosse honrada. Estava decidida, restava-lhe apenas escapar do cativeiro.

No andar de cima, sentado a uma poltrona na luxuosa sala de estar, Luizinho cobrava explicações dos subalternos:

— Uma garota tola como aquela foi capaz de lhe furtar o punhal, cortar as amarras e lhe ferir o pescoço? Então estamos diante de uma heroína das telas do cinema, dessas que ganham superpoderes de objetos misteriosos, voam de um lado para o outro, salvando jovens, adultos e velhos, de bobalhões como vocês? É isso mesmo?

— Heroína eu não sei, mas que a garota é valente e fez o que o senhor disse, ah, isso fez! — responde Álvaro, cabisbaixo, numa voz pouco convincente.

— Isso é verdade? — pergunta a Egídio, que está estacado, alguns passos atrás.

O bandido reluta em confirmar, mas ameaçado pelos olhos grandes e afoitos do companheiro, cede. Se não fizesse o que Álvaro ordenava, o patrão conheceria seus planos junto ao Português e isso resultaria, sem dúvida alguma, em sua morte. Uma morte que fazia questão de adiar o tempo que fosse possível, até porque, antes, abocanharia as operações hoje lideradas por Luizinho.

— Alguma coisa aqui está errada, não pode ser… — dá um tapa na mesinha de centro — … vocês me acham burros assim? ME ACHAM??? — brada, levantando-se.

— Foi o que aconteceu, senhor! — Álvaro reafirma.

— Incrível!!! — aplaude com um sarcasmo de arrepiar. — Estamos num circo onde eu deva ser o palhaço, não é mesmo? Olhem para mim, tenham coragem e respondam. Só faltam a pipoca e o refrigerante, porque o público são vocês. E o que querem que eu faça? Dê cambalhotas, conte uma anedota, faça barulhos engraçados, desça as calças e sorria…? — parte para o enfrentamento. — IMBECIS!!! Como ousam desafiar minha inteligência? Pois vou lhes mostrar do que sou capaz! — saca uma arma e aponta primeiro para Egídio. — Me diga a verdade, caralho, senão vou te furar, vamos!

O malandro encara Álvaro com toda a fúria do mundo, depois o patrão, abaixa a cabeça, optando pelo silêncio.

— Senhor, foi isso que aconteceu! — adianta-se Álvaro, atraindo a atenção do homem, que lhe tem na mira.

— Responda, miserável! Não tem medo de morrer? — aproxima o cano da testa dele. — Você está achando que não tenho coragem? Esqueceu-se de quem sou? Se dizem a verdade, por que se encontram tão sujos, como se tivessem saído de uma rinha de galos?

— A menina é mesmo um demônio — afirma a cigana, entrando na sala. — E se eu fosse você, meu querido, abaixaria esta arma, porque estes homens falam a verdade — salva novamente o amado, mesmo sabendo que ambos mentiam.

— Você não quer que eu acredite no que eles disseram, não é?

— E por que não? — encara-o com uma espantosa seriedade. — Ela é o próprio capeta. Temos de nos desfazer da infeliz, antes que o mal que carrega no coração nos sugue para o buraco negro da existência.

Os capangas estranham as palavras da mulher, assim como o patrão, que destemperado, esbraveja:

— AQUELA GAROTA FRANZINA??? VOCÊ TÁ LOUCA, MULHER???

— Ela é perigosa, só eu sei… Perto dela, você é um “gatinho sem garra”.

— PORRA,  DO  QUE  ESTAMOS  FALANDO  AQUI???

— num ato de desvario, dispara contra o telhado por duas ou três vezes, o barulho é captado por Luara e pelos vizinhos mais próximos, principalmente por Matilde, que se apavora, acendendo uma vela, com a imagem da garota à sua mente, enquanto comunica a polícia.

