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Antologia O Mal que nos Habita - 2x10

Conto de Paulo Guerreiro Filho
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Sinopse: Um diário revela  a natureza oculta de um estudioso do misticismo.

2x10 - Espelhos que se Deslocam
de Paulo Guerreiro Filho


Ao cair do sol atrás das montanhas ao longe, sentei-me com os diários de Paulo a decifrar sua caligrafia estilo cardiograma revelando sua trajetória ao ritmo de seu coração. A verdade sobre o conjunto de diários é que Paulo perambulou pela tênue linha entre a areia e o mar, a tênue linha de jogar e vencer sem quebrar as regras, ao mesmo tempo, não jogando segundo elas, ocultando-se neste lugar entre o mar e o morro. 

Dizem, o que ainda não foi comprovado, que gatos são criaturas entre mundos, tal afirmação causa mais dúvidas do que esclarecimentos. Por trás de uma lenda, existe um sentido real, um fato ou um evento.

Aconcheguei-me ao lado da lareira na biblioteca do Hostel. Rafael mantinha as prateleiras trancadas de forma que os hóspedes pudessem ver os títulos sem livre acesso às obras, sabendo de meu ofício, as manteve abertas para mim. Nas prateleiras mais abaixo, onde a tampa de madeira ocultava os adormecidos diários, chamou-me atenção um deles mais à esquerda cujo marcador de madeira em forma de punhal selecionava uma história. O rosto de um índio beiçudo vinha entalhado de um lado da empunhadura e, no outro lado dela, ranhuras de formão lembravam uma serpente. Intrigante o marcador estar naquele caderno. Teria sido deixado lá pelo próprio, ou algum curioso passou por aqui. Troquei o volume que antes me deleitava, por este indicado pelo marcador de páginas:

— Índio beiçudo de madeira — sussurrei. 

Optei por preservar a narrativa tal qual ela se encontra, porém com ajustes que a minha limitada literariedade permite. Fui enviado para estudar e descobrir. Os diários de Paulo eram minha melhor pista, cujos fatos passo a relatar:

“09/09/09.

Mais um final de inverno, Mia, logo após ter parido seis lindos gatinhos, cultivava ervas no terreno do Hotel-Barco em frente ao Hostel. Desumanos cultivados, cães de rua a cercaram. Cérbero, o líder, num bote sorrateiro estraçalhou seu pescoçinho e a ostentou como prêmio até que Ângela e Jorge corressem tardiamente em seu socorro. Ainda arrastou a pobrezinha pela mandíbula por uma quadra. Vendo que eles não sairiam de seu encalço, largou-a para salvar sua pele. Os outros se articularam em debandada logo que intuíram o reverso da caçada.

Antiga armadilha, semeada pelo Antagonista para mim, não para ela, desavisada caiu em meu lugar. Naquela noite, a tristeza tomou conta do bando. Naquela semana, quatro dos seis recém-nascidos pereceram de fome e frio, não pude ajudá-los, resgatei dois. 

Na esquina da praia, logo em frente aos quiosques, uma gorda senhora de meia idade alimentava e mantinha cachorros de rua num terreno baldio, ela poderia adotá-los, mas sempre é melhor para a alma humana não se comprometer, tampouco havia na cidade carrocinha ou um serviço que zoonose que funcionasse. 

Mia ficou assim conhecida pela insistência em chamar-me com seu miado berrado. Carinhosa, conquistou seu lugar no bando. Eu logo vi sua avançada gestação e providenciei um lugar calmo e reservado onde ela pudesse trazer ao mundo seus filhotes. Uma ninhada de seis. Eu a enterrei perto do muro onde selvagens pés de boldo brotam. Enterrei seus quatro gatinhos ao redor dela. Nos dias que vieram, o sentimento de união carregou-nos para lá. A esperança de que ela se levantaria, forçava-nos à singela reverência, ora sentados sobre as patas traseiras, ora deitados ao egípcio contemplativo estilo até que o cheiro de sua presença se dissipasse”.

