Matilde encara Eufrásio com uma
seriedade de incomodar o espírito.
— O que você fez? Estou
aguardando uma resposta — cobra, resgatando o celular do chão.
— Eu… eu… — está encurralado e
não encontra uma resposta, pelo menos convincente, à conversa que manteve há
pouco… — sabe… eu…
— EU O QUÊ??? FALARÁ PARA MIM OU
PREFERE O DELEGADO??? — perde a paciência, antevendo a resposta que lhe
machucará profundamente. — OS MÉTODOS DELE NÃO SÃO TÃO SUTIS QUANTO OS MEUS,
ISSO EU LHE GARANTO.
VAMOS!!! VAMOS!!! — é enérgica,
enquanto analisa o aparelho.
— Eu não tive culpa, Matilde, a
coisa fugiu do controle, era para ser apenas…
— APENAS… COMPLETE!
— … uma simples informação, mas
eu não sabia que iria terminar no sequestro da menina, muito menos na morte do
filho do diplomata.
— ENTÃO FOI VOCÊ??? — está
inconformada. — COMO PÔDE??? LUARA TE ADORAVA!!!
— Eu, eu… foi preciso!
— Como assim?
— Meu filho está morrendo e o
dinheiro chegou em boa hora; era aceitar ou deixar o moleque aguardando uma
vaga no Hospital Regional de Taguatinga… Perdi a cabeça! Quando o médico me
disse que ele teria mais alguns meses de vida, não pensei nas consequências,
queria apenas levá-lo para Goiânia, talvez lá pudesse ter uma oportunidade,
porque aqui, a senhora sabe, a coisa vai de mal a pior…
— Que história mais sem cabeça é
essa, homem?
— A senhora não sabe o que estou passando, meu pequeno menino do meio, o Tiquinho, está tomado pelo câncer, aquela doença desgraçada, praga do inferno, que chega sem avisar; fui a vários hospitais, ele precisava iniciar o tratamento, mas nenhum tinha vaga. Como pobre sofre neste país, dona! — lamenta. — Cheguei a brigar com um segurança que me impediu de entrar na enfermaria, quando meu menino, vomitando sangue, era acudido por um médico sem muita vontade… Essa gente parece não ter alma, como um pai como eu, coruja ao extremo, iria ficar quieto diante do choro de minha cria? Só não fui preso porque, no final das contas, alguém da direção ficou com dó de mim. Mas que é muita humilhação, ah, isso é! A gente paga tanto imposto e, quando precisa, fica invisível. Hum! Isso não está certo
— revolta-se. — Até que uma
atendente chegou em mim e disse que se não o levasse para Goiânia logo,
Tiquinho poderia ter a vida ainda mais encurtada. Fiquei em choque. Que pai
quer perder um filho? Essa ideia nem me passa pela cabeça, porque, pela ordem
natural das coisas, quem deve ir primeiro são os mais velhos e não os que
chegaram há pouco…
Matilde ouvia a tudo sem esboçar
qualquer reação.
— Eu estava liso, como levar
Tiquinho para Goiânia? Então chegou o vagabundo, contou uma lorota, dizendo que
fariam apenas uma pegadinha com dona Luara, tipo essas que passam na tevê, e
que eu me despreocupasse. Era uma coisa simples, bastasse que eu informasse
onde ela estaria à noite, para que eles montassem a brincadeira. Conhecia o
sujeito de vista, parecia ser honesto, tinha um bom papo, metia-se sempre com
filmagens de casamento, de comerciais, essas coisas… Ele me ofereceu a graninha
que eu precisava para levar o moleque, apenas pediu para que eu não comentasse
com ninguém, senão a tal pegadinha soaria como farsa. De início eu hesitei, sei
lá, mas cedi na segunda investida, quando as coisas tinham piorado… Eu só
avisei que ela estaria na boate chique, a tal de Hedonê, à noite, na companhia
da senhorita Sofia. Foi só isso!