— VOCÊ ACHA QUE CHEGUEI AONDE ESTOU PORQUE

SOU BONITINHO, FOFINHA? — continua o patrão. — NÃO! SE AQUI ESTOU, É PORQUE SEI MUITO BEM INTERPRETAR AS AÇÕES QUE PODEM PÔR EM RISCO AS OPERAÇÕES CONDUZIDAS PELA FAMÍLIA, ENTÃO, DEIXE DE RODEIOS, E ME DIGA LOGO A VERDADE!!! VAAAMOS!!! — puxa a mulher pelo vestido, prensando-a à parede, com a pistola ao queixo, de onde exige uma resposta à altura. — VAAAMOS, ABRA ESSA BOCA, MEU AMULETO, E MOSTRE QUE NÃO ESTÁ AVARIADO.

Uma lágrima despenca dos olhos da cigana.

— Deixe-a, senhor — pede Álvaro, apiedado, para a surpresa de Aurora – que se enche de esperança, apesar das cartas mostrarem o contrário –, e ira do Camaleão, em cujo rosto, ruborizado, está o ciúme em seu último estágio.

— QUER MORRER NO LUGAR DELA??? — vira-se para o bandido.

— Não faça isso!!! — suplica a cigana, percebendo que Luizinho está com o juízo abalado.

— ESTÁ COM DÓ DESTE BOSTA??? É ISSO MESMO??? — os olhos o fuzilam.

— Pare, senhor… — implora o bandido.

— AGORA ESTÁ COM MEDO??? QUEM PENSA QUE É PARA ME AFRONTAR??? RESPONDA!!!

— Eu… eu… eu não sou nada… — humilha-se.

— Isso mesmo! Um pobre feito você, retirado do lixo, que come os nossos restos e nos serve como um criado, não é nada, NADA… Se eu lhe apagar, ninguém notará, tal a sua insignificância.

— Por favor, Luiz! — insiste a mulher, desesperando-se, ao perceber que ele só pararia quando seu amado caísse morto.

— Uma bala basta para eu lhe mandar para o inferno, de onde jamais deveria ter saído — prepara-se para atirar.

— Mande lembranças para a puta da Elisa, seu viado! — sussurra Egídio, em êxtase, com a possibilidade de ver o oponente rendido para sempre.

Enquanto isso, na delegacia…

— As ligações não param, senhor, dizem que está havendo um tiroteio em uma das mansões do Lago Sul — informa Clóvis, entregando-lhe um papel escrito à mão.

— Ma-ma-mas este endereço é próximo da mansão dos Vaz. Que estranho! — vem à sua mente a localização de onde originou-se a ligação que recebera do Patrão. — Não é possível! Será?

— No que está pensando, doutor? — indaga, retirando outra rosquinha do pacote, como se nada estivesse acontecendo.

— Acho que estamos a um passo de pegar o “rato” — algo dentro dele afirmava que o jogo estava nos últimos lances e aquele que fosse capaz de uma manobra eficiente, que encurralasse o adversário, seria o grande vencedor.

— O senhor comprou veneno? Graças a Deus! — comemora. — Do jeito como se encontra a delegacia, daqui a pouco seremos expulsos; se não sabe, lá nos fundos a coisa tá perdida, dia desses, um dos roedores, carregando uma cadeira giratória, chegou a me cumprimentar, acredita? — diz o oficial, não acompanhando o raciocínio do chefe.

— Aff! Outra “Leonor” ninguém merece! — indigna-se o delegado, enquanto Clóvis degusta outra rosquinha, desta vez, acompanhado de uma xícara de capuccino. — Esqueça-se do que eu disse! Eu… eu… ah, deixe pra lá… venha comigo, vamos ver o que está acontecendo na terra dos milionários, assim aproveito para pôr à prova o meu faro. Se eu estiver certo, logo a garota será devolvida aos Vaz e o tal patrão estará atrás das grades. Aliás, recebeu alguma notícia de Brazlândia? Conseguiram pegar o Solano?

Não muito distante dali…

— Dirija este carro direeeito, Melanciiia! — reclama Leonor. — Tá dando tanto soquiiinho que tô me sentindo num ringue. Aff!

— Concordo com a senhora, tô até com o bucho revirando — comenta a enxerida. — O senhor não comprou a carteira, né?

— Olha o respeito, menina. Para o seu governo, quando tirei minha carta, fui um dos poucos a alcançar dez no exame prático.

— QUE HORROOOR!!! Além de feio é mentiroooso!!! — ri.

— Cê é tão ruim, mais tão ruiiim no volante, que da última vez que andamos juntos, bateu em dois carros e ralou outros três.

