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Flor-de-Cera: Capítulo 04

Novela de Carlos Mota
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FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 04


George revida a agressão verbal com uma bofetada que a joga ao chão.
– NUNCA MAIS FALE COMIGO NESSE TOM! – quebra o colar em pedacinhos e retorce o pingente; ao jogá-lo no chão, pisa com força. – O seu “mimo” está debaixo de meu sapato, assim como você – sua frieza impressiona por se tratar da própria esposa.
Dirige-se à escadaria, quando é interpelado pela mulher.
– O que ganhou com tudo isso? – machucada por dentro, verte-se em lágrimas.
– PRAZER! – profere, olhando-a com fervor.
Sobe as escadarias como se nada tivesse acontecido. Em prantos, Catharine arrasta-se sobre o piso frio. Chama Ernestina, mas sua voz, esmorecida, não chega à criada. Chama de novo, dessa vez, com as últimas forças que lhe restam.
– ER-NES-TIII-Naaaa – desfalece.
Ao ouvir seu nome, a empregada se desfaz da rotina do lar e corre auxiliá-la. Quando adentra a sala de jantar, encontra a patroa caída num canto, desacordada, com sangue escorrendo pelo rosto. Abalada, berra por socorro.


George ouve os gritos da empregada e, como se nada tivesse acontecendo, despe-se e entra no chuveiro. Um sorriso amarelo toma-lhe a face. Ao terminar o banho, veste-se com um pijama de seda e deita na cama, de onde confessa:
– Falta pouco!
– Ernestina, o que está acon... – assombra-se o motorista, ao adentrar a sala de jantar e encontrar Catharine desmaiada.
– Venha, Joaquim! Ajude-me, por favor! – pede, apavorada.
– Dona Catharine... mas... mas... O que aconteceu?
– Vamos, homem! Venha! Depois conversamos... Pegue-a no colo e traga-a para... – depara-se com uma realidade assustadora: para onde levá-la? Se George a ignorou, mesmo numa situação como aquela, deveria levá-la para o quarto do casal?
– Ela está sangrando, Ernestina! Aonde devo levá-la? – os papéis se invertem, agora quem exige uma atitude imediata é o motorista. – Fale, mulher!
A criada permanece inerte, olhando as  escadarias,  quando  uma súbita vertigem a faz apoiar-se à mesa do centro e a fechar os olhos. A imagem de Alana lhe surge como trovão. Assustada, reabre- os, correndo-os ao redor como se quisesse encontrar algo. O coração bombeia o sangue acelerado, enquanto todos os cantos da sala são submetidos a uma análise minuciosa. A vertigem cessa quando avista, a alguns passos, o reluzir de um objeto. Toma fôlego e se inclina para pegá-lo. É o pingente retorcido com parte do colar. Um arrepio lhe corre a espinha! Não estava acreditando no que via, parecia coisa de novela, aliás, se alguém contasse, nem ela mesma acreditaria. Aquilo que estava na palma de sua mão era o colar da menina.
– Use o colar que Alana lhe deu. Acha que aquele demônio perceberá? Ele só se importa com o vestido, porque, para ele, acima de tudo está o dinheiro. Não compra a felicidade, mas pode destruí-la sem pena – relembra Ernestina.
Joaquim não entende a criada que, à primeira vista, parece imersa em um transe.
– Então ele foi capaz de uma estupidez dessas? E a culpa foi minha! – confessa, apertando o pingente contra o peito. – Mas ele me paga! Venha, Joaquim, traga Dona Catharine para o meu quarto.
– Para o seu quarto? E o quarto dela?
– FAÇA O QUE ESTOU MANDANDO! – determina.
Então cumpre a ordem sem entender o porquê. A mulher é  posta na cama, enquanto a criada pega algumas gazes para limpar o ferimento.
– Quem fez isso, Ernestina? Por acaso ela caíra da escada?
– NÃO! – monossilaba a mulher.
– Eu pensei que ela tivesse caído...
– Você ainda não entendeu, Joaquim? – entrecorta-o. – Foi aquela peste que fez isso.
– De quem está falando? Do senhor George?
– E há outra peste nessa casa? Hum! Isso não ficará assim! – repete, dando as costas a Joaquim.
O sangramento não estanca; por não aparentar profundidade, causa estranheza nos empregados, que se afligem.
– O ferimento não para de sangrar... Meu Deus! Será que ela vai morrer?
A pergunta cai como bomba no coração da empregada, que se contrai pelo remorso.
– O que vamos fazer, Ernestina? Não seria melhor levá-la para o hospital? Fale, mulher, está me deixando agoniado!
Joaquim não se aguenta de dor. À sua frente, a deusa de todos os seus mais íntimos desejos fenece. Nunca esteve tão perto dela e agora que tem a oportunidade, é para assistir a sua perda. Que destino injusto é esse que lhe prega peça de tanto mau gosto?
– Segure esse algodão enquanto ligo para o doutor Rubens... Vá, vá! Ô bicho lento!
Joaquim não é lento como diz a empregada, simplesmente é cortês. Gesto que muitas pessoas já não cultivam mais. Enquanto comprime a ferida, ele observa a mulher que lhe havia despertado  para os sonhos novamente. Aqueles lábios carnudos, ainda que roxos, pareciam chamá-lo. Como resistir àquela tentação?! Fechando os olhos, arfa com dificuldade.