— Só isso? Que cara de pau! Você
mandou a garota para a guilhotina e diz que “foi só isso”? — esbraveja. — Se
está dizendo a verdade, por que não pediu ajuda?
— Para quem? Para Dona Leonor e
Seu Martim? Oh, minha querida, eles são insensíveis às dores alheias… São
literalmente incapazes de um gesto de bondade com um semelhante ou não se
lembra da comida que negaram à mendiga que bateu à porta da mansão aquela vez?
Disseram que a comida tinha acabado, mas serviram, no mesmo dia, filé-mignon ao
cachorro que tinham. Uma vergonha! A única que se salvava era Dona Beatriz, que
sempre esteve à espreita, nos ofertando bons momentos de alegria e ajuda quando
mais precisávamos, mas depois que adoeceu, ficamos “órfãos”… A coisa tá tão
feia que até fome a gente tem passado.
— Como assim? Você dorme aqui e
come muito bem.
— Eu sim, Matilde, mas minhas crias não! Esqueceu-se de que tenho quatro filhos e uma esposa na cadeira de rodas? Meu salário sempre deu conta das despesas de casa, mas depois que Tiquinho passou a “morrer” um pouco por dia, perdi o juízo. Sabe o que é ter um filho sadio, que acordava cedo todos os dias para brincar no campinho do bairro com os amigos, mas que de repente sofre um desmaio do nada, é levado para o hospital, e já nos primeiros exames, dizem que ele tem um tipo raro de câncer chamado de lin… lin… – nem sei falar o nome direito –, que se não recebesse o tratamento o mais rápido possível, morreria em poucos meses? Sabe o que é isso? Tenho certeza de que não! — os olhos se enchem de lágrimas. — Num dia você chega em casa e o moleque está todo sorridente, encharcado de suor, moreno de sol, com os olhos brilhando de felicidade; no outro, enfraquecido, amarelo, sem vontade de fazer nada, vomitando o dia todo… Que pai não perde as esperanças e faz o que tem de ser feito? — limpa com as mangas da roupa as lágrimas que descem pela face.
— Sinto muito pelo seu filho —
diz a mulher, um pouco desconcertada —, mas o que fez não está certo. Luara
pode não voltar mais para esta casa, pelo menos com vida.
— Que droga! Eu já disse, eu não
sabia que isso ia acontecer, apenas repassei uma simples informação…
— … que culminou em dois graves
crimes. Não se arrepende?
— É a lei da selva! — tenta se
esquivar. — São eles ou nós! — responde, surpreendendo a governanta, que dá um
passo para trás. — Bem faz a Cleide que ilude os patrões com suas histórias
arranjadas e, ao final de cada mês, ganha uma grana extra; já eu, um bocó, mal
sei contar uma piada…
— E qual é a graça em ser o bobo
da corte?
— Ué, simples, ter algum a mais
no fim do mês ou a senhora esperava o quê? Apenas amizade? Até parece! Das
coisas que a cozinheira enxerida conta, pode ter certeza, mais da metade é
mentira, mas como sabe engrupir bem a “coroa doidona”, sai por cima da carne
seca, com as burras cheias.
— Meu Deus! Luara gosta tanto de
você, ainda não acredito no que foi capaz…
— Não tive escolha, já disse! —
responde, sentindo-se derrotado.
— Se foi só isso mesmo, por que
ainda continua ajudando o criminoso?
— Porque… porque… eu tive medo de que descobrissem minha participação…
— E adiantou? A mentira tem perna
curta. Tenho dó de seu filho, não bastasse a doença, agora terá de enfrentar a
perda do pai.
— Do… do… que vo-vo-você está
falando? Eu estou aqui!
— Por enquanto!
— O QUE PRETENDE FAZER??? —
assusta-se.
— Onde está a garota, Eufrásio?
— Eu… eu… não sei! Juro!
