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Cine Virtual: A Segunda Aliança

Conto de Luiz F. Haiml
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Sinopse: Padre Eduardo, novo na paróquia, é surpreendido por um irascível fenômeno climático e vai ter uma noite inesquecível


A Segunda Aliança
de Luiz F. Haiml

 

Algo toca minha perna. Viro-me rápido e assustado e com a ponta do guarda-chuva afasto para longe o que quer que seja. O que primeiro pareceu-me uma boneca – engano desfeito pela tão esperada luz do amanhecer – meu empurrão conduz ao umbral da porta. Como aquilo surgiu tão rápido? Há pouco nada havia, eu perscrutara tudo com cuidado. Sinto nojo ao ver o que na verdade é, mas a contrição vem logo, peço perdão a Deus.

Eu descera do armário, no alto do qual, mergulhado nas trevas, cruzei a madrugada; a lamparina estava comigo, mas os fósforos ficavam nas gavetas invadidas.

 Dentro da massa marrom e líquida, que já alcança as alturas da cabeceira da cama, abro a janela do quarto.                                                                                                                                                                                                       

***

Padre Eduardo deitara tarde na noite anterior. O calor, os silogismos a serem usados no sermão de domingo e as impressões ficadas do último enterro eram a causa. Deitara-se, o sono, no entanto, custara. Havia também a ausência de Maria Catharina, já há dois dias em Igrejinha, cidadezinha próxima.

Contrapondo-se à timidez e quietude do novo padre, Maria Catharina mostrava-se divertida, de muita fala. Na presença da encorpada alemoa de meia-idade, rosto redondo e bonito, Eduardo sentia uma despretensiosa e sincera alegria. No leito, às vezes, ele pensava em Maria. Era tomado então por um tranquilo sossego interior, e nessa gostosa indolência aninhava-se e sem muita demora adormecia.

A velha Elisabetha Klain, por anos a única a cuidar da casa dos padres, de súbito atacada por fortes dores na coluna, tivera que abandonar tal função. Daí convidaram Maria Catharina para substituí-la; sabia-se das dificuldades advindas do inesperado acidente que lhe tirara Oscar. Aliás, não tão imprevisto assim, pois inquietos presságios faziam-na pedir ao marido que desistisse de adquirir a motocicleta. No entanto, depois da compra da Yamaha DS-7, Oscar mudara para melhor; a máquina lhe realizara um sonho, e, percebia Maria, trouxera-lhe um motivo para mantê-lo feliz. Felicidade essa encerrada por um pneu que explodira numa descida de estrada. Eduardo, que em Moreira assumia sua primeira comunidade, era o segundo religioso para quem Maria trabalhava.

***

Trovões, mas ainda distantes. Padre Eduardo reza para que a chuva venha, imaginando que as pessoas do pequeno povoado estejam a fazer o mesmo. Os dias estão sendo de um mormaço incomum, de “assar a pele”, expressão muito ouvida ultimamente. É um final de verão como não houvera antes – isso atestam apreensivos anciões cujas vidas enraízam-se quase centenárias pelo solo daquela localidade. Um calor inclemente sob o qual não sofre apenas o Sul, onde fica Moreira, mas o país inteiro.

***

Moreira é um distrito pertencente a duas cidades: Gramado e Três Coroas. É um local interiorano de uma natureza exuberante, que aumenta devagarinho sua população de moradores, a maioria colonos dedicados à horticultura, criação de animais e venda de leite. Os turistas, ansiosos por badalações várias e nababescas hospedarias, não se aventuram pelo pó e cascalho de suas estradinhas, nem descobrem deslumbrados a beleza do lugar – pitorescas casas antigas habitadas por gerações de uma mesma família, vales verdejantes, frondosos túneis de árvores – a passar reto por ele rumo a Gramado. Tendo sua nascente em Serra Grande e seu término em Sander, um arroio homônimo, estreito, mas de longa extensão, é a veia principal a irrigar Moreira; se não fosse por alguns poucos pequenos regatos, ele percorreria praticamente só a sinuosa superfície do lugar.

