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Flor-de-Cera: Capítulo 02

Novela de Carlos Mota
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FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 02


– O que se passa aqui? – inquire o vereador, com a força de um vulcão, surpreendendo a empregada pelas costas. – O que esse caipira faz perto de minha mulher? Fale, Ernestina!
A face ruborizada e os olhos estatelados da mulher pareciam não se encorajar em defender o pobre Joaquim. Seria o fim dele?


Joaquim, ao lado de Ernestina, não tinha coragem de encarar o patrão. Temia ser demitido, ir para longe e deixar para trás a essência que hoje o mantém vivo. Perder Catharine era como perder a vida. Então, para quê viver? Viver para sofrer? Não! Se fosse embora, iria para sempre... Não somente daquele casarão, mas desse mundo. Mil vezes as chamas do inferno, à pena de não poder mais venerar um sorriso dela.
– Ernestina, sua velha encruada, fale! O que esse molambento, cheirando a suor, faz perto de minha esposa?
– Ele... – balbucia. – Ele... ele estava aqui...
– O que quer com minha mulher, seu traste? – volta-se ao chofer, com ira.
– Senhor... – diz o criado, cabisbaixo –, eu queria lhe dizer que... que...
– Fale! – insiste o vereador. – O que fazia perto de minha mulher? FALE!
– Eu...
– ...ele estava cuidando de Dona Catharine, enquanto fui ao canteiro buscar umas ervas – entrecorta-o a mucama, já recomposta do susto, ao perceber que Joaquim se entregaria.
– Cuidando? Como assim?
– Como o senhor anda com a memória curta, senhor George! – debocha. – Só faltou matá-la e ainda tem a desfaçatez de fingir que nada aconteceu. O senhor não merece o amor dessa mulher.
– COM QUEM PENSA ESTAR FALANDO, CRIADA? – pega-a pelo braço e a sacode por duas ou três vezes. – MERECE UMA SOVA!
– Bata, se tiver coragem! – desafia a mulher, com a tez franzida e a saliva ameaçando descer pelos cantos da boca. – Bata! Eu não sou Dona Catharine, que apanha calada, como se fosse um bichinho de estimação, daqueles bem desprezados. Sou uma mulher de fibra e o denunciarei se me tocar um dedo. Conhece a lei Maria da Penha, excelentíssimo vereador? – afronta-o com desdém. – Se não a conhece na teoria, há de conhecê-la na prática!
Surpreso com o conhecimento da empregada, George mastiga as palavras.
– Já chega, Ernestina! – determina o motorista, escondendo os olhos marejados com as mãos. – Vamos!
– Se estava mesmo cuidando de minha mulher, como disse Ernestina, então por que chora?
– E quem não choraria ao ver uma mulher estirada a uma poltrona, após levar uns tabefes do marido, ainda mais no dia em que acabara de enterrar a única filha? – responde a empregada no lugar dele, tentando contornar a situação. – Pensa que são todos assim... assim como o senhor?
– Assim...? Assim como?
– Desalmado, podre até o último fio de cabelo, incapaz de amar e de se deixar ser amado... Perceba, ao invés de um coração, o senhor carrega um iceberg no peito.
– ATREVIDA! – regurgita o vereador ao repuxá-la uma vez mais. – DEVERIA LHE DAR UMA SURRA.
– Então venha! Bata nessa cara se for homem! – apalpa a própria face. – Bata! Queria mesmo que fizesse isso, não teria como negar a agressão, quando os flashes dos jornais fossem disparados e ilustrassem as manchetes do dia seguinte com o meu rosto deformado pelo seu ódio. Todos os que votaram no senhor se perguntariam: “O honrado vereador George Dumont não é o santo que se apregoa nos palanques principienses? Teria mesmo agredido sua serviçal, uma pobre mulher da vila, com todos aqueles cabelos brancos?”. Até que as últimas dúvidas se dissipassem, suas pretensões ao cargo de prefeito já teriam caído por terra.
– Solte-a, senhor George! – implora o motorista, tentando separá-los. – Por favor!
– Até hoje eu não entendo o porquê dessa família nunca tê-la demitido. Talvez esteja nessa sua boca a resposta para muitas de minhas dúvidas – diz ao soltá-la. – Essa história não acaba aqui, ERNESTINA!
– Com certeza, doutor! – confirma, fitando-o com uma ira descomunal.
– Agora me dê licença, quero levar minha esposa aos nossos aposentos. Posso, criada?
– Claro, patrão! – rebate.
Ele sobe as escadarias com ela nos braços, acompanhado pelos olhares revoltosos da empregada e decepcionados do chofer.
– Dessa vez eu o salvei, Joaquim! Pense melhor antes de agir... O amor não é tudo na vida, como pregam os poetas em suas obras. Bem antes do amor há a inveja e o ódio, sentimentos capazes de enterrar uma pessoa viva.
– O que quer dizer com isso, Dona Ernestina? – faz-se de desentendido.
– Que a única coisa que não nos podem furtar é o sentimento que nutrimos pelo próximo... Então, guarde o seu apenas para você! – aconselha.
Joaquim entendera o recado. Melindrado, despede-se da criada com um sorriso quase despercebido.
