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Antologia Lua Negra: 5x03 (Season Finale)

Conto de Bruno Machado Carvalho
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Sinopse: Dois irmãos. Um tem visões apocalípticas desde a juventude. Hoje tudo será resolvido.

5x03 - As Visões
de Bruno Machado Carvalho

       Seria difícil descrever se houvesse alguém para contar. Tudo parecia distorcido. As almas retorcidas. Bocas contorcidas. 

O calor era sufocante. O cheiro parecia ser de carne queimada. Os sons escutados eram gritos de agonia. Figuras trêmulas condenadas pela eternidade. Sua visão parecia tingida de vermelho sangue. Chamas vermelhas dançavam por todos os cantos, iluminando formas grotescas. Criaturas deformadas. Massas disformes e trôpegas. Lentamente se movendo. Em minha direção

Olhos negros, fundos e vazios encaravam-me cada vez mais próximos. Parando eventualmente, bloqueados por algo. Um portal? Uma porta? Eles esticam seus braços longos e suas mãos retorcidas. Eles pareciam tentar me alcançar. Me pegar. Elas gemiam. Rugiam. Desesperadas. Irritadas. Não me mexo. Estava ficando difícil de respirar. Quando o que quer que estivesse entre nós parecia ceder, e seus dedos parecem prestes a encostar nos meus, eu acordo. 

Meu coração batendo forte. Minha camiseta ensopada de suor frio. Tive pesadelos desde que consigo me lembrar. Mas estão soando cada vez mais reais. Algo está se aproximando. Acho que finalmente estou compreendendo o que está acontecendo. Meu papel nisso tudo. Eu preciso ligar para o meu irmão. Uma conversa final para esclarecer e decidir tudo.

*

Faz alguns anos que não converso com Cássio. Acho que ele nunca tinha me ligado antes. Sou sempre eu quem o busca. Para conversar. Tentar resolver as coisas. Ajudar. Dentro do possível. Infelizmente, acho que certas coisas não podem mais ser mudadas.

É claro que ele só aceitou conversar comigo em dia de Lua Negra. Não poderia esperar algo diferente. 

Ele não me abraça. Nem aperta minha mão. Faz apenas um aceno tímido com a cabeça e gesticula para que eu entre. Apostaria que ele não tem uma conversa com alguém além de mim por mais de uma década. Nem sei se ele saberia como manter um diálogo com qualquer outra pessoa. 

Ele tem menos cabelo. Um ou outro fio branco na barba. Mais magro, exceto na barriga. Olheiras visíveis. Parece não dormir há dias. Ele sempre teve dificuldades com isso por causa dos pesadelos constantes. 

Sua casa estava no estado que eu esperava. Com cheiro de mofo e comida podre. No chão, latas e pilhas de embalagens de entregas de comida fast food.

Nas paredes, inúmeros recortes de jornais, páginas recortadas de livros e textos impressos da internet. Tudo colado com fitas amarelas e vermelhas, interligando-os. Datas bíblicas, símbolos religiosos, desastres naturais… São tantas coisas que parecem vindas de um seriado de comédia, parodiando debochando de filmes sobre paranoia. Em cima da mesa, cadernos empilhados cheios de anotações que provavelmente só fazem sentido em sua cabeça. Ao lado, pilhas de livros que dizem apresentar a verdade escondida. Reinterpretando eventos históricos e apresentando teorias sobre a Bíblia e acrescentando profecias, ideias e datas sobre possíveis futuros acontecimentos apocalípticos. Também tinham inúmeras cartelas de comprimidos espalhadas. Eu reconhecia alguns deles, tomava desde criança. Outros eram novos. Algumas cartelas estavam cheias. Pelo jeito, ele não estava tomando-os regularmente.

A porta aberta era a do seu quarto. Um cheiro forte saía de lá. Não consegui distinguir o que era. Provavelmente era melhor nem descobrir. 

Nenhuma mobília. Nenhuma televisão. Nenhum ventilador. E as janelas estão todas fechadas, explicando o imenso calor dentro da casa. Apenas mesas e armários para colocar coisas e uma cadeira que ele me oferece enquanto senta-se no chão. 

- Como está a família? – Ele me pegunta.

- Bem. Carla foi promovida. Horários melhores, salário maior. Então, financeiramente estamos indo bem.

