
3x13 - No Picadeiro da Vida
de Carlos Henrique dos Santos
Ele, o palhaço
O palhaço está triste, caminha cansado segurando uma maleta preta de couro. O palhaço anda rápido, mesmo aparentando cansaço seus passos são firmes e decididos, olha fixo para frente e aperta com força a maleta de couro. O palhaço compra seu tíquete, não responde ao bom dia da moça da bilheteria, entra na estação, bebe um café sem açúcar e vai ao banheiro. Instantes depois o palhaço sai do banheiro, não traz mais na mão a maleta preta de couro e sim um saco colorido com brinquedos coloridos, ele não sorri, caminha pela estação como se procurasse alguém, para em frente ao painel de horário, olha-o por alguns instantes, dá alguns passos e se aproxima da mulher. O palhaço enfia a mão no saco colorido e retira uma arma. Ninguém se espanta, nem mesmo a mulher de pé a sua frente, que acaba de se virar em direção ao palhaço, talvez por ter ouvido o barulho dos passos do palhaço com seus sapatos de palhaço. Ele aponta a arma para a vítima, ela sorri, pensa que é uma brincadeira de palhaço feita pelo palhaço. Ele dispara, acerta o tiro bem na barriga da vítima, ela cai, pessoas correm assustadas, o palhaço também corre, antes retira os sapatos vermelhos de palhaço, descalço ele pula a roleta da estação e se mistura à multidão lá fora.
Eu, o policial
Essa foi mais ou menos a descrição do que aconteceu e que algumas testemunhas me falaram assim que cheguei ao local do crime. Segunda-feira de manhã, eu numa puta ressaca depois da maluquice que foi o jogo de ontem e tendo de lidar com essa mixórdia de informações. O zum zum zum dentro da estação me enerva, sinto calor, o ar no local está pesado, um clima de consternação domina o ambiente, há pessoas que agem com moderação e apenas olham a cena do crime, já outras se aproximam, enxeridas, e perguntam ao policial de plantão o que houve, quem morreu, se teve muito sangue etcétera e tal. Eu sigo pensando: mas que porra é um palhaço triste? Enquanto me aproximo da lanchonete os odores de fritura misturados ao aroma das laranjas sendo espremidas no aparelho barulhento aumentam ainda mais meu desconforto. Peço um café e sem querer me flagro sorrindo ao pensar que o palhaço deve ser um palhaço flamenguista que ficou triste com o gol de barriga do Renato ontem. Mas logo depois eu me recrimino, o cara matou uma mulher, caralho, como eu tô achando graça nisso?! Dou dois goles no meu café amargo, a boca resseca, o sabor áspero e rascante da bebida bate com força no meu estômago e me dá um calafrio, suo, peço uma água e tomo mais um remédio para dor de cabeça, minha gastrite arde, sinto toda a região abdominal queimando, quero vomitar mas preciso saber mais sobre esse crime, penso o que faria um detetive desses de literatura policial e me arrependo de não ter lido os livros que meu pai vivia indicando. Um dos seguranças das Barcas me chama num canto, me entrega a maleta preta de couro que foi deixada pelo palhaço no banheiro e eu a levo comigo.
Volto à delegacia e o tec tec tec dos teclados das máquinas se choca com o som de vozes dissonantes formando um emaranhado sonoro intenso e perturbador. Estou ficando velho, penso enquanto examino a maleta abandonada pelo palhaço e nada encontro. Tento obter algumas informações que possam ampliar meu repertório investigativo, ligo para uns conhecidos das delegacias da região perguntando se tiveram algum caso envolvendo um palhaço assassino e o máximo que consigo são risos e deboche. Percebo que até amanhã, quando os jornais certamente publicarão algo referente ao crime, não vou conseguir descobrir nada. Decido passar no prédio da vítima antes de ir para casa tirar um cochilo porque a ressaca está me matando, a azia se intensificou e um cansaço espalhado por todo o corpo vai sugando o pouco que me resta de forças. Mas valeu a pena, e como! Ando pelas ruas com uma expressão de felicidade estampada no rosto lembrando dos lances da partida de ontem. Acho que ninguém nunca decidiu um campeonato com um gol de barriga e esse certamente já entrou para a história.