No íntimo, sente-se culpado por tais pensamentos, afinal, o momento é de crise; mas desde quando amar alguém com a alma é algum crime? Os valores estão subvertidos, porque crime é o que fizeram com ela.
Espancar é crime e deveria ser hediondo, para que ninguém mais o cometesse; entretanto, quem se presta a esse tipo de barbárie é ovacionado por parte da sociedade tradicional, porque se a mulher apanha, certamente fizera algo de muito errado ao marido. Quanta idiotice! Se ouvissem mais o amor e o pregassem como pregam essas bobagens, o mundo seria outro, talvez melhor.
– “Não há disfarce capaz de ocultar o amor quando ele existe, nem de simulá-lo quando já não existe”, como disse o brilhante Rochefoucauld¹, certa vez – sussurra a empregada, à espreita.
– EU TE AMO, Dona Catharine! – confessa à mulher, ainda desacordada. – E não deixarei que façam isso de novo com a senhora. Não deixarei! Prometo por tudo o que há de mais sagrado nesse mundo – limpa as lágrimas. – Se lhe tocarem outra vez, serei capaz de qualquer coisa, até de... MATAR!
Ernestina os deixa a sós e senta à mesinha da cozinha, muito comovida. Que espécie de amor era aquele? Real, surreal, platônico..? Não sabia definir, mas que era divino, ah, isso era!
O médico chega à mansão e é assistido por George, da janela do quarto.
– O que houve com Catharine, Ernestina? Que mal lhe acometeu? – exige o doutor.
Ernestina apenas o vê com serenidade e antes que ele se aventure a uma outra pergunta, responde:
– Uma coisa horrível!
– E o que foi?
– Veja com seus próprios olhos...
Ela indica o quarto. Ele empurra a porta e vê Joaquim beijando a mulher, com uma parte da roupa manchada pelo sangue.
– Mas o que é isso? – cobra, alterado, o médico. – O que pensa estar fazendo, meu rapaz?
– SENHOR??? – surpreende-se o motorista, ao avistar George à sombra do doutor Rubens Arraia. 
O vereador surta ao perceber a pequena proximidade entre Joaquim e a mulher.
– O QUE ESTÁ FAZENDO PERTO DE MINHA MULHER, MATUTO? ALIÁS, O QUE ELA ESTÁ FAZENDO NESSE MUQUIFO? MEU DEUS, VOCÊ A MATOU? – inquire com ira ao se atentar à mancha de sangue na roupa do criado.
– Não, se... se...
Percebendo que é a única testemunha do beijo roubado pelo motorista, o médico aproveita a ocasião para desviar o foco da conversa para o ferimento.
– Joaquim, o que aconteceu? Fale para nós! – agiganta-se com o intuito de intimidar o chofer, dessa forma, ele se perderia na explicação e o fato permaneceria em segredo. – O que dona Catharine faz num quartinho como esse?
– Ela estava caída na sala e resolvemos trazê-la para cá, doutor Rubens – responde Ernestina, adentrando ao quarto e fulminando o camarista com os olhos tomados pela cólera.
– O QUE ACONTECEU COM MINHA MULHER? POR QUE NÃO ME CHAMARAM? – finge, completamente comovido.
– Covarde! Cínico! Esse bicho está mais para o pai da mentira que para defensor dos pobres e oprimidos – confidencia-se a empregada. – Se eu pudesse, dava um tiro nesse cão.
– Nós o chamamos, senhor! – ironiza a empregada. – Mas acho que seu sono é muito profundo, porque até os defuntos do cemitério se levantaram com meus berros, menos o senhor.
– O QUE QUER DIZER COM ISSO, MUCAMA ATREVIDA? QUE A IGNOREI? – volta-se para Joaquim. – E VOCÊ, O QUE TEM A VER COM TUDO ISSO? POR QUE ESTAVA AGACHADO AO LADO DE CATHARINE?
– Estava pressionando o algodão contra o ferimento enquanto eu localizava o doutor Rubens Arraia – responde Ernestina no lugar de Joaquim, que se refugia ao lado de um guarda-roupa da era de Geisel, o ditador.
Os olhos da empregada engolem os de George, que retraído, prepara a vingança. A guerra só não explode porque doutor Rubens intervém, pedindo para que todos se mantenham afastados enquanto examina a única herdeira dos Dumont.
– É impressionante o que acontece nessa casa. Hum! Minha esposa cai da escada e, ao invés de me chamarem, preferem trazê-la para um pulgueiro fétido como este.
– Aqui não há cadelas nem cães, vereador! E se existirem, certamente, estão em qualquer outro quarto do primeiro andar – dispara a criada.
– Como assim? Caiu da escada? – desafia o motorista, encorajado pelas palavras de Ernestina. – Pode ter acontecido outra coisa.
Joaquim é espezinhado pelos olhares enraivecidos do camarista, que se mostrava aturdido com a coragem repentina do chofer.
– Boa pergunta! – diz o médico, levantando-se. – Como Vossa Excelência tem a certeza de que dona Catharine escorregara mesmo na escada? Essas marcas em seu rosto são de dedos de uma mão humana e o ferimento, pela profundidade, não me parece causado por um tombo de escada, até porque, se eu estiver correto, a sua tem uns quarenta degraus, e, uma queda nessas condições, poderia ser fatal, o que não é o caso!
– Responda ao doutor, senhor George! – provoca a empregada. – Eu não me lembro dela ter retornado aos aposentos após sua chegada. Eu a deixei na sala de jantar e me recolhi à cozinha; aliás, se ela tivesse mesmo sofrido uma queda, o senhor não perceberia? Estavam juntos, não? Tem alguma coisa estranha em toda essa história, não é, doutor Rubens?
