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Flor-de-Cera: Capítulo 03

Novela de Carlos Mota
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FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 03


O chofer está inconsolável.
– Venha, rapaz, seja forte, vou ajudá-lo! Venha comigo! Cristo, o que houve para estar assim? Parecer ter sido atropelado por um trator... Deixe-me ver a pressão! Você está gélido como os mortos – constata o médico. – Por que chora desse jeito?
– O que há com meu motorista, doutor Rubens? – dissimula o vereador, aproximando-se. – O que fizeram com você, meu bom amigo matu... Joaquim?


O corredor é extenso, com muitos leitos, todos com crianças à beira da morte. Nele se encontra Catharine, debruçada sobre a maca da filha, de três anos. Alana tem leucemia, seu caso é grave, por isso, respira com o auxílio de uma máquina e não se alimenta mais pela via natural. Não raro, regurgita e chora, pedindo o colo da mãe.
Catharine se faz de forte, passa dias e noites acordada ao lado daquela menina – a sua razão de ser. E não importava o tamanho do sofrimento, ela sempre estava preparada para a guerra. Uma guerra que não tinha trégua. Que lhe custaria a perda da única filha.
Algumas horas antes de falecer, Alana pediu o pai. Onde ele estava? Por que não a visitava? Não gostava dela? O que tinha feito de tão grave para que ele a punisse com sua ausência? A mãe, que não mais se aguentava em pé, tentava a todo custo persuadi-la de que ele chegaria logo, como se isso fosse possível.
Com olhos semicerrados, a menina esperava, esperava... E esse papai nunca chegava. A dor que sentia parecia com a da ferida que não se cicatriza. E não tinha mesmo como cicatrizar, o pai nunca se importou em saber como ela estava. E mesmo quando dava o ar de sua graça, era frio, indiferente, como se ela não pertencesse à família. Como se não fosse sua filha! Não havia quem não notasse! E George também, em momento algum, fazia questão de esconder a sua repulsa.
Isso revoltava Catharine. Não havia uma única vez que ele fosse ao hospital e não despertasse uma desavença familiar. Certa vez, inebriada pelo ódio, esqueceu-se de que estava dentro de um quatro de hospital, partiu para cima dele e lhe deu um tapa que entrou para a História. Não o tapa que ela desferira; mas o que recebera como troco. Foi a primeira e única vez que nele tocara. Para nunca mais! Uma enfermeira teve de ajudá-la a se levantar e a esconder o rosto do médico, quando esse a visitou naquela tarde.
Quando George partia, Alana queria sempre o colo da mãe, porque nele sentia o amor que lhe era negado pelo próprio pai. Dengosa, com a chupeta na boca, ela pedia que a mãe lhe molhasse os lábios, estranhamente, sempre secos. A cada dia que passava, a cada hora, a cada minuto, uma parte dela se desprendia, assim como fazem as pétalas de rosa em tempos de ventania, e voava para bem longe... Até se perder na imensidão!
No dia em que ela deixou este mundo, Catharine cochilava na poltrona ao lado de sua caminha. Quando ouviu o aparelho que monitora os batimentos cardíacos apitar, saltou em direção à pequena. E Alana, por mais incrível que pareça aos olhos dos céticos, estava à sua espera. Só partiu quando a viu! Morreu sorrindo por saber que ao menos a mãe estava ao seu lado.
– ALAAAAAAAAAAAAAAAANAAAAAAAA!!!!!!!!!!!!! – gritava, sacudindo-a, como se o seu desespero lhe fosse devolver a vida dela. – AJUDEM-ME, POR FAVOR! – suplicava pelos corredores.
Mas não havia mais ninguém ali disposto a lhe estender a mão. Não por maldade... Por pena! Todos sabiam, o inverno – o espaço de tempo em que as flores murcham – chegara, pelo menos para Alana, e isso era sinal de morte!
– Acalme-se, Dona Catharine! – pede Ernestina, vendo-a agitada na cama. – Acalme-se! Está tudo bem! Olhe, está em casa... Estou aqui! Nada irá lhe acontecer! – diz a empregada, embaraçada com o próprio choro. – Está tudo bem!
– Alana se foi mesmo, Ernestina? – pergunta, como se não quisesse acreditar, ao perceber que havia rememorado as tristezas de outrora. – Diga para mim que é mentira! Por favor! Ela não morreu, não é? Morreu?
– Infelizmente!!! – confirma a criada, cabisbaixa, em soluços.
– Por que, Ernestina? Por quê?
– Há coisas para as quais não há respostas e essa é uma delas. Infelizmente, nossa pequenininha partira. Até hoje me pergunto também o porquê de tão curta passagem por essa vida; as respostas que encontro sempre terminam onde se iniciaram as perguntas: no por que!? Deus poderia ter levado qualquer um de nós, até mesmo aquele salafrário do seu marido, mas por algum motivo a escolheu. Talvez porque ela fosse ainda um anjinho, daqueles que se coloca em cima da penteadeira e se admira por longo tempo. Certamente, Deus a pôs em sua penteadeira, de onde a admira agora. Que autor deixaria de apreciar sua própria obra?
– Oh, Ernestina! Como és bela! Tens um coração maior que o peito, do tamanho do mundo. Suas palavras me consolam.
– São apenas muletas de quem não tem o que dizer. Você, querida, que é bela. O que passou naquele hospital eu não desejaria para o meu pior inimigo. Mas você foi forte, uma guerreira de fibra! – limpa as lágrimas. – Perdeu a guerra, mas perdeu com honra! E isso é o que importa! Tenha certeza, a morte não a visitará tão cedo, teme enfrentá-la novamente.
Catharine abraça-a com força. Os corpos estão incendiados  pela dor. Se alguém as visse, deduziria ser mãe e filha, não patroa e empregada. Uma sintonia espiritual pouco vista em figuras sem qualquer laço de parentesco.
– Agora saia dessa cama, vamos, levante-se! O que pensa fazer na cama até essa hora? Preguiçosa! Veja – abre as cortinas para que os raios de sol espantem a escuridão daquele quarto –, o dia está quase se deitando com a sua princesa e a senhora ainda está de pijama. Que vergonha!
Um sorriso tímido ressurge na face da única herdeira dos Dumont.