- Eu realmente agradeço o dinheiro que sempre manda. - Falou envergonhando, olhando para o chão.

- Não precisa.

- E a Andressa?

- Fez cinco anos semana passada. Lembra? Eu te mandei um convite.

- É verdade. Desculpa. Eu tinha esquecido.

- Devia ir conhecê-la. Ela pergunta sobre você às vezes.

- Não precisa mentir sobre isso.

- É verdade. Ela gosta de ver minhas fotos antigas. Ela perguntou quem era o menino que sempre aparecia ao meu lado nas fotos na igreja. “Seu tio” eu respondo. E então ela me encheu de pergunta.

- E o que você diz?

- Que você gosta de ficar sozinho

- Mas eu não gosto de ficar sozinho. Eu queria não ser assim. As vezes eu acho que eu coloco a culpa de tudo que me aconteceu nas minhas visões. Mas talvez não seja por isso que eu não tenha amigos. Talvez seja porque eu não sei ter amigos. Talvez ninguém queria ser meu amigo. E talvez eles tenham razão nisso.

- Nada disso é verdade.

- Eu to te falando que não precisa dizer coisas só pra me agradar.

- E eu to te dizendo que não estou fazendo isso. No início, eu achava que era isso. Eu li sobre teorias de conspiração. Sobre pessoas que participam destes grupos, pra ser mais específico. Como muitas dessas são pessoas solitárias que não querem mais se sentir sozinhas. Juntas, elas finalmente sentem pertencimento. Elas não precisam mais pensar que foram excluídas pela maioria por serem estranhas e dignas de deboche. É que a maioria não consegue enxergar as verdades que somente este grupo ao qual ela pertence vê. Elas finalmente se sentem validadas, respeitadas e aceitas como pessoas. Pelo menos foi o que eu li. Estamos em 2025. Ninguém mais precisa se sentir sozinho. Nenhum pensamento bizarro é único. Qualquer pessoa consegue encontrar na Internet alguém igualmente lunático. Mas você nunca fez isso. Os poucos grupos e cultos que participou, logo abandonou. Nunca fez nada por nenhuma outra motivação além de encontrar aquilo que você enxerga como a verdade.

- Não significa que eu não queria ter amigos. Que eu não queria ter alguém para conversar.

- Eu tenho te chamado pra nos visitar há anos. Você que não quer ir. De novo, eu não estou mentindo. A Andressa ia adorar te conhecer.

- Tenho certeza que a Carla ia gostar disso. Eu falando o que eu faço da vida pra sua filha de cinco anos.

- Acha que a Andressa ia te perguntar sobre isso? Ela tem cinco anos. Ela só vai querer que tu brinque e assista algum desenho infantil com ela.

- E a Carla?

- Ela não vai querer falar sobre desenhos infantis.

- Rafael…

- Ela não tem tantos problemas contigo quanto você pensa. Se quer honestidade, ela tem mais pena do que qualquer outro sentimento negativo sobre você.

- Eu tenho claros problemas. Eu tentei me matar. É justo que ela não me queira ao lado da sua filha. E…

- Você não tentou se matar.

- Eu já te falei o que aconteceu.

- Que você cuspiu a bala? Por que o demônio te protegeu? Porque foi isso que você me contou e não foi isso que aconteceu.

- Eu...

- Ele interrompe sua fala e põe a mão na cabeça. Assim como os pesadelos, Cassio também sofre de enxaqueca desde quando era um adolescente. E eu nunca vi alguém tomar tantos comprimidos. - Você sempre soube falar com as pessoas. Sempre teve vários amigos. Eu nunca tive essa habilidade. Era sempre o cara estranho. É claro que não quero ser o cara estranho. É claro que eu não quero ser aquele de quem todos tem pena. Eu só não sei mudar isso.

- Eu paguei o teu médico. Eles te explicaram a tua situação. Você só não aceitou.

- Eu to tomando os remédios que eles prescreveram. Só não estão me curando.

- Eles mandaram você fazer mais coisas. Não pode fazer metade do tratamento e reclamar que não está funcionando por completo.

- Sabe que esse não é meu único problema.

- Eu me ofereci para pagar teu psicólogo

- E eu fui.

- Por três semanas. Acha que algo não está funcionando porque nem tudo foi consertado imediatamente? Essas coisas levam tempo. Sabe que você pode corrigir de imediato. O calor nessa casa! Pelo amor de Deus, abre uma mísera janela!

- Não me incomoda, estou acostumado.

- Com essa temperatura do inferno?

- Sim.

- Você tem água? Ou algo nesses papéis na parede dizem que água é do diabo?

- Sim. Tem água na geladeira. Satanás já se infiltrou na minha casa.  Ele dominou o meu freezer.

Praticamente vazia. Apenas pequenas sobras do que presumo tenha sido comprado a mais de uma semana. Os copos são todos de plásticos. Os pratos também. Se eu tivesse de palpitar, diria que ele não quer lavar nada, então simplesmente compra coisas descartáveis e quando estas acabam, compra novas coisas descartáveis. 

Puxo minhas mangas até os ombros. Minhas roupas grudadas no corpo pelo suor. Cássio continuava com as mangas compridas cobrindo seus braços esguios por completo. Para cobrir as cicatrizes, suponho. As minhas são menores, então não me importo tanto.

- O que você acha que está acontecendo comigo? Sinceramente.

- Eu sinceramente penso que não tivemos bons pais. E que por você ser o mais velho, foi o mais afetado pela criação deles. Nossa tia me salvou a tempo. Talvez ela tenha chegado um pouco tarde pra você. Eu não ouvi tanto o discurso deles quanto você. Eles não batiam tanto em mim. Eles não me obrigavam a fazer as coisas que você teve de fazer. Eu me lembro do medo que sentia. Do seu olhar. Realmente achava que se fizesse algo como brincar na rua fora do horário, ia parar no inferno. Não um metafórico. Era uma criança que literalmente acreditava que iria para inferno, condenada a danação eterna por Deus, por ter feito algo que toda criança faz. Você absorveu muito mais da loucura deles do que eu. Não tem como passar pela experiencia que você teve tão cedo na vida e sair intacto. As pessoas acham frases como “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse” legal nos filmes. Mas quando acontece algo assim na vida real, elas agem exatamente como o personagem que odiavam no filme. Eu sei disso. E eu sinto muito por isso. Talvez eu também tenha errado. Deveria ter te obrigado a escutar o médico. Continuar com o psicólogo. Não é uma situação exatamente fácil de saber o que se fazer. Eu nunca vi você machucando ninguém. Embora, pra ser honesto, se eu soubesse que tinha machucado alguém, eu ainda tentaria te ajudar. Porque sofreu tanto. Porque é meu irmão! Entretanto, eu nunca vi ninguém ser prejudicado pelo que você pensa além de você mesmo. Então, talvez eu tenha pensado no início que eu não devia intervir. Não é porque é estranho pra mim que algo é errado pra todos. Você é um adulto, decide fazer o que quiser. Mas talvez isso seja como uma droga. Ninguém não faria nada com o parente que cheira cocaína porque ele é adulto e faz o que quer. Ou alguém com algum transtorno mental. Tanto do que você diz sentir soa como Esquizofrenia. Acho que é por causa da família que crescemos. Talvez eles tenham me afetado mais do que pensei. Talvez eu tenha considerado possível, mesmo que minimamente, que você tenha alguma mediunidade Deveria ter te arrastado pra continuar vendo algum especialista? Eu sei lá!

- Não é uma coisa fácil cuidar de mim. Eu sei.

- Eu não me importo de cuidar de você, Cássio. Me incomoda que parece que você não quer aceitar ajuda.

- Eu não acho que eu preciso do tipo de ajuda que os especialistas podem oferecer.

- Já considerou que você pode “só” ter um problema real?

- Claro que sim. Não é o ditado? Loucos não sabem que são loucos?

- Não acho que é assim que as coisas funcionam.

- Alguma vez você já previu algo?

- Eu prevejo algo quase todos os dias. Só que este algo ainda não aconteceu.

- Tu tem que estar ciente do quão sem sentido essa frase é.

- Eu acho que eu não estava entendendo as coisas. É por isso que faço isso. Toda essa pesquisa. Eu quero entender o que isso significa.

- Talvez não signifique nada. Além de sintomas de uma doença.

- Quando eu acordei do meu primeiro pesadelo, eu gritei. Eu achei que meus músculos estavam retorcidos, meus ossos expostos. Porque era isso que eu via todo dia. Almas aprisionadas em um mar de fogo. A carne deles rasgada. Eu sentia coisas em minhas entranhas. Eu sentia a agonia deles. Era tudo tão real quanto os socos que levava dos guris da escola. 