— Se estão tão descontentes, por que não vão de ônibus? — revida o homem.

— O QUÊÊÊ??? — sente-se ofendida. — E eu sou mulheeer para andar de ônibus, meu filho? Repare bem minha cútis… Tá um brilho só! E se eu subo num desses “cata-osso”, é bem capaz de pegar sarna, é tanta gente suja, que dá até nojo. Aff!

— Oh, dona Leonor, pegue leve, eu uso busão! — reclama a empregada.

— Oh, coitada! Aí o problema é seu, minha filha, quem manda ser pobre — desdenha.

— Mas a senhora comete um grande erro…

— EEErro??? Que erro???

— O povo que a ama só anda de busão, se a senhora sobe num deles, será um carnaval daqueles, é bem capaz até de sair no Jornal Nacional. Imagine o gatão do Bonner, com aquela gravata de bolinha bem passada, sorrindo que nem bobo, dizendo aos quatro cantos do país: “Dona Leonor, a princesa de Brasília, dá um exemplo à sociedade, se mistura com os mais pobres e é aclamada a rainha da ralé, causando inveja até mesmo nos políticos mais antigos da capital”.

— Uuuhhh!!! Daria saaamba!!! Gosteeei!!! — os olhos da mulher cintilam-se de alegria.

— E eu lá, transmitindo tudo, para o mundo todo… O que teriam de dondocas atrás da senhora para pedir conselhos — delira —, ou pensa que os Sarney, os Silva e mesmo os Bolsonaro não iriam se roer de inveja? Se bobear, logo seria anunciada a mais nova candidata à presidência da República. Imagine a senhora presidenta, dona Leonor… Que orguuulho!

— PRE-SI-DEEEN-TA???  EEEU???    abana-se,  ao se imaginar subindo a rampa do Planalto. — PAAARE O CAARRO, MELANCIIIA!!! EU VOOOU É DE BUSÃO!!!

— A senhora vai ver como é bom… é rala coxa de um lado, passa mão de outro, grunhido aqui, gemido ali, furto acolá… Não tem coisa melhor!

— PAREM!!! — grita o homem, atordoado com a conversa das duas. — Vocês me deixam looouco!!!

— O senhor também assiste o Chaves? Eu não perco um dia! E o povo de Ceilândia? Adora! Até pensaram em erguer uma estátua do Seu Madruga, porque, convenhamos, ô homem honesto da porra, né, não, dona Leonor? — continua a cozinheira, completamente fora da casinha.

O pneu do carro fura…

— O que está acontecendo, Melanciiia?

— Não está vendo?

— O pneu furooou! E quem vai trocááá-lo?

— Não é você que iria de busão? — escarnece.

— Mudei de ideeeia!!!

— SEI! HUM! EU VOU TROCAR! — o homem fecha a cara.

— VO-VOCÊ??? — gargalha até quase perder o fôlego. — O bicho é burro demais, mal sabe dirigir, quanto mais trocar um pneu. Eeessa eu pago pra veeer!!!

— Eu vou abrir uma live — assanha-se a empregada, sendo imediatamente repreendia pelo patrão, que a ameaça de demissão.

— Mas o senhor também vai me recontratar e com aumento de salário, né? Sabe como é, tô precisando! — dá um sorrisinho amarelo.

— Me dê isso aqui!!! — o homem, de súbito, retira-lhe o celular.

— Oh, Seu Martim, isso não é certo! — irrita-se.

— Tome o meu, minha fiiilha!!! — cochicha-lhe a dondoca, dando uma piscadela. — Tudo por um cliiique!!!

Todos descem. O homem, desajeitado, agarra-se à roda do carro e tenta tirá-la, esquecendo-se de que deveria desparafusá-la primeiro. A graxa espalha-se pela roupa, para o desespero da mulher, que odeia sujeira.

Ao perceber a gafe, Martim, visivelmente constrangido, abre o porta-malas, revira a bagunça até encontrar a chave de rodas; com ela em mãos, encaixa-a no parafuso e, sem muita noção, ao invés de girá-la com as mãos, passa a chutá-la; num dos golpes, o pé escorrega e colide contra o chão.