— Mas dá cobertura a um dos
pilantras… Você deve se entregar já e contar tudo à polícia.
— Me entregar? E como ficará o
Tiquinho? Meu Deus! Não me peça isso!
Matilde mantém-se em silêncio,
com os olhos presos aos do homem.
— Ou você se entrega ou eu o
entregarei.
— Vo-você não pode fazer isso,
não pode! Eu não fiz por mal!
— Nada justifica um crime!
— Meu filho, Matilde, pense nele…
— apela.
— Você é que deveria ter pensado
antes, não eu! E tenha certeza, seu menino também ficará desapontado contigo,
assim como eu, quando souber… É capaz de pedir a Deus que o leve; mil vezes a
dor da morte à vergonha de ver o pai algemado, dentro do camburão, sendo levado
para a Papuda… Sabe, Eufrásio, o desespero o levou a um egoísmo extremo que
deve ser repelido, senão, todos, em condições piores que a sua, sentir-se-ão no
direito de cometer crimes tão ou mais graves para justificarem seus erros.
Ninguém deve ser sacrificado como um cordeiro para que outro seja salvo, a vida
não funciona assim…
— Pense em meu filho… — insiste,
enquanto chora… — Pense em meu filho!
— Eu estou pensando nele, tenha
certeza disso!
— Quem você pensa que é para me
ameaçar de alguma coisa, sua… sua… sua solteirona de merda, feia feito a peste,
com essa pele toda encruada e esse cabelo cheio de laquê??? — perde o controle.
— Você não sabe o que é AMOR, se bobear nunca deu uns pegas, porque se
soubesse…
— CALE A SUA BOCA! — é enérgica.
— Você não conhece minha história para dizer estas coisas.
— Você é fria, mulher! Friiia!
Queria ver se fosse um filho seu…
— A vida me fez assim! — responde, com os olhos reluzindo.
— Assim como seu filho, meu
marido foi diagnosticado com câncer no pâncreas, em nosso terceiro mês de
casamento. Internado, sobreviveu mais alguns meses, me deixando no inverno
daquele ano. Lá naquela fazenda, no interior de São Paulo, sob as asas dos Trajanos,
eu perdi toda a razão de viver e passei apenas a trabalhar, dormir, dormir e
trabalhar; nenhum sorriso irrompia minha face, por mais graça que me fizessem…
Eu passava noites e mais noites chorando pelo homem que tanto amei. A vontade
que eu tinha era a de ceifar a minha vida, fugir deste mundo, ainda que
perdesse o “paraíso” prometido pelas escrituras. Mas, quando a gente pensa que
tudo está perdido, o mundo gira novamente e as coisas trocam de lugares. Em uma
das noites mais difíceis de minha vida, quando completaríamos um ano de
casados, recolhi-me aos fundos da mansão, onde me entreguei à dor. Era uma dor
que não cabia no peito. O que eu não contava era que dona Beatriz, que visitava
a casa, havia me notado – logo eu, que não era nada – e foi ao meu encontro e,
antes que eu praticasse uma loucura, ela me abraçou com toda aquela ternura e
me pediu para acreditar em dias melhores. Olhando-me profundamente, como um
anjo que vem ao resgate de um dos seus, pediu para eu fosse com ela, pois um
lugar melhor me esperava. O que eu tinha mais a perder? Segui seu rastro… E fiz
o certo! Aquela mulher me salvou da morte! Por isso, essa história de “nós”
contra “eles” só existe em cabeças de pessoas fracas, que não enxergam o óbvio
quando a loucura as envolve.
— Que drama! — revolta-se. — Logo pagarão o resgate e a garota voltará para esta casa.
— Com quê dinheiro?
— Com o deles, ué!