Enquanto eu dava formas aos manuscritos de Paulo, Rafael trouxe mais lenha, a temperatura despencava ao avançar da noite emprestando a sensação térmica das montanhas, que cercavam o vale enfeitando a orla:

— Matheus, tudo bem aí com os livros? — Está tudo nos conformes? — perguntou Rafael alimentando o esmaecido fogo com lenha nova. 

— Eu notei que um dos diários estava marcado  — eu disse com ar meio descontente.

— Outro esteve aqui antes de você. — Era um jornalista. — Ele entrevistou Ângela. A única pessoa que trabalhou para ele naquela época. — Um enigmático sorriso me dizia que Rafael contava menos do que sabia.

— O que houve com ele? 

— Ele sofreu um terrível acidente e faleceu. Já faz tempo isso. — As entrevistas dele estão à direita dos diários. 

— E Paulo, você o conheceu? Eu perguntei na esperança de ouvir algum detalhe.

— Sim, ele confiou o hostel a mim antes de desaparecer. Eu e Sandra vamos ao mercado antes que feche, você quer alguma coisa?

Essa pergunta foi uma forma educada de me desconversar, lembrei-me do vinho que eu havia colocado para gelar mais cedo e retruquei: 

— Não, já tenho tudo o que preciso. 

Tanto ficar sozinho no Hostel por algumas horas, quanto a notícia de não ser o primeiro a explorar a biblioteca, me causaram desconforto. Deixei de lado este sentimento e ative-me ao ofício de escriba:

“No mês seguinte, uma menina com seus pais hospedaram-se. Logo percebi que ela, por volta de seus quatro anos, já era deslocada de seus pais. Dissimulado casal, fingiam amáveis para obterem para si algo a mais: ou uma extensão no horário do café da manhã, ou um desconto nas diárias, ou alguma quebra nas regras da casa. Atrás de amarelados sorrisos estão ocultas intenções, mas não para mim. Entender a natureza humana e seus artifícios é o cerne do terceiro olhar, depurar alma humana é um delicado segredo reservado para poucos. Pela mediana conversa de meu hóspede, revelou ser ele um aposentado assessor de alguém importante. Valiosa legislação propicia um homem aposentar-se ao redor dos quarenta.   Ele passava bebendo, ela passava reclamando dele, mas se calava quando eles iam aos quiosques à beira-mar a uma quadra daqui. Lá ela podia relaxar “expondo seu corpo à brasileira”, enquanto a menina brincava na areia e seu marido enchia a cara declamando ideologias varzeanas com conhecidos beberrões de sempre. Os dois atentos cada um ao próprio umbigo, pouco olhavam para a menina, o que me deu espaço para aproximação. Numa ensolarada manhã, antes de saírem para os quiosques, fiz-me carinhoso ao ver a menina sozinha brincando no jardim à espera dos pais. Rocei-me nas pernas dela, sentei à sua frente e docemente a chamei para que me abraçasse com força, pegasse em meu rabo com suas mãozinhas ainda sem força. Enrosquei-me em seus crespos cabelos até sermos uma só bola de pelos. Brincamos juntinhos até a hora d’eles a levarem para os quiosques da orla. Eu os acompanhei, acima de suas cabeças, sem ser percebido. Caminhando por cima do muro alto, divisa entre a calçada e o terreno baldio, que se estende até a orla.

De cima do muro, pude ver a gorda senhora sentada lá numa mesa de um quiosque. Quando a família chegou, o grande cão preto, mistura de pastor belga com alguma coisa grande, estava deitado aos pés dela, os outros, deitados ao redor, misturados à paisagem urbana. Logo que chegaram o pai pediu algo para beber, meu cheiro aderiu-se à pele da menina, meus pelos misturaram-se com seus crespos cabelos castanhos, todo esse odor, atraiu o grande cão preto para perto dela. De longe, me eram conhecidos aqueles movimentos dissimulados. De casa, premeditei a tragédia. Aproximei-me até onde eu pudesse ver e a minha presença passasse desapercebida.