– Quem sou eu para afirmar qualquer coisa, Ernestina! A única afirmação que posso fazer é a de que dona Catharine não sofrera uma queda tão brusca.
– Não estava com Catharine... – titubeia o vereador, tentando dissipar os olhares de dúvidas. – Precisei dar uns telefonemas para... Bem... Catharine preferiu...
– ELA NÃO CAIU DA ESCADARIA! – sentencia a empregada, entrecortando-o. – Não é, Joaquim? Diga ao doutor como a encontrou?
– Ela não caiu mesmo, doutor! – responde o chofer, acompanhado pelos olhos de águia do patrão.
George pretendia desmerecê-lo, quando Ernestina, de relance, mostra-lhe o pingente com parte do colar. Ressabiado, o vereador recua e se dirige ao médico.
– É... deve ter sido um engano! Deixe-me levá-la à alcova. Oh, meu amor, o que fizeram contigo? – diz, como se comovido, com as mãos descendo delicadamente a face dela. – Como eu te amo! Venha, vou cuidar de você.
Pega-a nos braços e a conduz para os aposentos do casal, tendo à sombra os criados e, muito mais atrás, o desconfiado doutor Rubens Arraia.
No quarto permanecem apenas o médico e a paciente, que, por sinal, recobrava aos poucos a consciência.
– Impedido de entrar em meu próprio quarto! Hum! Quem esse “medicozinho” pensa que é? Por acaso o presidente da República? – esbraveja o político, enquanto toma uma dose de uísque.
– O senhor pagará por tudo o que fez a Catharine... – diz a criada, aproximando-se dele, pelas costas.
– E o que eu fiz a Catharine?
– Imagine quando seus eleitores souberem que o senhor espanca a esposa... Será um escândalo devastador! O senhor não se elegerá mais nem para faxineiro da Câmara.
Diferentemente do que ela imaginava, o vereador não se abala, abre um sorriso cínico e faz uma ameaça velada:
– Imagine se uma bala perdida atravessasse as paredes dessa casa e atingisse sua nuca...
– ...bala perdida em Vila dos Princípios? – debocha. – Não me faça rir, praga dos infernos. Melhor arranjar outra, essa não colaria.
– Será mesmo? Alguns gatunos invadiriam essa mansão em busca de pedrarias e, na troca de tiros com a polícia, uma bala mudaria o rumo e atingiria a sua cabeça – sussurra, deleitando-se com a súbita apreensão da mulher.
– Teria a coragem de chegar... a esse ponto? – pergunta a mulher, tropeçando nas palavras.
– Da mesma forma que pisei em Catharine e em seus mimos nostálgicos – sussurra-lhe aos ouvidos, sendo assistido, à distância, pelo médico.
– Vereador, posso falar a sós com o senhor por um minuto?
– Como ela está, doutor? Se algo lhe acontecer, preferirei a morte!
– Ela está melhor! Inclusive, se Ernestina puder acompanhá-la enquanto conversamos, agradeceria.
– Por mim, tudo bem! – diz a mulher, agora se voltando para George. – E para o senhor, algum problema?
– Não! Nenhum! – as palavras lhe correm os lábios como se fossem veneno de cobra.
– Ave, subirei essas escadas com cuidado, vai que eu leve um tombo também, né? – mostra de novo o pingente a George, aproveitando-se que o doutor estava de costas para ela.
– Por aqui, doutor... – o vereador lhe aponta o escritório. – Por favor!
Ao ouvir que sua musa convalescia-se, Joaquim correu para o seu quarto, deitou-se na cama, abraçou o travesseiro e sorriu. Sorriu como nunca! O medo de que o doutor o entregasse estava em segundo plano, porque o que o deixava feliz aquele momento era o beijo que dela havia arrancado. Que lábios saborosos! Se morresse agora, morreria feliz, afinal, para ele, dona Catharine era mais do que uma aspiração lasciva... Era a imagem feminina de um Deus inatingível!
– Agora estamos só nós dois, vereador! – diz o médico, fechando a porta.
– Sim! – arruma-se na cadeira, revelando nítido desconforto com as palavras do médico.
– O senhor sabe há quantos anos atendo essa família, senhor George... de quê mesmo?
– O senhor sabe, doutor Rubens, George Dumont!
– Negativo! Esse não é o seu nome de batismo, vereador; se o fosse, seus pais seriam os patriarcas dessa família e não os de Catharine Dumont.
– Onde o senhor quer chegar, doutor Rubens? Pensei que fosse me relatar o estado de minha esposa...
– E irei! – interrompe-o. – Antes, tenho uma pergunta a lhe fazer, senhor... Jorge da Silva, ou esse não é o seu verdadeiro nome?
George se cala, curioso com o desenrolar da conversa.
– Diga-me, esse não é o seu verdadeiro nome?
– Sim! – limita-se.
– Se precisa tanto da família Dumont, mais precisamente da pobre Catharine e de seu sobrenome para se alçar ao poder e vender um status que sua origem não pode lhe proporcionar, por que então se prestou a um ato tão vil como aquele?
– Eu não estou entendendo...
– Não?! – corta-lhe o médico, com a surpresa estampada à face. – Faz  mais de quarenta anos que presto serviços a essa família e é a primeira vez que sou chamado para atender a uma vítima de espancamento – no íntimo, Rubens sabia que isso não era verdade. – Ou Catharine não foi espancada pelo senhor?
__________________________