— Eles não têm o que estão
pedindo. Seu Martim esteve hoje no banco para tentar um empréstimo, mas
faltaram garantias, ou seja, tudo o que eles possuem não cobriria o valor
solicitado. Saiu de lá e, com a influência que imaginava ter, foi até o
Ministro da Fazenda pedir apoio junto ao banco estatal; sequer foi atendido. E
dos amigos que tinha, alguns deputados e senadores, todos inventaram desculpas,
procurando não se envolver, até porque, o caso é público, está em todos os
jornais e ninguém quer estar “na foto” quando o assunto envolve dinheiro e não
gera votos.
— Você está brincando comigo, não
está? — estranha. — Ele não conseguiu o dinheiro?
— Nem conseguirá! E o prazo para o pagamento está acabando, daqui a pouco Luara nos será devolvida, mas num caixão, o mesmo que você não quer para seu filho. E sabe o que é pior em tudo isso? Como Luara gostava de você, homem! Ela sempre comentava de sua gentileza, assim como Dona Beatriz, que o admirava pela honestidade — diz, mexendo nas teclas do celular.
— Me devolva, por favor! — pede,
angustiado.
— Tome! — devolve-lhe. — Ele é
seu!
— Não me entregue, Matilde, se eu
for pego pela polícia, como poderei ir a Goiânia? Tiquinho está na U.T.I. e
pergunta por mim todo dia. Não faça isso!
— Deixe-me lhe fazer uma
pergunta: consegue dormir com o que fez?
O homem emudece.
— Eu sabia… — deduz. — Terei de
entregá-lo; não quero compactuar desta história.
— Em que a filha deles é melhor
que o meu Tiquinho, Matilde? É por conta do dinheiro que eles têm, não é? Abri
meu coração e o que você faz? Olha-me com desprezo…
— Desprezo, não; pena! —
corrige-o.
— Pena? — destempera-se, para o
incômodo da governanta. — Não diga isso a um pai desesperado, a coisa pode não
terminar bem — pega-a pelo braço com força. — Entendeu?!!
— Eufrásio e Matilde, Uuuhhh!
Quem diria!!! — zomba Cleide, se achegando, após perceber um movimento estranho
no jardim. — Você não é casado, meu filho??? Que safadinho, hein? Pensava que
nem dava mais no coro — gargalha. — E você, “Matildinha”? Que fofa! Faz-se de
rogada, mas basta os patrões se distraírem para se entregar ao desfrute.
— Me respeite, Cleide!!!
— Nossa! Calma! Não vou contar
para ninguém sobre vocês dois… — percebe os olhos lacrimejantes do chofer. — …
Hum! Vocês estavam numa “DR”? Ui! Desculpe aí, não queria atrapalhar. Deixa só
a dona Leonor saber que a santa do pau oco tá de lesco-lesco com o motorista, o
bicho vai pegar, não sobrará pena sobre pena — escarnece com gosto.
— O que está acontecendo aqui? —
exige Martim, descendo o último degrau. — O que fazem aqui fora e a esta hora?
— Eu só estou de passagem, mas eles, uuuhhh, se eu não chego, a casa poderia tremer e o terremoto seria daqueles pra ninguém botar defeito.
— Vo-vocês dois? — estranha o
patriarca dos Vaz.
— Senhor, Cleide está variando,
não acredite em nada do que ela está falando…
— Eu só digo o que meus olhos
veem…
— E o que você viu, sua enxerida?
— irrita-se a governanta.
— Tenho vergonha até de dizer!
Mas olhe — volta-se para Eufrásio —, pode tomar o “azuzinho”, mas tenha
cuidado, porque teve um homem lá em Ceilândia que, para pagar de gostosão,
tomou dose dupla; não prestou! Teve de ser enterrado de lado, se é que me entende…
— gargalha, retirando-se.
— Eu vou bater nesta peste,
senhor! — ameaça Matilde, sendo contida por Martim. — Que vulgaridade! Nunca
passei tamanha vergonha!
— Acalme-se! Esta também não tem
os parafusos no lugar… Então, o que vocês fazem aqui? Não me responderam!