– Venha, coma uma maçã... Trouxe-lhe de tudo! Iogurtes, frutas, pães. Farte esse corpo, muitos obstáculos virão e a senhora deve estar forte. Acha que Alana ficaria feliz ao saber que sua mãe, aquela onça em forma de gente, desistira de viver, e justo por ela? Que decepção!, diria nossa pequena – os lábios de Ernestina estão empolgados, querem expulsar a tristeza daquele quarto. – Não é verdade?
– De onde estão brotando essas palavras, Ernestina...?
– ...do amor que tenho pela senhora! – completa a sexagenária. – Um amor incomensurável.
– Incomensurável? És uma poetisa!
– Sou fruto de seus esforços. Lembra-se do dia em que me neguei a assinar uma encomenda de meu ex-marido e a senhora, com espanto, me perguntou o porquê daquele gesto? Até pensou que eu tivesse mandado matá-lo. Quem me dera! Ali me conhecera de verdade... Eu era analfabeta e tinha vergonha de assumir. Mas ao invés da senhora me depreciar – como muitos fizeram, optou por me ensinar! Quantos livros li? Perdi as contas. Às vezes me acho parecida com a Hanna, de O Leitor¹, isso não quer dizer que eu seja nazista... Deus me livre, guarde!
– Será? – brinca pela primeira vez, após meses de dor intensa.
– Do jeito como tratou aquele carteiro... Coitado! Ele estava diante de um Hitler de saia!
– Boba! – beija-lhe a fronte. – Vá comer! Ah, antes que me esqueça, seu digníssimo esposo pediu para recepcioná-lo, à noite, com aquele Valentino rosa que lhe deu.
– Só? – debocha.
– Não se esqueça das taças de vinho do Porto, hein? Hum! Acho que nada aconteceu nessa casa! Para ele não aconteceu mesmo – certifica-se a mucama. – Ô bicho ruim! Se eu fosse a senhora...
–...o colocaria para correr! – completa Catharine. – Já me disse isso, Ernestina.
– Pois repito!
As horas se passam...
A lua se nega a dançar balé no céu anuviado. É o prenúncio da chegada do vereador à mansão.
A porta da limusine se abre, George atravessa o hall de entrada e chega à sala de jantar.
– Boa noite, George! – saúda a mulher. O vereador a fulmina com os olhos.
Catharine estranha a atitude do marido.
– Aconteceu alguma coisa, George?
– Onde arrumou este colar? – esbraveja ao notar a joia no pescoço da mulher. – Responda-me!
Catharine balbucia, teme outra reação agressiva do marido.
– VOU REPETIR: ONDE ARRUMOU ESTA... ESTA PORCARIA?
O colar que ela usava era um presente de escola dado por Alana. O último. Um singelo cordão de prata com um pingente em formato de coração em cuja superfície era visível o nome da menina. Um ornato de baixo valor financeiro, mas de grande valor sentimental. É óbvio que destoava do Valentino – uma relíquia aos olhos dos invejosos. E o que isso importava? Ela estava feliz com aquele mimo e resolveu usá-lo em homenagem à memória da filha. Isso era algum crime? Se fosse, ela o estava cometendo com gosto. Por isso, com as forças ressurretas por um milagre divino, fixou fria e vagarosamente os olhos do vereador e respondeu:
– Foi um presente de Alana! Algum problema?
– Não percebeu que este vestido não combina com joias de valor duvidoso? Ele é um Valentino! Daqueles que as mulheres pagariam qualquer coisa para ter...
–...Eu não! – entrecortou-o.
– Você não? – puxa o colar com força, arrebentando-o. – VOCÊ NÃO? – insiste.
– Devolva-me, por favor! Foi o último presente que recebi de nossa filha. Por favor!
– A-LA-NA! – lê o nome da filha no pingente. – Hum! – esnoba.
– Cadê o colar exclusivo de pérolas brancas que lhe dei para usar com este belo exemplar da alta-costura?
– Está lá em cima! Dê-me o colar... – pede! – Ele é meu!
– Sabe quanto custou aquele colar que lhe dei? Vinte mil! Sabe o que são vinte mil? Daria para pagar o salário de um ano daquela empregadazinha que insiste em manter debaixo de nosso teto. E sabe quanto custou isso? – pergunta, olhando o colar com um misto de escárnio e desprezo. – No máximo, um décimo do que paguei. Mesmo sabendo disso, optou por usá-lo? – franze a testa. – Queria me desafiar?
– George, por favor, devolva-me... – os olhos marejados denunciam quão está entristecido o seu âmago. – Não quis desafiar ninguém, quis apenas expor meu amor por nossa filha. Isso é algum crime?
– Ainda pergunta? Troca uma peça valiosa por uma...
– E quem disse que essa também não é? – interrompe-o. – Para mim, é a peça mais valiosa do mundo, porque foi feita com amor e pela pessoa que mais me amava: MINHA FILHA. MINHA ÚNICA FILHA. Não percebe! Pode não ter valor de mercado, mas possui um valor sentimental inestimável. É isso que importa! Sinto-me honrada por usá-la!
– Isso... isso é motivo de honra?
– Sim! – declara a mulher. Ele gargalha.
– Você me causa asco! Hum! Sempre teve tudo do bom e do melhor, nunca precisou de nada, não sabe sequer o valor de um caviar, de um bom cálice de vinho; bastava estalar os dedos para que tudo caísse do céu como num passe de mágica. Se tivesse sofrido um pouco, passado por alguma dificuldade, saberia distinguir o valor que há entre esta... coisa e o que eu lhe dei! Você precisa aprender muito comigo ainda.
– Pelo contrário, é VOCÊ quem precisa aprender muito comigo, seu verme! – esbraveja, soltando todo o ódio que há dentro dela.
George revida a agressão verbal com uma bofetada que a joga ao chão.
– NUNCA MAIS FALE COMIGO NESSE TOM! – quebra o colar em pedacinhos e retorce o pingente; ao jogá-lo no chão, pisa com força. – O seu “mimo” está debaixo de meu sapato, assim como você – sua frieza impressiona por se tratar da própria esposa.
Dirige-se à escadaria, quando é interpelado pela mulher.
– O que ganhou com tudo isso? – machucada por dentro, verte-se em lágrimas.
– PRAZER! – profere, olhando-a com fervor.
Sobe as escadarias como se nada tivesse acontecido. Em prantos, Catharine arrasta-se sobre o piso frio. Chama Ernestina, mas sua voz, esmorecida, não chega à criada. Chama de novo, dessa vez, com as últimas forças que lhe restam.
– ER-NES-TIII-Naaaa – desfalece.
Ao ouvir seu nome, a empregada se desfaz da rotina do lar e corre auxiliá-la. Quando adentra a sala de jantar, encontra a patroa caída num canto, desacordada, com sangue escorrendo pelo rosto. Abalada, berra por socorro.
___________________________

