O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 04
— Deixe-me apresentar, sou doutora Márcia
Médici, cunhada de Leonardo.
—Doutora Márcia Médici? Pois a conheço – diz o
médico—assisti a uma de suas palestras no Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas e muito surpreso fiquei com suas análises sobre o comportamento
humano no início de um século que já é considerado o receptor inglório das
doenças mentais. Que prazer em conhecê-la pessoalmente! - cumprimenta-a com um
aperto de mão.
— Digo o mesmo!
O homem abre um sorriso, pudera, a beleza daquela
mulher era incomum para sua idade.
—Tento entender um pouco da confusa cabeça humana
– sorri, voltando-se para o sobrinho — não é mesmo, meu meninão?
— Meninão??? Hum! Que fulaninha sem sal sem
açúcar! O bicho já é um homem-feito, só ela que não percebe! Infeliz duma figa!
Repare, repare Suzicreide, como a bicha se acha... Tá parecendo um esqueleto
empinado naqueles saltos de quase dois metros – sussurra, às gargalhadas, com
um ciúme indisfarçável estampado à face.
— E como Leonardo está? – pergunta a psiquiatra.
—Ele enfartou. Mas graças a esta senhora, a quem
devemos parabenizar- aponta para Jacira —ele foi socorrido a tempo...
—A Suzicreide o salvou??? – admira-se,
desdenhando.
—Meu nome não é Suzicreide! - responde,
rispidamente.
—Não? Pois sempre achei que este fosse seu nome,
criatura. É um tal de Suzicreide para cá, Suzicreide para lá... Até cansa os
ouvidos!
—Tia, o nome dela é Jacira! – alerta-a Ricardo,
percebendo que a empregada não estava gostando dos comentários da mulher.
—Hum! Jacira? Tudo bem! Mas, de verdade, prefiro
Suzicreide, é mais alegre, não acha? Aliás, por que repete tantas vezes este
nome, é alguém que aprecia muito do passado? Uma avó, uma tia, uma vizinha...?
Hein, Suzicreide? Ops, desculpe querida, como posso ser tão atrapalhada? Deve
ser força do hábito.
—Ou da falta de educação mesmo! – responde
Jacira, sem pensar nas consequências, para a ira da mulher, que a fuzila com os
olhos.
—Bem, doutor, fale-nos mais de meu pai – o jovem
muda o assunto ao perceber o mal-estar.
—Senhor Leonardo Médici ainda não está fora de
perigo, está sedado, por isso peço, caso queiram vê-lo, que sejam muito breves.
—Podemos entrar, doutor? – pergunta Márcia.
—Claro! Mas como eu disse, sejam breves.
—Vamos querido, o tempo urge!
—Mas e a Jacira? – volta-se para a empregada, que
estava apoiada à parede, com os olhos fervendo de fúria.
—Ela não é da família, meu amor, deve ficar aqui,
aguardando como qualquer empregada, não concorda, Suzicre... Jacira?
—Se é o que a senhora diz...
Ricardo se compadece da mulher que o cria, mas
segue as orientações da tia e juntos adentram o corredor que os conduzirá ao
apartamento hospitalar de alto padrão.
—Posso até ser empregada, mas nunca fui tratada
como tal. Os Médici, a exceção dessa bisca, sempre me trataram com muito
respeito. Que vontade de meter uns tapas naquela cara de sardinha seca. Hum!
Sardinha seca mesmo! Vá primeiro arranjar uns nacos de carnes para cobrir o
esqueleto, porque tá precisando; do jeito como está, daqui a pouco o vento
leva. Faltou pouco para eu não a quebrar no pau! – ressente-se a mulher. — Só não
vou fazer nada por conta do moleque, que já está muito abalado com toda esta
história, senão...
Ao ver o pai conectado à aparelhagem que o
monitora, Ricardo não suporta o remorso e cai em prantos.
— Acalme-se, querido, logo ele estará de volta, é
um homem forte. Limpe as lágrimas e as deixe apenas para os momentos que se
fizerem necessários.
O celular dele recebe uma mensagem. É de Anna.
—O que quer essa garota? - pergunta-se, ao se
sentar numa poltrona - Deve ser convite para alguma outra festa. Tô fora!
Ele se assusta com o movimento do pai e se
levanta, deixando o celular cair.
—Não é nada, querido, dê-lhe um beijo e se vá! –
pede a tia. — Sabe, por mais que não pareça, este ambiente é muito deprimente.
E assim ele faz.
—A senhora vem comigo?
—Não, vou ficar mais um pouco, quero conferir se
a medicação que estão ministrando está de acordo com a literatura médica.
—Mas este hospital é um dos melhores, tia! –
estranha.
—Você sabe, sua tia é um pouco desconfiada! Um
defeito que o tempo não cura! – dá uma risadinha sem graça.
—Está certo! Amanhã nos veremos? Meus
medicamentos estão acabando.
—Claro! Aguardo-o no consultório.
Assim que o rapaz se retira, Márcia se aproxima,
olha o cunhado com cara de poucos amigos e depois solta uma gargalhada
sarcástica.