A governanta inicia a conversa,
mas é imediatamente interrompida pela cozinheira, que grita do alto da escada:
— Seu Martim, corre aqui, o
delegado tá indo embora.
— Deixe-me ir lá! Depois
conversaremos.
— E então, Matilde, o que fará? —
pergunta Eufrásio, bastante temeroso. — Vai mesmo me entregar?
— Não exija que eu carregue o
sangue de Luara também em minhas mãos. Não venda o que você tem de mais
valioso: o amor de seu filho. Isso não tem preço! E a vida está lhe dando uma
oportunidade, corrija o que fez de errado, ainda dá tempo, e tire dos ombros o
remorso que lhe pesa…
Os ponteiros do relógio da sala
de estar de Luizinho giram acelerados e, o sol, despertando-se, surge no
horizonte…
Vestindo uma máscara de pano preta esgarçada pelo tempo, que deixa apenas os olhos à mostra, Egídio chega ao quartinho onde está Luara. Ao retirar o cadeado, abre a porta e acende a luz, quando se assusta, ao perceber que a garota havia desaparecido, deixando para trás apenas as amarras das cordas. Mal sabia que ela estava escondida. Ao passar pelo batente, Luara, aquela flor delicada, regada por tantas dores, surge sobre ele com uma força assombrosa e lhe retira a máscara; com o punhal em mãos, tenta acertá-lo, fixando-o para que aquele rosto jamais pudesse ser esquecido.
Bem mais esperto com o manejo da
arma, o capanga desvia-se das investidas e desfere um pesado golpe contra o
antebraço da garota; o objeto se desprende, bate no teto, atinge a janela que
havia sido violada, ganhando a atenção do bandido, que, de imediato, conecta o
fato a Álvaro.
— Só podia ser aquele bobalhão… O
que ele está pensando em fazer? De repente virou Madre Teresa de Calcutá? —
comenta consigo mesmo. — O cara está pondo todo o plano em cheque por conta de
uma vagabundinha como essa? Quanta burrice! Mas isso não vou deixar… Ah, não
vou!
Desatinada, Luara se recolhe a um
dos cantos da parede, com os olhos correndo entre a porta e o bandido; quer
escapar daquele lugar, reencontrar a família, recuperar sua vida, como se isso
fosse possível.
Egídio tenta capturá-la, mas
falha na primeira tentativa; com a esperteza de um bicho assustado, ela dribla
os movimentos, agacha- se e passa por baixo dos braços do rapaz, que se
surpreende com sua agilidade. Ao tentar atravessar a porta, o bandido a puxa
pelo cabelo e a arremessa contra a parede. A dor é intensa. Um grito
ensurdecedor é ouvido, atraindo a atenção de Aurora, que à varanda, não
expressa qualquer reação, diferente de Álvaro, que contrariando todos os
mandamentos da bandidagem, corre em direção à sua princesa.
Egídio fica entre a porta e a
cama e ameaça-lhe com socos e tapas; quer logo machucá-la, tirar as fotos e
entregar o traidor ao patrão, que daria a ordem para que a vida do infeliz
fosse abatida. Mas a garota, que clama por socorro, esquiva-se de todas as
investidas, até que uma cotovelada a surpreende, atingindo o ferimento do
acidente, o que a leva ao chão. Desesperada, tenta se levantar, mas não
consegue. Egídio sorri.
— Vou te quebrar toda, mocinha! —
diz, perturbado.
— Não faça isso, eu não lhe fiz
nada!!! Por favor!!!
Rangendo feito um animal, o
malandro recupera o punhal e aponta para ela, dizendo em meio a baba que lhe
corria pelos dentes grandes e amarelos:
— Era com isso que queria pôr fim
à minha vida? Pois será com ele que findarei a sua!
Agarra-a pelos trapos do vestido e a levanta até a altura dos olhos, sedento de sangue… Com a mão esquerda a segura e com a direita prepara a arma, que em posição de ataque, poderia mesmo encerrar a história da filha dos Vaz.