Após conversar com o porteiro eu fico mais certo de que muito provavelmente esse foi um crime passional. No entanto nada foi encontrado no apartamento da vítima que sugerisse um casamento, um caso recente ou mesmo um amante. Por ora tudo que se tem são remendos de informações: segundo seu Jorge, porteiro do prédio onde ela morava, fazia cerca de três meses que a mulher havia perdido um bebê. Um pouco antes disso o namorado parou de frequentar o condomínio, o que indicava o fim do relacionamento. Ainda nas palavras do porteiro eles formavam um casal desses tipo roda-gigante, em constante movimento e cheios de altos e baixos, que viviam às turras, com brigas e separações rotineiras. Mas foi após uma discussão intensa, com ele passando com lágrimas nos olhos após ter batido forte a porta (eu ouvi daqui, afirmava seu Jorge), que o relacionamento teve um ponto final, já que depois disso ele nunca mais voltou aqui e ela passou a chegar de madrugada, às vezes já de manhã, nem sempre sozinha, o senhor entende? Arrematou o porteiro bebendo seu cafezinho enquanto prestava depoimento.
Em casa tomo um banho rápido e o contato da água fria, com meu corpo quente, produz uma sensação de bem-estar, como as que sentia na infância nas poucas vezes em que ia à praia e me percebia dominado por uma camada de alegria, prazer e encantamento que depois quase nunca mais vivenciei. Abro uma cerveja, acendo um cigarro e fico sentado pensando no palhaço e na estranheza desse crime. Enquanto o torpor do álcool produz seus primeiros efeitos no meu corpo indolente vou tentando entender melhor o crime: mortes desse feitio por aqui não são comuns. Não temos casos de matadores fantasiados assassinando pessoas pelas ruas, isso é coisa de ficção dos filmes americanos e causa estranhamento ver algo assim em nossa realidade já tão arrasada pela violência urbana que parece não ter limites em seu crescimento. Passo o restante da tarde assim: bebendo e fumando enquanto tento encontrar possíveis conexões que possam ligar o palhaço à mulher.
Entre um gole e uma tragada fico testando hipóteses, projeto possibilidades em busca de um mínimo de entendimento que me permita elaborar um caminho investigativo e à medida em que a luz e o silêncio do fim da tarde vão dando espaço aos sons da noite, com portas e janelas num constante abre e fecha, passos e risadas barulhentas das crianças e adolescentes se espalhando pelos corredores e vindo da quadra lá embaixo, invadindo feito uma ave meu apartamento, eu vou me deixando perder por entre a fumaça e o marasmo, até que o sono chegue e me domine por completo sem que eu nada consiga pensar que não esteja nos roteiros dos principais filmes de serial killers antes de ser totalmente tragado pelo vazio escuro e dormir.
Ela, a mulher
Quando percebeu que pudesse estar grávida, o primeiro pensamento de Ana foi correr e contar para Júlio. Seu corpo foi invadido por uma onda de calor, sentiu as faces corarem enquanto levantava à procura da bolsa, as mãos agitadas expressavam sua ânsia e empolgação e já estava pegando o cartão telefônico quando estacou o passo e respirou fundo. Não queria dar uma notícia dessas por ligação mas também não gostaria de frustrá-lo com um alarme falso, por isso decidiu aguardar por mais uns dias, fazer um teste de sangue e, só aí, no caso de um resultado positivo, falar para ele.