1. Romance de Bernhard Schlink que deu origem ao filme estrelado por Kate Winslet e Ralph Fiennes. O adolescente alemão Michael tem 15 anos quando começa a relacionar-se com Hanna, uma mulher 21 anos mais velha. Ambos vivem uma delicada e intensa relação amorosa, até que Hanna desaparece subitamente sem deixar pistas. Sete anos depois, Michael, agora estudante de direito, é convidado a tomar parte de um julgamento contra os criminosos do regime nazista. Ele descobre, para seu terror, que sua antiga amante é uma das acusadas pelos crimes.



autor
Carlos Mota

A novela "Flor-de-Cera" é remake de "Venusa Dumont - da memória à ressurreição" de Carlos Mota
 
elenco
Grazi Massafera como Catharine Dumont
Thiago Lacerda como George Dumont
Ricardo Pereira como Joaquim
Elisa Lucinda como Ernestina
Carlos Takeshi como Tanaka Santuku
Miwa Yanagizawa como Houba Santuku
Jesus Luz como Pietro Ferrara
Lucinha Lins como Franceline Legrand Dumont
Lima Duarte como Dilermando Dumont
Herson Capri como Doutor Rubens Arraia
Tonico Pereira como Moacir
Werner Schünemann como Paineiras Ken
Rosi Campos como Adelaide
Humberto Martins como Alberto Médici
Cauã Reymond como Ricardo
César Troncoso como Zé dos Cobres
Ilva Niño como Josefa
Selton Mello como Zelão
Matheus Nachtergaele como Meia-noite
Caio Blat como Delegado de Vila Bonita
Caio Castro como Leandro
Alexandre Borges como Doutor Jaime
Caroline Dallarosa como Carmem
Fernanda Nobre como Stela

participação especial
Stênio Garcia como Doutor Lúcio
Drica Moraes como Desirê
Marco Nanini como Chico Santinho

atores convidados
Ary Fontoura como Doutor Tobias
Alexandre Nero como Júlio Avanzo
Elizangêla como Maria

a criança
Valentina Silva como Alana

trilha sonora
Lágrimas da Mãe do Mundo - Sagrado Coração da Terra (abertura)

desenhos
Andrea Mota

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela

Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO




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