Vendo-se refletida na lâmina do
objeto, Luara chora em desespero, suplicando clemência. E quando parte para
furá-la, os braços de Álvaro o envolvem, enquanto as mãos, ágeis, seguram-lhe o
punho. Focado em manter o objeto e acabar com o oponente, Egídio liberta Luara,
que volta ao chão.
— Vá, saia daqui já!!! — pede o
rapaz, enquanto segura o capanga, cuja força era superior à sua. — Vá! Vá logo!
— Vou te furar, parça! Não devia
ter se metido nisso! — ameaça Egídio, ainda contido.
— Vá!!! Não conseguirei segurá-lo
por muito tempo… Vá!!! — após muita força, consegue desarmá-lo.
O gesto de Álvaro mexe com Luara,
que o vê, pela primeira vez, como um homem de verdade, a quem poderia, em outro
cenário, confiar seu coração. Os cabelos negros, molhados de suor, adornados
pelos olhos agitados e verdes como uma esmeralda, escondiam uma ingenuidade
gritante, uma bondade digna dos príncipes dos contos de fadas e uma beleza de
entorpecer o juízo. Que homem era aquele? E como era lindo! Lindo demais! Tinha
um corpo escultural, uma mão bem desenhada, um aroma forte, másculo, que
envolve e seduz, levando ao êxtase qualquer mulher. Mas ele era um de seus
sequestradores… E daí? Sempre a protegeu, seja na boate, quando seria vítima de
abuso; seja neste mesmo quartinho, quando a amparou durante uma crise, ou mesmo
agora, quando seria machucada.
Se ele não fosse o príncipe que
habitaria o seu âmago, quem seria? Nicholas ou alguém de sua estirpe? Não! Mas
não estava certo! Ele era um bandido e deveria pagar por seus crimes…, mas era
um bandido bonzinho, de coração aparentemente puro, que estava sempre ao seu
lado. Seria seu protetor, uma espécie de herói fora da lei? Não! Pare, Luara!
Ele não presta! Não presta! Só quer o seu dinheiro… Mas se ele não presta, quem
é que prestaria? Todos com quem se relacionou só pensavam em sexo; nunca foram
além de algumas palavras mentirosas, frases prontas, preparadas para seduzir e
saciar a libido. Com esse cara era diferente, ele cuidava dela, sem tentar
avançar qualquer sinal. Um bandido bonzinho? Isso era possível?
Seus sentimentos estavam
perdidos, e se alguém resolvesse encontrá-los, talvez nunca mais se depararia
com a liberdade, permanecendo aprisionado a uma cela sem grades até o fim dos
dias.
Meus Deus! Quanta bobagem! O que estava pensando? Certamente a doença que abate sua mãe, atiçada pelo desespero, agora nela se manifesta, condenando-a para sempre às jaulas do desatino.
— VÁÁÁÁÁÁÁ!!!! O que está
esperando???? — grita Álvaro, já não suportando mais.
— O que você está fazendo,
Aurora? — pergunta Luizinho, no andar de cima, enquanto toma calmamente seu
breakfast, balanceado com pequenas porções de pães, queijos, frutas e cereais,
ao perceber a cigana à varanda, ao lado da sala de jantar.
— Você ouviu os gritos?
— Não sei do que está falando! —
dissimula, pondo à mesa algumas fotografias de Luara.
— Estão machucando a garota, não
estão? — vira-se para ele. — Ela ainda não se recuperou dos ferimentos, pode
não sobreviver.
— Verdade? — pergunta, observando
uma das imagens. — Ela é bonita, não? Maldita hora que te conheci, porque uma
dessas na minha cama, certamente faria estragos.
A cigana se segura para não
responder à altura.
— Estou brincando, querida! — ri,
guardando as fotos. — Em minha vida só existe você!
— Ela ainda está machucada… —
retoma a conversa. — Ela pode morrer!