– Coitado! – sussurra a mulher, mordicando os lábios, tamanho o nervosismo. – Que um dia seus sonhos possam ser realidade.
No dia seguinte...
O sol está no centro de si, quando o telefone toca. A ligação é para o vereador. O prefeito o convocava para uma reunião extraordinária, em que seriam acertados os últimos detalhes da coligação partidária que o elegeria o novo mandatário de Vila dos Princípios.
Antes de partir, diz à serviçal:
– Peça a Catharine que vista aquele Valentino rosa que lhe dei na última primavera, encha duas taças de vinho do Porto e me espere na sala de jantar assim que o sol se puser – entra na limusine. – Quero vê-la mais deslumbrante e atraente do que nunca! Se ela, por algum motivo ou instigada por alguém, resolver me desacatar, certamente, para ela, o amanhã poderá não existir – continua com ar de ameaça. – Agora vamos, matuto! – ordena ao motorista.
O vidro se fecha e o carro parte. Ernestina acompanha-os até sumirem de vista.
– Tenho dó desse ser! – confidencia-se a empregada, inconformada.
– Pare o carro! – manda o patrão, a algumas quadras da mansão. E assim Joaquim o faz. 
– Agora que está longe de seu “cão de guarda de saia”, você me contará toda a verdade, matuto. O que estava, de fato, fazendo ao lado de minha mulher?
Joaquim engole a saliva enquanto o suor lhe corre o rosto. Vendo-o perturbado pelo retrovisor, George parece se deliciar. É como se o que importasse não fosse apenas descobrir a verdade dos fatos, mas fazer alguém sofrer e com esse mesmo sofrimento se saciar.
– O que me esconde, rapaz? Por acaso está tendo algo com minha...
– Não, senhor! Eu-eu... – interrompe-o o criado, assustado. – Eu...
– Por que está tão nervoso? – indaga, roçando as unhas no paletó, como se não se importasse com a conversa. – Sabe, matuto – encara-o –, esse é o seu nome, não é?
– Joaquim! – corrige o rapaz. – Meu nome é Joaquim.
– “O que Deus elevou”?
– Como, senhor? Não entendi!
– Joaquim: o que Deus elevou! Não conhece o significado de seu nome?
Com a cabeça, sinaliza que não.
– Hum! E qual é a diferença entre Joaquim e matuto? Ambos estão às margens da sociedade, mal conhecem seus direitos, vivem à custa da esmola alheia, ou eu estaria errado, ma... digo, Joaquim? Fale!
O empregado se mantém em silêncio.
– RESPONDA-ME! – exige o camarista.
– Si-sim! – balbucia o empregado, como se o coração tivesse subido à garganta.
– SIM O QUÊ? – brame, com os olhos presos aos dele.
– O senhor... – arfa, antes de concluir – está certo!
– Sabia que chegaríamos a um consenso. Sei o que você sente ao ver uma mulher como Catharine. Ela é mesmo excitante, tem um contorno facial mítico, um colo aprazível, modos de uma princesa, e o melhor, lábios que exalam o frescor do mel, assim como Iracema, a virgem indiazinha de José de Alencar. Você já leu Iracema? – desvia o olhar para a paisagem bucólica da região.
– Não... – confessa, cabisbaixo, o criado, tentando esconder uma lágrima que insistia lhe escapar pelos cantos. – Nunca li!
– Então leia! É uma obra maravilhosa, feita para pessoas sensíveis, de classe, que não se limitam à imaginação de um único autor. Pessoas como Catharine... como EU, são especiais, matuto. Temos dinheiro, compramos tudo e todos com o estalar dos dedos. Nunca passamos fome feito a gentalha que foge do sertão e vem para essas bandas retirar os empregos de nossa gente – corre os olhos pelo empregado e o vê segurando o pranto, dá um sorriso com gosto e continua a espezinhá-lo. – Aliás, FOME para nós é apenas mais um vernáculo do léxico português, daquele que fingimos não existir.
– O... o senhor não chegará atrasado, senhor? – alerta o criado, tentando contê-lo.
– Vocês que fogem da miséria estão acostumados a qualquer coisa, contentam-se com pouco. Um simples prato de arroz com salsicha lhes abre o sorriso; para nós, figuras nobres da elite paulista, de paladar apurado, somente o que há de melhor na gastronomia europeia nos satisfaz. Já teve o prazer de saborear um bom gigot d’agneau1 ao som de Chopin? Claro que não! Desde quando pobre entende de comida estrangeira e música erudita? – gargalha com sarcasmo. – Pobre é pobre. Pobre é motorista, empregado, lavadeiro...
– Aonde quer chegar com isso, ve-vereador?
– À prefeitura, não se lembra? O prefeito me quer em sua sala para uma reunião com a nobreza da região. Anda muito distraído, Joaquim! – debocha. – Talvez se deixasse de “observar”, ou melhor, “desejar” as mulheres alheias, principalmente as casadas e supostamente indefesas, isso não aconteceria, não é mesmo?
As palavras do vereador são o tiro de misericórdia no coração do motorista, que mesmo desnorteado, procura se justificar.
– Senhor... eu não...
– Para a prefeitura, chofer! – manda.
As mãos de Joaquim trepidam sobre o volante, estão visivelmente empalidecidas. A sensação dele é a de ter sido picado por uma cascavel.

