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Antologia Lendas Urbanas: E se forem reais? - 2x04

Conto de Ettel
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Sinopse: Um político participa pela primeira vez de um comício no saguão de um hotel em sua cidade tranquila e pacata, sem imaginar o que as paredes terão a lhe dizer.

2x04 - Quarto 00
de Ettel



    
        O homem faz seu palanque em um salão de reuniões improvisado frente a uma plateia pequena, previamente selecionada, composta por políticos conhecidos por apresentarem caráter dúbio. Parece haver alguma manipulação no cenário, mas ele acredita na proposta do evento. Nos arredores o clima é familiar; o hotel tem muros baixos, a vizinhança é a mesma de antigamente, e no saguão alugado do edifício de três pisos no centro daquele bairro de classe média- alta é comum haver convenções partidárias por alguma questão geracional e/ou afetiva basilar: apesar de haver outros espaços aptos a serem locados para tal, toda campanha nova começa naquele lobby. “Bons augúrios”, dizem os novatos na seara política; “Pra ser eleito, tem que pisar nesse chão!”; ou ainda: “Quem entra aqui e tem a sorte de ouvir a voz sempre se elege!”

            Sim! Além do fato de todos os políticos anteriores da cidade terem iniciado suas carreiras no hotel e da maioria de seus funcionários adorarem os eventos de pré-campanha, a força maior que direciona a vida política da cidade para esse lugar é o fato de ser de conhecimento geral que as paredes falam. E mais: só falam com quem “ é o escolhido” para ganhar o pleito. Ali, a vida de aspirantes ao mundo político é decidida com um simples sussurro dos concretos.

            É noite... O horário incomum para um discurso político. Daí o homem caminha em direção ao centro do átrio e repara através da porta de vidro que os hipotéticos muros que circundam o pequeno hotel  são, na verdade, apenas um denso conjunto de arbustos altos, ali há décadas, com ramas tão trançadas que engendram um bloco compacto: ocultam tudo, mas, se bem observados, é possível enxergar o outro lado entre as folhagens. Pelos pequenos espaços verdes, as casas vizinhas estão todas lá, bem perto.

            Ainda no início de sua fala um tiro eclode, o discursante vai ao chão, em ato de pavor. Ele se arrasta para trás de um móvel, olha através dos furos da vegetação esperando a polícia— que teoricamente teria sido chamada para acompanhar a reunião—, ou talvez os seguranças do hotel... Aguarda até que alguém se manifeste, mas todos saem andando num silêncio fúnebre prenhe de culpa e alguma sutil cumplicidade para fora do hotel, e ele fica só. Atônito, vigia em volta, por onde a vista alcança detrás daquelas paredes naturalmente dissimuladas, e constata que ninguém se interessa ou manifesta medo pelo estampido nada discreto.

            Um corpo sangra vivo. “O tiro foi para assustar, e não para tirar a vida” (analisou ele). Ao contrário dos outros, mas não ao mesmo tempo, caminha para dentro da edificação, em silêncio: perdera a noção do tempo e não sabe o quanto esteve a contemplar o corpo estendido quase aos seus pés. Congelado, não sentiu que fora abandonado. Não é que os outros fugissem... Não. Ele que, aparvalhado pela situação, não conseguiu esboçar movimentos. Apenas se recorda do uivo determinado do vento abafado fazendo o som típico da primavera, algo singular e calmante na situação adversa presente. Já dentro do salão de onde jamais passara em direção aos quartos, pega o interfone acoplado ao balcão que parece ser da recepção em dias normais de funcionamento do hotel e pressiona o botão “portaria”; com a fala embolada de pânico, pergunta qual o procedimento para sair dali. Cantarolando, o responsável do plantão diz, com voz em notas ritmadas a assoviar por entre os dentes: “hoje é dia de folga...” Ninguém o acompanhará em segurança até sua casa, constata, aturdido. Pensa no filho, acompanhado pela babá desde às 17h. “O horário dela está quase no fim, balbucia, consternado”.

            Todas as luzes são apagadas. “Isso aqui é um plano, querem me eliminar!”. Com o susto tremendo tem despertas todas as células do corpo, e agora passa a ser efusivo ao tentar convencer o segurança da entrada de que a ajuda é de importância vital para sair do local.

            As luzes de dentro do pequeno prédio também apagam. Não há mais ninguém. O funcionário diz: “Boa noite, aproveite a estadia. Aqui encerramos nosso turno: é a hora de uma bebida gelada”.