***

De longe, um uivo, não de animal, e os galhos e as folhas estremecem, a casa estala em vários pontos. Esperançoso com a possível mudança de clima que se anuncia, e pensando em Maria Catharina, as pálpebras do jovem pároco finalmente pesam e o afundam para dentro de um sono calmo e profundo, nem chega a ouvir o raio que faz sacudir tudo, e após, a tempestade rompendo os ares, desabando todo o seu peso sobre as coisas. E Eduardo sonha.

Estava eu na igreja, ao lado da pia batismal, ia realizar um batizado. Ninguém havia ao meu lado. Olhei para a nave, os bancos todos vazios. Apenas eu estava ali e segurava a criança a ser sagrada, que não se mexia, não emitia nenhum som. “Provavelmente dorme” pensei. Seu rosto era indistinto – ofuscado numa luz densa e leitosa – mas prossegui com o rito, e, prestes a completar o batizado ao aspergir a água benta em sua testa, um som veio de dentro da manta azul que a envolvia. Muito me assustou, pois não soou humano, mas algo como um guinchar, nesse exato momento as feições do pequeno surgiram nítidas, o reflexo que as tornava difusas desapareceu, com um grito de surpresa e horror descobri quem eu tinha em meus braços: era  Alfredo, o bebê dos Lauffer. Na tarde anterior, eu realizara seu rito fúnebre. Então a água benta da pia batismal começou a aumentar e a aumentar sem controle, e logo estava a escorrer para o chão e a se espalhar pelo templo, me trazendo à lembrança o episódio do Mickey em “Fantasia”– última sessão de cinema que vimos juntos, meu irmão e eu. Da pia batismal, a água benta continua incessante a jorrar; tendo a certeza de que tudo ia ser inundado, corro em direção à porta principal, que está fechada, levando comigo o pequeno embrulho. 

***

Se em paz Eduardo finalmente adormecera, tal pesadelo o tira rápido de tão tranquilo sono e o traz de volta a uma realidade que poderia bem ser ainda a continuação de seu pesadelo.

O ar paira aquoso e frio, um cheiro de barro e umidade. Lá fora a chuva desce volumosa, o efeito do temporal na casa é como o de um forte vento brincando com um frágil barquinho de papel, e o som que serve de fundo é a ampliação em mil vezes do ruído que se ouve no interior das conchas. Mas não é só.

Rodopia em torvelinho o espírito do jovem sacerdote, percebe-se cercado por águas, e uma intensa aflição dele se apodera. Não é, no entanto, uma ansiedade desconhecida, causada pelo que está a acontecer; descobrira-a quando menino, o pai o levara ao largo rio que corria perto de onde moravam. Mais tarde, já rapazinho, ampliou tal sentimento ao conhecer o mar. Achou-o algo surreal, atordoante – não demorou a ver que as ondas se elevavam, tornavam-se gigantescas, dentro delas, soldados egípcios, suas brigas e cavalos, sendo tragados em turbilhões. Eduardo sentia um receio esquisito diante das líquidas extensões, e não sabia dizer o porquê disso, mas não o atraía nenhum pouco o aproximar-se delas ou nelas banhar-se. De piscinas também fugia, e constrangidos efeitos lhe provocavam, no seminário, as conversas sobre banhos e pescarias em uma lagoa aos fundos de um dos retiros dos religiosos. “Pode ser sintoma de coisa de outras vidas, algum trauma ocorrido em uma existência passada” dizia-lhe padre Alberto – a quem não bastava o Catolicismo – acrescentando “Quem sabe tentamos uma regressão?”.