—Moleque, aqui! – grita Jacira, vendo-o sair.
—Que demora! E cadê a megera?
—Pare com isso! Ela resolveu ficar mais um pouco.
—Que fique mesmo por lá, ô mulher encruada, deve
ser falta de homem.
—Ei – repreende o jovem Médici. — Já disse, pare
com isso!
—Tá, tá, então vamos!
—Va-vamos nada! – diz, passando a mão pelos bolsos. —Esqueci o celular em algum lugar... Já sei! Deve estar na poltrona do quarto em que me sentei. Não gostaria de voltar lá! Sinto-me muito mal por ver meu pai daquele jeito!
—Pode deixar, vô lá buscá.
—Mas...mas...minha tia...
—Deixe aquela sardinha seca comigo, porque posso
não ter o sangue dos Médici, mas faço parte da família sim, como sempre
disseram dona Nathalia e seu Leonardo e não será uma porqueira daquela que vai
me impedir de fazer alguma coisa. Espere aqui! Logo estarei de volta!
—Gostou do show, Leonardo? Foi preparado
especialmente para você, meu querido cunhado! – diz a mulher, agora sussurrando
aos ouvidos dele. —Por pouco não perdeu o filhote, não é? Mas como teve medo...
Os batimentos do homem se aceleram assim que as
palavras lhe chegam...
—Sinto o cheiro de seu medo no ar... Como é
passar de mentor à cobaia? Terrível, não é? Pois assim também se sentem todos
aqueles que você desgraçou com aquele papinho de anjo e sorriso de demônio. Saiba, aquele
telefonema é o início da queda de um ser que ousou se imaginar um Deus.
Com o corpo trepidando e a face tomada por um
suor que não cessa, Leonardo respira com dificuldade, tentando se libertar das
investidas de Márcia, que se tornam cada vez mais agressivas, a ponto dele ser
arremessado às suas últimas lembranças.
O telefone toca na mansão. Jacira levanta-se de
uma cadeira que está entre a cozinha e o corredor e dirige-se à sala de estar,
quando é advertida pelos olhos de Leonardo, que não desiste de atender a
ligação. Tem a esperança de que seja o delegado com alguma notícia de seu
primogênito.
—Pois não? - pergunta o homem, com os lábios
trêmulos. — Aqui é Leonardo Médici, com quem quer falar?
Parada diante do patrão, a empregada rói as
unhas, não suporta mais tanta inquietação, almeja que as coisas retornem à
normalidade e que a ligação seja o sinal do céu de que o moleque esteja bem,
porque perdê-lo seria como perder uma parte de si, tal é o amor que nutre por
ele, cujos cuidados sempre foram o de uma mãe, não de uma empregada.
—Quem está falando? - exige o doutor, em vias de
perder o equilíbrio. —Eu não estou entendendo nada... Como? Quem é você? Fale
criatura!
—Você não se lembra de mim, Leonardo? Como pôde
ter se esquecido daquele que o fez tão feliz, ao aquecê-lo com seu corpo por
noites e mais noites, naquele quarto suntuoso, em que foram vivenciadas todas
as formas do amor mais profano que existe?
Ao identificar o dono daquela voz anasalada, um
arrepio percorre a espinha do patriarca dos Médici, que apavorado, procura
refúgio nos cantos da sala, quer que sua prosa seja mantida no mais absoluto
segredo, o que desperta a atenção de Jacira, que vê naquele gesto uma
possibilidade - agora não mais tão remota - de que Ricardo estivesse mesmo
morto e o seu corpo estirado em algum beco da cidade. Com um terço entre as
mãos, dobra as orações, apesar de já não mais acreditar reencontrar o garoto
com vida.
—O que você quer? - indaga, numa voz quase
inaudível.
— Nossa, quase não ouço sua voz!!! – sorri.
—Parece que o medo se apossou da sua coragem de outrora, fazendo-a refém de uma
história pérfida, que para o bem da humanidade, só eu tenho acesso.
—Fale, o que você quer? Por que me procura?
—O passado esconde muitas coisas, Leonardo,
inclusive as incertezas de um homem moldado pelo mais abominável dos prazeres,
que para se saciar, não pensou duas vezes em destruir as muitas vidas que por
ele ousaram cruzar o caminho.
—O QUE VOCÊ QUER? – levanta a voz, mas logo a
contém, não quer que Jacira descubra o teor da conversa. —O QUE VOCÊ QUER?
FALE! Fale... É dinheiro? Se for, dê o seu preço.
—Pelo quê? Pelo meu silêncio? Olha que sou caro,
muito caro! – gargalha o estranho.
—Diga que eu pago! - ordena o doutor, sentindo o
ar lhe faltar aos pulmões.
—É impressão minha ou você está mesmo com medo de
mim? Pois não acredito! Onde está aquele homem que se dizia acima do bem e do
mal? Que não pedia, mandava?! Dá-me vontade de gargalhar só em pensar como
devem estar esses seus belos olhos castanhos, diante de um sentimento tão
excitante quanto o MEDO!