— E daí? Desde que nos paguem, posso devolvê-la em um caixão — o sarcasmo é surreal.
— Os pais dela a aguardam… estão
tentando a quantia para libertá-la e a querem viva — o coração da cigana sente,
pela primeira vez, pena da rival.
— Nunca prometi devolvê-la viva,
agora, se a querem assim, que paguem mais… Temos uma semana para findar tudo
isso, são ordens do Português; se não alcançarmos os objetivos propostos, quem
terminará em uma cova, como dois indigentes, seremos nós. Se alguém aqui tiver
de morrer, que seja ela… Estou errado? — passa a geleia sobre uma torrada
integral e depois a degusta como se nada estivesse acontecendo.
— Mas ela é muito jovem…
— Está com dó, minha querida?
Quer morrer no lugar dela? Se quiser, me avise, que lhe meto uma bala nas fuças
já, comunico o Português, que a julgar pela capivara que ele carrega, pouco se
importará, desde que eu dê um bom fim ao seu corpinho de musa. É tão simples
resolver isso… Quer?
— Você não ousaria…
— Me desafie para ver — dá um
soco na mesa, mexendo com as emoções da mulher, que se retrai. — Amo você, mas
não pensaria duas vezes em matá-la, se fosse mesmo necessário para salvar minha
pele. E quanto à dívida, ela é obra sua, então eu passaria uma boa lábia no
velho e sairia ainda com crédito. Duvida?
“Como posso ter me envolvido com
esse monstro?” — indaga-se, bastante revoltada. — “Sara Kali que me perdoe!”.
Pressionando o ferimento, Luara
sobe as escadarias, passa pelo quintal e vai em direção à guarita, clamando por
socorro, mas seus gritos, finos e fracos, não despertam a atenção dos vizinhos,
que se encontram separados por muros altos e bem guardados.
— O que ela está fazendo ali? — pergunta Luizinho, vendo-a cruzar a varanda. — O que aquele retardado fez? A garota está escapando… Corra atrás dela, mulher!!! Vá!!! Estou tomando meu café. No quartinho, Álvaro e Egídio rolam pelo chão, entre socos e pontapés. E num desses golpes do destino, Egídio recupera o punhal e o prende ao pescoço do companheiro, berrando:
— Chegou sua hora, verme dos
infernos!!! Ninguém é capaz de me derrubar… — prepara-se para dar o bote.
Enquanto isso, na delegacia…
— Senhor, a ligação para o
celular de Custódio partiu de uma torre próxima à mansão dos Vaz. Veja! —
Clóvis entrega-lhe os documentos encaminhados pela operadora.
— De fato, isso quer dizer que o
tal patrão está por perto…
— Ou alguém se passando por ele,
pois a linha está em nome de um bandidinho que está confinado em Prudente.
— Droga! Tem razão! E quanto ao
tal do veículo preto?
— Placa fria, doutor!
— E sobre o Solano, alguma
novidade? Batem na porta.
— Delegado, está aí um tal de
Eufrásio, quer muito lhe falar…
— anuncia a escrivã, atraindo a
atenção de Clóvis, que está com o uniforme repleto do açúcar da rosquinha que
comia.
— E quem é este? Se for vendedor
de cigarros do Paraguai, diga que deixei de fumar faz uns dois meses — responde
Enrico, preso ao painel com as pistas do caso.
— Senhor, é o motorista dos Vaz —
alerta a escrivã.
— Como? Motorista dos VAZ? E o
que ele quer aqui?
— Não disse, apenas pediu para ter contigo.
O delegado abre a porta da sala e
encontra o homem sentado no banco de madeira, rezando, com um terço nas mãos.
Estranhando, inquire:
— Aconteceu alguma coisa?
— Solano…
— CO-COMO?
— Eu sei onde ele está!
com ilustrações de
Andrea Mota
trilha sonora
REALIZAÇÃO

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