A simpática gorda disse à menina que o cão era mansinho e não a morderia e que ela poderia fazer carinho nele sem medo, e ele a deixou passar a mão de modo que o pescoço dela ficou à altura de sua mandíbula. Meu felino odor entrou-lhe pelo focinho irrigando seu instinto matador. Com repentino impulso, Cérbero estraçalhou o pescoço da menina e com feroz sacolejo, arrancou-lhe um pedaço!

Logo as pessoas começaram a gritar e a arrastar cadeiras e mesas. Garrafas e copos caíram no chão, o pai que estava de costas para a cena, ansiando pelo álcool ainda no balcão, nada ele pode fazer. A mãe, com o rosto ao sol, exposta como carne no açougue. Nada ela viu, nada ela pode fazer. O pai gritou. A doce garotinha caída no chão afogava-se em sangue. Atônita, a mãe não reagiu. O cão fugiu e a senhora gorda evadiu-se disfarçadamente. Com sangue nos olhos, o pai voltou-se para o cachorro e correu junto com os homens que estavam no quiosque atrás do bicho. Esqueceu sua filha estrebuchando no chão. Eu corri o mais rápido que pude de volta para cima do muro, enquanto eles, junto com pessoas que desciam a rua rumo aos quiosques, encurralaram o cão junto ao mesmo muro de onde pude eu observar tudo. Vendo-se encurralado, a fera mostrou os dentes e rosnou. Um rapaz veio correndo, furou o cerco e chutou-o na cocha traseira. O cão rodopiou. Outro se aproveitando da covardia, encheu o pé na mandíbula do animal extraindo grunhido do esôfago. 

O cão voltou os olhos para cima do muro, onde eu estava, ganhou raiva e forças, avançou na canela de um deles e o derrubou. Então o pai da menina golpeou o cão Cérbero entre os olhos com um pau que lembrava uma maça. Ele largou a perna do sujeito. Um segundo golpe na cabeça!  O cão tonteou e caiu no chão. Respirando sangue pelo focinho e imóvel no chão, voltou-me o olhar com um só desesperado olho.

Retruquei com o mais debochado olhar disponível em mim, torcendo levemente a cabeça para o lado num breve olhar glacial de satisfação e ironia.

Com uma paulada, o pai amassou a cabeça do cão! Sua menina também morreu ainda antes que ele pudesse retornar ao seu socorro!

De todos que adentraram em meus domínios eu escolhi este, porquê seu humano coração era como uma janela de vidro de impecável transparência. Tudo estava lá esperando pela motivação certa. Se eu pedisse a ele: vai lá e mata o cão do inferno para mim, ele dissimularia um sentimento altruísta, ou algum sofisma mal elaborado e me negaria este pequeno favor. Espelhada estava a forma. O mal pereceu no ponto de onde partiu. 

Três dias depois, pude ver Mia pulando e brincando no jardim com seus gatinhos já crescidos. No final da tarde, ela ganhou o muro, parou na passagem entre as grades e as trepadeiras e me olhou. Cada um de seus quatro gatinhos pulou o muro, depois do último ganhar a rua, ela lançou um derradeiro olhar para os dois que ficaram e completou a travessia. Mia e seus quatro gatinhos nunca mais foram vistos.”

Depois de um tempo meditando sobre as transcrições, desci as escadas para encher meu cálice com vinho. Quando voltei, o marcador de livros com o índio entalhado havia retornado à estante e selecionava páginas dentro dos manuscritos da entrevista que o jornalista fizera com Ângela. Paralisei ao lê-las: 

— É a minha caligrafia — sussurrei.

Conto escrito por
Paulo Guerreiro Filho

Imagem
Paulo Guerreiro Filho

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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