—Como descobriu meu telefone? Como me encontrou? FAAALE!!!
Respostas não são obtidas, causando ainda mais
desconforto ao homem, que, intolerando a tensão, se apoia à parede; tenta,
desesperadamente, conter a dor que lhe aperta o peito.
—Fale!!! – insta mais uma vez; quase sufocado,
desabotoa o pijama para que o ar lhe invada os pulmões. —Fale!!!
O que se ouve como resposta é uma gargalhada
macabra.
—Fale!!!
—Ó, Leonardo, tu continuas o mesmo tolo de
sempre, como gostava de dizer Nathalia, a mãe de seu filho, que você tratou de
eliminar naquele acidente encomendado...
— O...o que você está dizendo? - pergunta,
alquebrado, a um passo do chão. —Eu não fiz nada!
—EU SEI DE TUDO, MEU AMOR! TUDO! - profere a
sinistra criatura, numa voz impostada, literalmente assustadora.
—Você...você...por favor, pare com isso! -
implora. — Sei que você quer dinheiro, basta dizer o valor, que em poucos
minutos estará em sua conta.
—Você sabe que não me interesso por seu dinheiro;
quero apenas vingança! VINGANÇA! – suspira, como se, por um instante, fosse
chorar. — Meu nome foi maculado por sua fraqueza e a forma de reparar todo o
dano que me causou é levando à morte a única cria que a pobre Nathalia o
presenteou.
—COMO? CRIA? QUE CRIA? NÃO!!! NÃO!!! AH NÃO, VOCÊ
ESTÁ SE REFERINDO AO MEU FILHO RICARDO? O QUE FEZ COM ELE? FAAAAAAAALE!
FAAAAAALE CRETINO!!!!!!!! - brada, abandonando de vez a
discrição.
Jacira, que a distância o assistia, entrega-se às
lágrimas; não tem mesmo ideia de qual seja o assunto, sente apenas que se trata
da vida do moleque.
—Este é o Leonardo que conheço! Finalmente a
máscara de bom moço cai!
—FAAAAAAAAAALE!!!O QUE FEZ COM MEU FILHO???– exige o homem, em prantos.
—SEU FILHO CARREGA NAS VEIAS O MESMO VÍRUS QUE O
ATORMENTA HÁ DÉCADAS, PORTANTO, NÃO SERÁ NADA DIFÍCIL CONDUZI-LO À MORTE! – revela o
desconhecido.
—Vo-você está men-mentindo... Meu fi-filho está
livre deste mal! Está sim! Deixe-o em pa-paz...o seu pro-problema é
co-comigo...
—ELE SERÁ O CORDEIRO CUJO SANGUE PURIFICARÁ MEU
ESPÍRITO, DEVOLVENDO-LHE O BRILHO E A BELEZA, QUE VOCÊ TRATOU DE
SACRIFICAR!!!!!!!!!!!
—NÃÃÃO!!!!!!!! MEU FILHO NÃO!!!!!!!!
—O que cê tá fazendo, criatura? Não vê? Seu
Leonardo tá quase tendo outro piripaque. – berra Jacira, entrando no quarto,
para a surpresa de Márcia, que lhe sussurrava, às gargalhadas, palavras
malditas.
—JACIRA?
—Pois agora acertou meu nome? O que fazia
pendurado no pobre? E com risadas de doido? Acho bom procurar um médico, porque
depois de cuidar de tanto maluco, tá ficando igual.
—Eu...eu...o estava examinando...
—Conte outra, pois esta não engulo! A senhora
estava gargalhando, como se gargalha de um miserável. Eu vi com estes olhos que
a terra a de comer.
—VOCÊ ESTÁ LOUCA? EU...EU SOU MÉDICA...
—E das bem chinfrins! Tinha certeza, sua vinda
aqui não era coisa boa.
—VOCÊ ESTÁ DESPEDIDA! – anuncia, recompondo-se.
— OI? – surpreende-se a mulher. — Eu não disse,
de tanto cuidar de louco, agora também tá sem os parafusos. Nem que a senhora
quisesse; sou funcionária do senhor Leonardo, não da senhora. E agora me dê
licença! Ah, tá aqui! – pega o celular de Ricardo na poltrona. — Agora saia da
minha frente, dona, antes que lhe arrebente com estas mãos que Deus há de santificar.
—Você...você...
—SOCORRO!!! SOCORRO!!! SOCOOORRO!!!
—Por que está gritando, criatura? – desespera-se.
— PARE!!!
PARE!!! PAAARE!!!
A equipe médica é atraída ao apartamento, para a
surpresa do especialista responsável, que ao constatar pelo aparelho os batimentos
cardíacos, determina:
—Ele está tendo outro enfarte! Corram,
enfermeiros!!!
—Eu estava pedindo ajuda antes que a senhora
finalizasse o que veio fazer aqui. De boba eu só tenho a cara, Suzicreide! -
responde a empregada, com a cabeça empinada, as mãos à cintura e os olhos a
engolirem.
Encerra com a música: (“Mares
e Montes” – Marcus Viana).
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução
Comentários:
0 comentários: