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Antologia O Mal que nos Habita: 1x11 - AdLib (Season Finale)

Conto de Carol Peace
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Sinopse: Nas noites úmidas e frias do porto de Manaus, muitos segredos se escondem. Entre um passageiro e outro, novas oportunidades podem surgir. Nunca se sabe o que as águas do Rio Negro trarão até você.


AdLib
de Carol Peace

 

            A noite estava úmida em Manaus; a chuva do dia tinha molhado tudo o que pudera tocar e a friagem da noite fazia questão de manter as gotículas no ar. Respirei o ar levemente mais frio trazido pela brisa do rio. Hoje era a noite perfeita. Continuei andando até chegar à entrada do porto e observei as pessoas indo de lá para cá. Tão ocupadas em suas vidas elas estavam! Encostei-me à parede colorida do Boothline enquanto passavam por mim. Nenhuma delas parava para falar comigo até que uma delas pousou os olhos em mim. Eu sorri, como sempre fazia quando me notavam. Esperei a pessoa se aproximar de mim. Não precisava me antecipar, as coisas sempre aconteciam conforme o destino ditava. A pessoa finalmente aproximou-se de mim e recostou-se na parede ao meu lado.

Tem fogo?

Era uma pergunta simples, ideal para começar uma conversa que não levaria a lugar nenhum. Ofereci um breve sorriso e tirei o isqueiro do bolso, acendendo o cigarro da pessoa.

— Vai viajar para o interior? Perguntei.

— Não, estou chegando. Foi a resposta.

Continuamos parados ali por algum tempo, a pessoa insistia em encostar-se em mim a cada oportunidade que encontrava; pequenos toques despretensiosos aqui e ali. Olhei brevemente meu relógio e vi que já passava da meia noite. Logo o último barco iria partir antes do recesso da madrugada. A pessoa continuava parada ao meu lado, como se esperasse por alguém que nunca iria chegar.

— Você já tem um lugar para ficar? Indaguei sem olhar a pessoa nos olhos.

— Não.

— Melhor procurar um pardieiro. Depois da meia noite fica mais difícil...

— Não tenho dinheiro e nem lugar onde ficar.

Entendi. Respondi. Moro aqui perto. Amanhã, ou melhor, hoje mais tarde, você pode procurar outro lugar para ficar.

A pessoa concordou com um balançar de cabeça e me seguiu até minha casa. Tratava-se de um prédio antigo nas intermediações do porto, com dois pavimentos e uma escada lateral interna, com janelas para rua. Do segundo andar era possível avistar o Rio Negro, uma vista bem bonita nos momentos certos do dia. Entramos em minha casa e a pessoa colocou a mochila rapidamente no chão. Em poucos segundos começou a despir-se e eu a impedi com um gesto.

Não faça isso. Disse com meu tom mais compreensivo.

— Então, como posso pagar?

— Apenas durma. Pode descansar no segundo andar, tem uma cama lá em cima. É um único cômodo espaçoso e confortável só não tem portas, como quase todas as casas dessa idade.

E você?

— Prefiro meu próprio quarto. Repliquei.

A pessoa não questionou mais nada, então deixei que ela subisse as escadas. Desci-as e me arrumei em minha própria cama, um espaço grande, com algumas cobertas e um ventilador. Desliguei as luzes e fiquei deitado esperando o sono chegar. Antes que pudesse cair nos braços dos sonhos, senti alguém chegando perto de mim em minha cama. Por certo era a companhia da noite; deixei que viesse até mim e continuei parado.

Você não tem medo?

Era uma pergunta muito estranha para me fazerem durante a noite. Poucas pessoas me conheciam de fato e todas as pessoas que chegaram perto demais sabiam que medo não era um sentimento comum para mim. Fiquei em silêncio esperando a pessoa falar mais alguma coisa; continuava fumando, deixando meu quarto impregnado com o odor de nicotina.

— É a primeira vez que me deixam entrar sem que eu precise oferecer alguma coisa antes.

Enquanto a pessoa continuava falando, pensei nas palavras. Eram quase vampíricas em sua essência, afinal era eu que geralmente oferecia ajuda às pessoas. Muitas vezes a ajuda era prontamente recusada, mas não nesse caso em específico. Eu sempre tinha uma carta na manga; dedilhei meu travesseiro pegando uma de minhas facas no processo. Não seria a primeira vez que eu a usaria e também não seria a última. Não havia qualquer remorso nisso.

— Não se preocupe. Não vou quebrar seu coração no escuro.

Sorri para mim mesmo ao ouvir essa frase. Era terrível e excitante, como um jogo proibido. Essa pessoa tinha coragem, eu devia admitir. Essa noite estava ficando cada vez melhor. Senti as mãos tocarem meu peito com uma calma que eu só tinha visto em mim; o equilíbrio do contato era invejável. Eu não tremi, eu não recuei. A escuridão era meu lar, meu aconchego e meu porto seguro.

Cada coração que eu toquei fugiu para muito longe de mim. Não vou roubar seu fôlego, seus pulmões estão muito longe de meus dedos tão, tão gelados.

Assim que senti algo frio tocar a pele de meu peito, fechei meus olhos momentaneamente para acender a luz e revelar que ambos estávamos com armas em punho. Cada qual com sua lâmina e a pessoa estava muito surpresa por alguns breves segundos.