1. Cínico, ácido, humorista, pessimista, filósofo, o duque francês La Rochefoucauld foi sobretudo um dos maiores frasistas do século XVII de que se tem notícia. Muitas delas (ele as apelidou de máximas) repetimos até hoje sem o devido crédito.



autor
Carlos Mota

A novela "Flor-de-Cera" é remake de "Venusa Dumont - da memória à ressurreição" de Carlos Mota
 
elenco
Grazi Massafera como Catharine Dumont
Thiago Lacerda como George Dumont
Ricardo Pereira como Joaquim
Elisa Lucinda como Ernestina
Carlos Takeshi como Tanaka Santuku
Miwa Yanagizawa como Houba Santuku
Jesus Luz como Pietro Ferrara
Lucinha Lins como Franceline Legrand Dumont
Lima Duarte como Dilermando Dumont
Herson Capri como Doutor Rubens Arraia
Tonico Pereira como Moacir
Werner Schünemann como Paineiras Ken
Rosi Campos como Adelaide
Humberto Martins como Alberto Médici
Cauã Reymond como Ricardo
César Troncoso como Zé dos Cobres
Ilva Niño como Josefa
Selton Mello como Zelão
Matheus Nachtergaele como Meia-noite
Caio Blat como Delegado de Vila Bonita
Caio Castro como Leandro
Alexandre Borges como Doutor Jaime
Caroline Dallarosa como Carmem
Fernanda Nobre como Stela

participação especial
Stênio Garcia como Doutor Lúcio
Drica Moraes como Desirê
Marco Nanini como Chico Santinho

atores convidados
Ary Fontoura como Doutor Tobias
Alexandre Nero como Júlio Avanzo
Elizangêla como Maria

a criança
Valentina Silva como Alana

trilha sonora
Lágrimas da Mãe do Mundo - Sagrado Coração da Terra (abertura)

desenhos
Andrea Mota

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela

Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO




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