A bela Catharine Dumont...

– Algum problema, matuto? – deleita-se com a crise de consciência despertada no subalterno. – Parece-me transparente, sua pressão caiu? É comum nessa época do ano em que o calor é intenso.
– Não se preocupe, senhor! Eu... eu apenas estou com um pouco de enjoo, deve mesmo ser o calor.
– Certamente! – sentencia o representante do povo.
Joaquim para o carro no estacionamento da Câmara Municipal, abre a porta para o vereador e se despede com um ríspido “até mais tarde, senhor!”. Quando já não é mais possível avistar o camarista, corre para trás do carro e vomita. É a maneira que encontra para se libertar do ódio que agora lhe come por dentro. Sentado à calçada, com a cabeça apoiada à limusine, chora. Chora muito!
– Idiota! – confidencia-se o vereador, à distância, sem que o chofer percebesse sua presença.
Retirando da carteira a fotografia amarelada de uma senhora, Joaquim pergunta:
– O que foi que eu fiz, mãe? Só queria fugir da fome e ter um futuro melhor que o de nossa família. Mas só criei problemas! Quanta humilhação! Devia quebrar a cara daquele verme, mas... mas sou um covarde! – beija a imagem. – Me perdoe, mãe, pela vergonha! Sou mesmo um matuto, uma gentalha, como ele disse.
– O que há com você, Joaquim? – acode o médico Rubens Arraia, amigo íntimo da família Dumont, que havia chegado à prefeitura para uma reunião com o Secretário Municipal da Saúde, ao vê-lo naquele estado. – Algum problema?
O chofer está inconsolável.
– Venha, rapaz, seja forte, vou ajudá-lo! Venha comigo! Cristo, o que houve para estar assim? Parecer ter sido atropelado por um trator... Deixe-me ver a pressão! Você está gélido como os mortos – constata o médico. – Por que chora desse jeito?
– O que há com meu motorista, doutor Rubens? – dissimula o vereador, aproximando-se. – O que fizeram com você, meu bom amigo matu... Joaquim?
____________________________
1. Pernil do cordeiro. Um dos pratos símbolos da cozinha francesa, o prato do domingo nos almoços de família ou nos jantares íntimos entre amigos. 



autor
Carlos Mota

A novela "Flor-de-Cera" é remake de "Venusa Dumont - da memória à ressurreição" de Carlos Mota
 
elenco
Grazi Massafera como Catharine Dumont
Thiago Lacerda como George Dumont
Ricardo Pereira como Joaquim
Elisa Lucinda como Ernestina
Carlos Takeshi como Tanaka Santuku
Miwa Yanagizawa como Houba Santuku
Jesus Luz como Pietro Ferrara
Lucinha Lins como Franceline Legrand Dumont
Lima Duarte como Dilermando Dumont
Herson Capri como Doutor Rubens Arraia
Tonico Pereira como Moacir
Werner Schünemann como Paineiras Ken
Rosi Campos como Adelaide
Humberto Martins como Alberto Médici
Cauã Reymond como Ricardo
César Troncoso como Zé dos Cobres
Ilva Niño como Josefa
Selton Mello como Zelão
Matheus Nachtergaele como Meia-noite
Caio Blat como Delegado de Vila Bonita
Caio Castro como Leandro
Alexandre Borges como Doutor Jaime
Caroline Dallarosa como Carmem
Fernanda Nobre como Stela

participação especial
Stênio Garcia como Doutor Lúcio
Drica Moraes como Desirê
Marco Nanini como Chico Santinho

atores convidados
Ary Fontoura como Doutor Tobias
Alexandre Nero como Júlio Avanzo
Elizangêla como Maria

a criança
Valentina Silva como Alana

trilha sonora
Lágrimas da Mãe do Mundo - Sagrado Coração da Terra (abertura)

desenhos
Andrea Mota

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela

Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO




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