— Talvez meus planos para você não fossem esses. Expus, com sinceridade.

Você... Eu devia ter imaginado que ninguém podia ser tão gentil a ponto de deixar qualquer um entrar assim na própria casa!

— Você fala como se minha gentileza fosse grave falta. Levantei e tomei a faca da mão da pessoa.

A pessoa me olhou diretamente nos olhos, como se esperasse por um ataque. Não eram os olhos de uma presa, muito pelo contrário, eram olhos de um tigre prestes a desferir o primeiro golpe. Sentei-me na frente da pessoa, esperando as próximas reações de minha companhia.

— O que você vai fazer agora?

— Acredito que a pergunta deva ser, o que nós vamos fazer a partir de agora. — Lancei a oferta sem esperar uma resposta positiva.

A pessoa mostrou-me, uma vez mais, a expressão taurina, dessa vez com uma curva positiva nos lábios, demonstrando a alegria de ter encontrado outra pessoa que compreendia suas vontades e seus desejos mais profundos.

Precisamos de um novo alvo, não é mesmo?

Eu curvei minha cabeça em regozijo e ela recostou-se em minha cama e convidou-me para o leito. De fato, era um momento único e esplêndido. Por tanto tempo eu tinha vivido a desilusão, isolado em um mundo em que a violência era encarada como ardilosa e terrível... Um mundo que jamais tinha sido meu, em momento algum tinha sentido tanto acolhimento.

Quando despertei do melhor sono que tive em muitos anos vi que minha companhia continuava ao meu lado. Dormia silenciosamente com a tranquilidade que só se via em pequenos animais que repousavam com suas mães no ninho. Passei minha mão sobre os cabelos e depois subi para minha cozinha. Preparei o café-da-manhã para dois, como nunca tinha feito antes. Duas tapiocas com tucumã e um café bem forte, com uma pequena jarra de leite à disposição. Eu era mais afeito ao café puro, mas não sabia se meu afim tinha sabores diferentes dos meus. Agora tudo era possível!

— Nossa, esse deve ser o melhor café-da-manhã que já vi!

— É meu deleite poder servir bem.

O sorriso sincero foi por mim retribuído. Era algo novo, uma situação insólita que jamais passaria por meus pensamentos. Tomamos o café e seguimos o dia como se fosse nossa rotina desde tempos que mal nos lembrávamos. Às dezoito horas arrumei-me para sair, minha companhia não deixou-me só, seguindo meus passos por alguns metros até que nos separamos. Cada qual ao seu estilo de caça, eu sabia que o resultado da noite seria positivo. Observei à distância percebendo que as habilidades de atração de minha parceria eram muito singulares. Logo, um homem estava acompanhando os passos enquanto me mantinha à distância segura. Quando chegaram até nossa casa, esperei por alguns minutos antes de entrar.

— Ah, meu amor, para de fazer doce. Anda logo. O homem tinha uma voz grossa e seca. Era uma visão abominável sobre minha singular preciosidade.

Estalei os dedos das mãos e logo depois o derrubei laçando-o pelo pescoço com meu antebraço. Ele se debateu um pouco, mas fechei a passagem de ar com habilidade unicamente adquirida pela experiência. Assim que o oxigênio findou-se em seus pulmões, ele desmaiou sobre minhas pernas. Olhei para minha companhia e sorri levemente, esperando para saber quais eram seus desejos.

— O que você faz quando pega esses tipos? Perguntou bastante curiosa.

Depende muito das circunstâncias. Mas, hoje esse é meu presente para você. Esclareci.

Houve genuína alegria naqueles olhos negros que aprendi a apreciar. Com um sorriso, estalou a faca e começou a cantarolar enquanto rasgava a roupa do homem:

Onde está seu coração? Onde está meu coração?

Era a mais bela de todas as sinfonias. Ajustei minha pegada no pescoço do homem quando ele se mexeu um pouco, eu deixei minha perdição fazer com ele o que melhor desejasse. Continuou a cortar a carne de nossa vítima, com astúcia e uma perfeição que eu julgava impossíveis em um ser humano. Cortou o peito e revelou a carne, pintando parede de nossa cozinha com o mais puro carmesim. Senti a doce alegria resvalar em mim, como a iluminação presente na epifania dos antigos poetas.

Acho que me falta força. Minha inspiração comentou.

— Ajudar-te-ei com todo prazer, minha vida. Larguei o corpo moribundo no chão e peguei meus instrumentos na cozinha.

Retornei e abri o tórax do exânime com alguma facilidade, afinal a prática leva à experiência! Assim que terminei, minha escuridão tomou o coração quente em suas mãos. A alegria contagiou-me e gargalhei ao ver que minha companhia mordeu o coração e sorriu com leveza para mim. Era, de fato, a perfeição encarnada. Cada uma de suas pinceladas violentas sobre a carcaça eram a expressão de nosso infinito amor.

Eu acho que já estou te amando para sempre. — Continuava a cantarolar. — Cada verso que recito tem toda minha paixão por cada coração que espero devorar.

Tomei-lhe uma das mãos e a beijei. Minha companhia sorriu para mim e deu-me um abraço em seguida. Procurou os lábios meus e os beijou com intensidade, oferecendo-me toda sua alma, com pleno regalo. Eu retribui o gesto, sabendo que tinha, finalmente, encontrado uma casa nesse mundo.

Conto escrito por
Carol Peace

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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