            Ele olha pela janela de vidro limpo, enxerga a si próprio em reflexo claro, e repara que morto já está, seja pelo medo que o corrói ou por um projétil que, obviamente, só pode estar por vir. Sua cor não parece mais humana: tomado pelo pavor, é como se sentisse cada unidade microscópica estrutural que compõe seu corpo indo embora, e o sangue estacionando nas veias, a embolar em coágulos. Pensa ter perdido a razão, mas acontece: as paredes começam a balbuciar um chamamento que, dada a situação, só pode ser direcionado a ele. Um estranho diálogo entre parede e um humano inicia-se, brevemente:

— Ora, você! Chegou a sua vez. Acredita? É só conseguir sair daqui com vida que terá a cadeira. Mas veja bem: o pacto precisa ser firmado. Você sabe do pacto, certo?

— Quem está aí?

— Bom, é o seguinte: o cargo é seu, desde que você me alimente com futuros candidatos. Sua primordial função nessa cidade, egoisticamente falando, é garantir que outras almas iniciem carreira aqui. Huuum, as almas entusiastas têm um sabor magnânimo!

— Você existe?

— O aviso foi dado. Estou, nesse momento, tirando sua alma sem te provocar nenhuma dor. Só uma leve tontura. Sente?

— Mas eu não permito.

— Ahh, já permitiu. Eu sinto sua verdadeira vocação. Nossa... Genuíno seu sabor.

— Eu sinto náusea...

— Já passa... Combinado, ok? Então, em alguns anos, aguardo por minha próxima ceia. 

            Ele desmaia.

            Morto está?

            A alguma ânsia por vida o faz atinar da necessidade de sair, pôr os pés para fora e atravessar o escuro. Há chance de sobreviver entre aquele limbo e o curto caminho em breu até sua casa. Sente uma leveza por baixo dos pés: eles flutuaram sustentando o peso considerável de seu ser no breu da noite, por cima do corpo estirado no chão e o carregaram, como que alados, até sua casa. Vem um flash, tudo brilha em sua memória, e quando acorda está em sua cama — foi feito sonho. A certeza de ter, de fato, boiado pela cidade, contra os princípios mais básicos da gravidade, não o apavora, mesmo sabendo da impossibilidade da coisa.

            Mas o que diabos aconteceu? Ligou a TV às 6:40 da manhã naquele dia pálido, um céu... Que cor é essa? E nota que na mídia tudo fora anunciado de forma oposta: os seguranças tentaram reanimar o corpo caído no chão... Há uma grande mobilização policial desde o primeiro estampido soado... As forças especiais circundam a casa para que nenhuma prova seja perdida nesse cabuloso caso do atentado contra o candidato novo da região... Grande comoção policial para levar um dos principais convidados daquela noite de volta à sua casa, que graças à rápida ação do chefe do plantão saiu do local em segurança...

            Seu queixo cai com a enxurrada de informações produzidas em tão astuta forma narrativa, e enquanto zapeia os canais nota que é isso: todos noticiam o mesmo. Pisca os olhos, gira a cabeça e olha através da janela, o céu ainda bege feito palha, a cor mutando para algo um quanto cinza, olha para os pés, antes alados ou algo do tipo, sobre o chão de tábua corrida de seu quarto. Eles querem entrar para baixo da terra porque agora qualquer lugar que pisa jamais será permanente. No espelho, o branco dos olhos ficou fosco. Lembra vagamente do diálogo do dia anterior no hotel e aceita, sem pesar, que sua alma fora devorada. 

            Sua morte havia sido anunciada. Se está vivo é porque deixam... Mas agora tanto faz: um homem sem alma não teme nada nem ninguém.

            A porta de seu quarto range lento.

— Papai, a babá dormiu aqui. Ela quer falar contigo agora!

— Bom dia, filhote. Caramba! Acabei de ter um sonho muito estranho... Já tomou café?

— Pai, ela está nervosa... Vem logo pra...

— Foi sobre o início da campanha, sabia?

            O semblante do menino põe-se alegre: — Ahh, então falaram contigo lá no hotel? Eu sabia, papai! Você é meu herói e meu novo prefeito!! Eeeee!

            Ele levanta, robótico, separa o terno cinza — da cor de seu ânimo e de seu frio na espinha com a ciência do menino sobre a voz —, e diz ao filho que hoje é dia de ficar de novo até tarde na rua, sem coragem para encará-lo. 

— A Aninha vai dormir aqui de novo, está bem? Diz que o papai paga em dobro, por hoje e ontem”.

            O menino sorri e estica os braços, pedindo colo.

           Obrigado a direcionar o olhar ao filho, nota que ali há mais um corpo sem alma: esclera em um opaco triste.

            O pacto não era apenas sobre uma alma... 

            “Quem mais eu matei?”, agoniza ele.


Conto escrito por
Ettel

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Gisela Lopes Peçanha
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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