Mesmo que não tivesse o costume de pensar sobre a maternidade isso não era algo que ela descartasse, então o atraso na menstruação, percebido quando repassava mentalmente sua tabela, fez com que se sentisse um pouco empolgada com o que aquilo poderia representar de novo na vida de ambos. Eram um casal bastante instável, eles sabiam, no entanto havia um sentimento forte que os mantinha juntos e, mesmo com as constantes desavenças e brigas, os dois preferiam acreditar que aquilo fazia parte do processo de amadurecimento e, dessa forma, mantinham o namoro, ainda que alguns problemas mal resolvidos ao longo dos dois anos e meio de relacionamento mostrasse que talvez essa não fosse a melhor escolha. Decidiu então que deveria comemorar por sua conta e, mesmo que fosse necessário fazer isso sozinha, a comemoração em si ainda não seria a oficial, já que o resultado surgia apenas como uma possibilidade. E as possibilidades, ela gostava de dizer, eram um alimento que saciavam parte da sua fome de viver. Fome essa que, para ela, se tornava cada vez mais difícil de saciar.
Tomou um banho rápido e o macio toque da água contra sua pele foi aliviando sua ansiedade. Mais compenetrada e relaxada, abriu o vinho que havia recebido de presente na última visita do pai e pensou que agora deveria rever um pouco da sua postura. Álcool e cocaína, uma mistura que perpassava muitas das suas noites, não poderiam mais conviver com seu futuro filho. O bebê, sabia, poderia ser afetado, e ela não queria isso. Porém, como ainda lhe faltava a certeza, resolveu dizer para si mesma que naquela noite poderia comemorar, e foi o que fez. Enquanto sorvia o vinho em grandes goles botou uma música animada, se deixou levar pelo clima de euforia que impregnava o apartamento, se arrumou e saiu. Parou no orelhão da esquina, ligou para a amiga Clarice, falou que tinha uma baita surpresa e que não podia comemorar sozinha.
Encontraram-se algum tempo depois no bar que frequentavam juntas desde a época da faculdade. Rock pesado tocando, vozes, fumaça, mesas espalhadas pela calçada, buzinas, a agitação do ambiente rapidamente a envolveu e, logo após contar para a amiga da possível gravidez, um misto de ternura e melancolia dominou seus pensamentos. Ficou um tanto dispersa, perdida em si mesma, e foi trazida de volta à realidade quando alguns conhecidos se aproximaram puxando conversa. A interação então se tornou genérica, vaga e fluída como seus pensamentos. Instantes depois acompanhou Clarice ao banheiro e, quando percebeu o que a outra fazia retirando o canudo da bolsa, Ana ainda teve um pequeno vislumbre de dizer não, no entanto seus lábios seguiram fechados, nada falou enquanto pegava seu próprio canudo e inalava duas carreiras seguidas. Serão as últimas, disse para si mesma. Mas em seu íntimo ela parecia saber que mentia e então teve medo.
Sentimento que, assim como o feto que carregava, foi se moldando com o passar dos dias. O que antes era apenas uma ideia um tanto vaga em sua mente ganhou forma, corpo, vida: com isso ideia e criança se tornaram uma só coisa. E seu medo cresceu junto. Passou a se estressar com mais frequência, sentia uma raiva grande e destruidora de si mesma toda vez que tinha uma recaída. E isso era algo que vinha se tornando mais e mais frequente. Um dia, por volta dos três meses de gestação, com a barriga já se mostrando ao mundo e dando eco ao que seu corpo dizia, enquanto ainda se recuperava de mais uma noite em claro regada a cocaína e cerveja, ouviu de Júlio que era melhor fazer logo um aborto, pois assim como tem agido você está matando devagarinho nosso bebê, sua filha da puta. A batida da porta ecoou junto do “matando nosso bebê” por horas em sua cabeça. Decidiu procurar ajuda médica, talvez uma psicóloga. Entretanto os dias passaram e ela não agiu como pretendia. Para piorar a situação Júlio sumiu, não atendeu mais suas ligações bem como não abriu a porta quando ela insistentemente bateu, tocou a campainha e o chamou por eternos quinze minutos numa tarde chuvosa.
Desiludida, passou alguns dias dominada por um torpor que parecia lhe tolher os movimentos e as vontades, até que Clarice ligou e a convenceu que deveriam sair. Relutou de início, porém a fraqueza emocional que a abatia precisava ser superada. Necessitava ganhar forças, reencontrar o ânimo que fazia dela uma mulher animada e bem resolvida consigo mesma. Não precisava de Júlio para ser feliz e muito menos para cuidar do filho que traria ao mundo. Porque ela estava decidida a dar à luz ao bebê, estivesse Júlio ao seu lado ou não. Então saiu. Bebeu algumas cervejas sozinha enquanto esperava por Clarice e, ao avistar a amiga, sorriu sentindo que aquela seria uma noite inesquecível.
Nós, e o mal que nos habita
Enquanto ando pelos corredores do hospital envolto pelo cheiro de éter e sentindo ainda leves pontadas na parte lateral da cintura um misto de alívio e chateação vem se misturar às minhas reflexões. Saber que nenhum órgão foi afetado dava-me novamente um pouco de tranquilidade. No entanto, quando passo pelo amontoado de pessoas espalhadas nas salas de espera mal iluminadas, volto a ser invadido por uma exasperante chateação. Observando aquelas faces vincadas que expõe o mal-estar de cada um que foi levado até ali em busca de vida, pois é isso que todos ali buscam, viver, eu recaio novamente no erro de me culpar. É como se cada expressão desenhada nos rostos moribundos e extenuados, que exalam medo, receio e expectativas, refletissem o medo e rancor que carrego nos últimos meses. O óbito de ontem foi o terceiro seguido a concluir um caso que estava sob minha responsabilidade. E, se nas vezes anteriores, o sentimento de culpa se dissipou em meio ao turbilhão de acontecimentos que resultou nas mortes, dessa vez foi diferente.
Após encaixar mais algumas peças do quebra-cabeças com base no depoimento de Clarice solicitei o mandado de busca. Queria ter certeza de que a amiga não tentava apenas incriminar o ex-namorado, no entanto a comprovação do aborto (segundo o laudo do hospital onde Ana foi atendida uma das causas foi o descolamento prematuro da placenta. O médico que me atendeu ponderou que o uso de cocaína pode ter sido o motivo principal) somada aos relatos comprovados por vizinhos e pelo porteiro das repetidas brigas do casal contribuíam para que eu me encaminhasse ao apartamento de Júlio munido da certeza de que era ele o palhaço assassino. E que o crime fora na verdade sua vingança contra Ana devido à perda da criança após seguir usando drogas mesmo sabendo da gravidez.
Minha intenção era levá-lo à delegacia para colher seu depoimento. Mesmo com alguns indícios eu ainda não o prenderia, pois não havia provas suficientes para isso. Porém assim que toquei a campainha ouvi o som da arma sendo engatilhada e mal tive tempo de me jogar no chão atirando de volta. O tiro me atingiu de raspão na altura da cintura. Com medo e buscando me proteger efetuei vários disparos seguidos. Me escondi no vão da escada e aguardei. Assim fiquei por um tempo enquanto esperava por algum som vindo do apartamento de Júlio. Em vão. Quando os policiais chegaram e conseguiram arrombar a porta, pude ver o corpo do jovem no chão.
Em casa, fumando e com um copo de uísque na mão, eu sinto vontade de chorar, mas não consigo. Queria mesmo liberar esse nó que trava minha garganta, porém não sou capaz. Sei que terei que conviver com mais essa morte e o que mais incomoda é perceber como tudo nesse caso, desde o início, parece não fazer nenhum sentido. É como se no palco da vida nós fôssemos atores perdidos, que não decoraram o texto e ficam aguardando um o movimento do outro. E nesse intervalo entre agir e não agir a terra faz sua rotação, a vida passa, o tempo corre, e no fim fica só o vazio, como esse que me domina agora.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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