- Você era um garoto que ouvia seguidamente sobre o inferno. Então você sonhava sobre ele. 

- Minha cabeça… Eu vomitava de tanta dor. E nossos pais. Jejum, flagelação...Algumas cicatrizes ainda estão tão claras quanto no dia em que foram feitas. Ocupando minhas costas inteiras.

- Eu sei.

- Eles acharam que minhas visões eram castigos de Deus. Então eu não resistia muito ao que eles faziam pois achava que eles estavam certos. Eles eram os adultos. Deviam saber o que estavam fazendo. As vezes eu pensava que eles estavam certos.

- Eles não estavam!

- Se nossa tia não os tivesse interrompido, talvez tudo estivesse melhor hoje, de um jeito ou de outro.

- Eles não estavam certos! Nada do que eles fizeram foi certo! Eles estão na cadeia porque o que eles fizeram não era certo.

- Alguns dos pesadelos… Tão vívidos. O céu escuro. Nuvens negras, tempestades violentas. Trovões e relâmpagos ecoando por todo o horizonte, como se o céu estivesse prestes a quebrar. Um portal se abre. Clarões vermelhos surgem. Almas condenadas caminham como zumbis pelas ruas. Minutos depois a Terra virou um lugar em ruínas e os humanos apenas carniça. Havia um líder. Apenas um vulto, nunca conseguiu vê-lo. Responsável por abrir o portal. Por trazer as criaturas para a terra. Eu sempre achei que isso fosse um dia acontecer. E eu sempre achei que eu talvez fosse a pessoa que tivesse de impedir isso. Você sempre faz um bom trabalho de segurar a risada quando eu falo Rafael, mesmo quando claramente acha tudo o que eu estou dizendo é engraçado de tão absurdo.

- Eu não acho nada disso engraçado.

- Se você estiver pensando que eu forçava essa teoria para ser o salvador de algo, então está certo. Esse foi o meu erro. Depois de tudo isso, eu precisava de algo para me motivar. Pais ruins. Nunca tive um amigo. Nunca tive uma namorada. Mas tudo isso poderia valer a pena se eu fosse o herói que salvasse tudo. Então eu não busquei a resposta certa. Eu fui atrás da resposta que eu precisava. E claro que não a encontrei. O que a gente acha que precisa e o que é certo são geralmente coisas diferentes. Acho que por isso minha cabeça doía tanto nestes momentos. Eu moldava a mensagem que eu recebia de acordo com minha conveniência. Eu não estava disposto a aceitá-la. No fim das contas, eu é que não estava sendo sincero. Comigo mesmo, entende?

- Nem um pouco. Cássio, eu tento não te julgar. Eu tento te entender. Eu sempre só tentei te ajudar. Mas tudo o que você está falando… - O calor estava insuportável. O ar parece pegajoso. Meu rosto pinga de suor. A visão turva. 

- Eu via um apocalipse nos meus sonhos. A terra destruída por demônios. E a Lua Negra.

- Eu lembro. Quase todos os desenhos que fazia na época tinham aquela lua.

- E achava que isso não só ia acontecer, mas tinha de ser impedido. Talvez até por mim. Mas agora eu entendo. O meu papel. Não sei porque é assim, mas assim é. Eu não estou aqui para impedir nada. Estou aqui para ajudar a fazê-lo acontecer.

- O que?

- O apocalipse.

No fundo, eu pude ouvir. Um som estrondoso. Passos. O cheiro. O calor. Tudo cresce

. Se aproximando. A porta se abre mais. Uma mão disforme surge.

- O que é isso? 

- Você sabe o que é isso.

- Eu estou enlouquecendo. Nossa família é doente e agora eu estou enlouquecendo também. 

- Você sempre me ajudou, Cássio. É verdade. O único que sempre tentou estar ao meu lado. Por isso eu liguei para você. Para te perguntar. Está tarde demais para conversas e mudanças. Agora chegou a hora da aceitação. Então... Vai continuar do meu lado?


Conto escrito por
Bruno Machado Carvalho

CAL - Comissão de Autores Literários
Gisela Peçanha
Paulo Guerreiro Filho
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado
Telma Marya

Tema:
Suspense Music

Intérprete:
Gabriel Andrade Produções

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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