A dor é gigantesca, a ponto de ele fechar os olhos e gritar. Para sua tristeza, tudo é transmitido ao vivo pela empregada, que se agita com o número de visualizações, que triplica a cada minuto. Mas tudo o que é bom e dá audiência um dia acaba, não é? Ao reparar o veículo parado e seus tripulantes desajeitados, uma boa alma, acompanhada de um parceiro, dá meia-volta e retorna. Estaciona ao lado deles, dizendo:

— Precisam de ajuda? — pergunta um rapaz, bem alto, com os músculos à mostra, com os olhos correndo a roupa do general.

— Oh, meu fiiilho, claro!!! Pois venha!!! — a mulher se alegra com a vitalidade do moço. — O Melancia não dá direito no coro, ops, quero dizer, não sabe trocar um pneu!!! É uma vergooonha!!! O que não dirão minhas amigas da socialite brasiliense, quando souberem??? — cobre o rosto.

— Sílvio… — Cláudio chama pelo amigo. — Venha, temos um servicinho aqui.

— Crendiospai!!! Que homões, dona Leonor! Dá até um fogo…

— abana-se com as mãos, cheia de malícia. — Ui!!! Preciso de um banho gelado!

— Eu estou meio enferrujado! — Martim tenta se justificar.

— MEEEIO??? — caçoa. — Tá é tooodo enferrujado!!!

— Me respeite, Leonooor! — exige o homem, alterado com os comentários de mau gosto.

Os rapazes trocam o pneu com uma agilidade admirável, ao terminarem, voltam-se para o casal, que os aguarda com algumas notas de reais às mãos.

— Obrigado, senhores, pelo serviço prestado! — agradece Martim, dando-lhes o dinheiro.

— Hum! Não é pouco? — reclama Cláudio, apoiado pelo amigo.

— Trezentas pilas? — surpreende-se a empregada. — É quase o valor do meu vale alimentação… Pois se não quiserem, que me façam esta caridade, tenho marido e oito filhos para sustentar…

— OOOito filhos? Meu Deus do Céu! Você não tinha televisão, Cleeeide?

— Eu não sou nem casada, nem tenho filhos, dona Leonor, só estou tentando levar estes trouxas no bico, compreendeu? — sussurra- lhe a empregada. — Vai que uma alma dessas resolva fazer uma caridade… Meu bolso a receberia com todo prazer! 

— É o que tenho no momento, rapazes! — desculpa-se o pai de Luara.

— Está enganado, tem também o carro — Cláudio retira uma arma das costas e aponta-a para o general —, e vamos levá-lo. Dê-nos a chave! E se alguém der um gritinho que seja, “rezará a missa” com São Pedro ainda hoje.

— Que rapaz mais religioooso, né, Cleeeide??? — impressiona- se a mulher, completamente alheia à situação.

— Fique quieta, dona Leonor, a senhora ainda não percebeu que é um assalto?

— ASSSAAALTO??? — desespera-se ao cair na realidade. — VAMOS CHAMAR A POLÍCIA!!! POLÍÍÍCIA!!! POLÍÍÍÍÍÍCIA!!!

— Cale essa matraca, tia, senão será a primeira a ir para o beleléu — ameaça, apontando-lhe a pistola.

— Não faça isso, dona Leonor, apesar desta cara toda enrugada, ainda é jovem para morrer — suplica a empregada, escondendo-se atrás dela.

— Enrugaaada é sua avó, sua atrevida! Está despediiida!!!

— E por que vai despedi-la? Por acaso ela disse alguma mentira?

— Sílvio, o outro bandido, compra as dores de Cleide.

— Que fofinho… me defendendo! Ui! — a emprega delira, enquanto belisca o próprio braço para ver se não estava sonhando.

— Que a senhora está precisando “dar uma esticada no focinho”, ah, isso está — arremata Cláudio.

— Quem tem fociiinho é cachorro, meu fiiilho, olhe como fala com a mulher de um dos generais mais importantes do país. Vamos, Melancia, deixe de preguiça e chame logo o Exército, ele há de trancafiar estes dois numa gaiola por muito tempo.

— É assim que se fala, dona Leonor, por isso a senhora é minha “ídola”.

— General? O velhote é general e isso não dá samba! Os caras vão nos pegar antes de chegarmos à Goiânia — cochicha Sílvio. — É melhor deixar como está!

— A senhora é esposa de um general? — Cláudio pergunta, desacreditando.

Martim também se esconde atrás da mulher.

— E da mais aaalta patente, mexe pra ver! Dá um tiiiro e leva cinco, meu filho! 

— E não bastasse, ainda é amiga do Zangado, lá da Sol Nascente

— mente a empregada, percebendo o receio dos criminosos. — Vão encarar?

Ao ouvirem o nome do anão, os dois entreolham-se. Ressabiados, se afastam; com a arma ainda em riste, entram no carro e desaparecem.

— Zangaaado??? Eu prefiro o Duuunga!!! — diz Leonor, não se atinando à esperteza da empregada.

— Deixe disso, depois eu explico para a senhora… E VIVAAAAA DONA LEONOR!!! — comemora.

— Comigo é assim, chuchu com bucho não é rapadura!

Eles fazem cara de paisagem, não compreendendo a frase da mulher.

— Poderíamos ter acabado mortos! — constata o general, apesar de aliviado.

— Para alguma coooisa ainda serve o seu título, meu fiiilho!!!

— A senhora é o máááximo!!! — exalta a enxerida. — Acho que foi mais é um milagre do Zangado — diz consigo mesma, contendo a risada.

— Pode parar, Cleeeide, você já me ofendeu demais por hoje, que volte de ônibus, sua presença, neste momento, me causa náuseas. Pegue suas tralhas e dê o fora de minha casa ainda hoje. 

— Nossa, dona Leonor, como pode tratar assim quem a levou ao trending topics do Twitter⁴?

— TRENDING TOOOPICS??? Como assim??? Deixe-me ver!!! Urra!!! Estou na boca do povo!!! — aplaude-se, sorridente. — Olha lá você, Melancia, todo cheio de graxa, suando feito uma besta, tentando retirar o pneu sem antes desrosquear os parafusos…

— VOCÊS FILMARAM ISSO??? — enerva-se o homem. — Podem apagar.

— Já viralizou, senhor, tem mais jeito não! — responde a empregada.

— Cleeeide, vo-você é… é a melhor coisa que já me aconteceu.

Está recontratada e com um bom aumento.

— Obrigada! Faço apenas o que posso pela minha “diva” — gaba-se, com os dentes à mostra, já pensando o que fazer com a grana extra.

— O que vocês estão fazendo aí? — pergunta o delegado, ao avistá-los, estacionando o carro do outro lado da via.

Distante dali…

A polícia avança sobre as ruas conservadas de Brazlândia, uma das mais antigas regiões administrativas do Distrito Federal, considerada a maior produtora de morango do Centro-Oeste, com mais de cinco toneladas por ano. O barulho das sirenes quebra o silêncio, movimenta o local, atraindo a atenção dos pacatos moradores, que abrem as janelas, deixam as casas e as lojinhas, aglomerando-se à calçada, de onde acompanham a caçada. Por todos os cantos há faixas e cartazes da Festa do Morango, que é realizada anualmente e recebe visitantes de todo o país, que se deliciam das várias receitas de família feitas com a iguaria. É neste cenário bucólico, em que a pobreza também se insere, que Solano, segundo informações de Eufrásio, está escondido.

Na busca pelo bandido, os oficiais, vez ou outra, são obrigados a pararem o veículo, seja por conta de uma carroça que lhes corta a passagem, seja porque crianças, vindas de todos os lados, invadem inocentemente as ruas, com suas pipas a cortarem o céu. Ali o tempo parece não andar.

Atravessam o pequeno centro e se dirigem à área rural, onde mora grande parte da população. O verde das flores, folhas e frutos mesclado ao azul anil que cobre o céu parecem competir com o sol, o majestoso, pela atenção dos mortais, que admiram a beleza do lugar, como se O Arvoredo, obra do pintor Manuel Jorge, saltasse da tela para a realidade.

Após percorrerem um trecho de terra, chegam a uma casinha, sem reboco, com uma edícula, cercada por arame farpado. Um dos agentes deixa a viatura e bate palmas, enquanto os outros se escondem em pontos estratégicos. Uma senhora de idade, bem acima do peso, o atende.

— Boa tarde! A senhora conhece este meliante? — mostra-lhe a foto no celular.

— Não senhor! Nunca vi mais vivo! — responde, desconfiada.

— A senhora tem certeza? Olhe outra vez! — insiste. — Saiba que encobertar um foragido da lei é crime.

— Corram!!! Corram!!! — gritam dois oficiais ao perceberem uma figura sinistra sumir pelo matagal. — O cara tá fugindo!!! Vamos!!!

Regressando à mansão de Luizinho…

Aperta o gatilho. A arma falha. Tenta outra vez, e mais outra, e a bala não sai.

— QUE MERDA É ESSA???

Atrás dele, acompanhada pelos olhos atônitos de Egídio está Aurora, em transe, com as sobrancelhas arqueadas, os olhos cerrados, as palmas das mãos levantadas, os dedos irrequietos, sussurrando palavras ao vento.

— O CARTUCHO ESTÁ CHEIO, MAS NÃO DISPARA — brada o homem, ao vistoriá-la e não encontrar nenhum defeito. — VOU LAVAR ESTE CHÃO COM O SEU SANGUE, VAGABUNDO!!! — a arma está outra vez rente à cabeça de Álvaro, que sua frio, antevendo o próprio fim.

“Opcha⁶, Opcha minha Santa Sara Kali, mãe de todos os clãs ciganos dessa terra ou do além-túmulo, me ajude!

Abrande os leões que rugem para me devorar.

Afugente as almas perversas para que não possam me enxergar. Ilumine minha tristeza para a felicidade chegar.

Rainha, ó minha grande Rainha, invoco teu poder para que eu não afunde no oceano da vida,

Seja minha ida, minha chegada e minha guarida.”⁷ – ora a cigana, cada vez mais distante do mundo real.

Aperta o gatilho. A pistola trava.

— MEERDA!!! — dê-me a sua arma, Egídio.

— Senhor… SENHOOOR!!! — aponta-lhe a cigana, arrepiado de medo.

— O QUE É IIIISSO??? — espanta-se, diante da mulher, que está a um palmo do chão, levitando, com os cabelos em chamas, sob um círculo de luz.

Ao se afastar, a arma escapa de sua mão, bate no chão e dispara contra uma das vidraças, espalhando estilhaços por toda a sala.

“Ela me protegeu outra vez!” — deduz Álvaro, completamente desnorteado, diante do que via.

O interfone toca. Luizinho atende e quase cai.

— O delegado, um tal de Enrico, está aqui, quer muito lhe falar… O que devo fazer, senhor? Fale! O bicho não está com a cara boa! — avisa o vigia, apavorado.

_____________

1. Na mitologia grega, Éris é a deusa da discórdia: em tudo o que toca ou participa, inevitavelmente gera antagonismo, confronto, disputa, ódio, violência e destruição.

2. A Deusa do amor, do sexo, da fertilidade e da beleza física, segundo a mitologia grega.

3. A Empusa é frequentemente retratada como uma bela mulher, que se transforma em uma criatura com dentes afiados, cabelo flamejante e (em algumas interpretações) com asas de morcego. Para os gregos, era considerada uma semideusa sob o controle da deusa Hécate, a divindade associada a encruzilhadas e caminhos de entrada.

4. Antigo nome da atual rede social X.

5. Manuel Jorge Pacheco Barbosa foi um artista plástico e pintor. Nos seus primeiros tempos enquadrou-se nas chamadas correntes do Modernismo (3ª geração de pintores modernistas portugueses) e do Neorrealismo, tendo posteriormente enveredado por temáticas e técnicas mais academistas, já na década de 1960.

6. Salve.

7. Oração cigana adaptada.

autor
Carlos Mota

com ilustrações de
Andrea Mota
 
elenco
Luara
Álvaro
Aurora
Diana
Martim Vaz
Leonor Moreira Vaz
Beatriz Vaz
Matilde
Cleide
Eufrásio
Sofia
Luizinho como Patrão e Camaleão
Egídio
Enrico
Português

trilha sonora
Immortal - Thomas Bergensen
 
produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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