Quando seus olhos começam a distinguir melhor as formas, Eduardo vence o torpor que o imobilizara por um tempo que ele não sabe ao certo a duração, e no qual, mesmo sem ter o objeto ali consigo, refizera as preces do rosário até perder a conta. Essa fé desesperada o faz ficar de joelhos sobre a cama e apalpar a altura da água ao redor – o colchão começa a ficar molhado – tirar então a calça de pijama, prendê-la ao pescoço e, surpreso consigo mesmo por perceber-se livre de qualquer temor, lançar-se à substância fria e suja. Alcança logo o armário, uma peça antiga de três portas, maciça, belamente laqueada em azul-claro, impossível de virar. Salva uns cobertores, roupas dos cabides, camisetas, cuecas e lençóis, jogando tudo para o alto do móvel onde já mantinha a lamparina, um guarda-chuva, a pequena máquina de escrever. Agarra-se à beira do mobiliário, toma impulso e no topo dele monta refúgio.

***

Vejo, um pouco aliviado, as nuvens a se afastarem expondo um céu de peito largo e azul forte. A manhã chega, mas não anunciada pelo galo dos Kroeff, os latidos dos cães dos Bender, os mugidos das vacas dos Roth. E a paisagem mudou: cercas, porteiras, estradas, caminhos são uma única e impassível superfície, tudo é um caudaloso deserto. Não há mais margens, ao se ampliarem, consumiram-se, apagaram-se. Por um maligno milagre, o Moreira se transformara, se multiplicara.

Por sorte, a igreja de meus primeiros ofícios, graças à elevação em que se ergue, permanece a salvo, imaculada em sua recente pintura cor de creme. Pequenos arco-íris se formam quando os raios do sol encontram as gotículas da chuva nos vitrais. Se saísse, a alcançaria? Nosso Senhor Jesus Cristo caminhara pelas águas.

Eis que pressinto outro ser vivo (minha outra companhia, aquela sob o umbral, há muito não respira) a partilhar comigo o imprevisto cenário: uma ratazana. Olhos esbugalhados agita-se o bicho num nadar histérico. Busca um ponto de salvação e para isso tenta chegar à cômoda, ainda seca em sua superfície. Com o guarda-chuva facilito-lhe o objetivo. Olho para o limiar que leva à sala, o pequenino embrulho continua ali; o fino pano branco a envolver seu conteúdo não se soltou, a água o moldou mais a ele, definindo melhor seus contornos. Coração apertado, pernas enregeladas, vou me aproximando, esquadrinhando com a ponta do guarda-chuva o que há abaixo e sobre o aquoso terreno. Quero chegar à cozinha, pegar alguns alimentos, para isso preciso passar pela sala. Jogo o cobertor sobre o corpinho que não se moveu – não se aproximou ou se afastou, permanece ancorado sob a ombreira – e num passo grande e cuidadoso lanço-me à peça seguinte. Minha companheira de infortúnio, até então em resignado silêncio, começa a guinchar.

Na sala, monástico aposento, apenas um pequeno sofá vermelho (as turvas águas já repousadas sobre ele) e a mesa que me serve às refeições. Em seu tampo, ainda intocado, a louça da noite anterior que eu mesmo lavara, minha Bíblia e o caderno onde elaboro o rascunho de minhas prédicas, que quando terminadas, datilografo.

Junto à mesa, a pouca herança deixada pelo primeiro religioso a habitar a casa: uma cadeira nonagenária. Jamais tocada por cupim, mantém-se firme, indiferente ao que devagar engole o aposento, a casa, o mundo em torno dela. De repente dou um riso nervoso: parece que vejo, por rápido instante, nela sentado, o gordo cônego Eusébio.

Cheguei à cozinha. A porta dos fundos aberta pela força da inundação, Por ela deve ter entrado quem agora melhor repousa sob o cobertor que lhe pus. A água espelha uma forma retangular, e nela uma esplendecência cuja origem não vem só da comum natureza, mas em sua tessitura percebo a mesma cintilação que exala do véu da Virgem, uma harmonia perfeita, única, entre o etéreo e o concreto. Adentro o fulguroso retângulo e vejo, próximo à casa, o fusca azul usado para o ministério.

O que dele resta visível está dos para-lamas para cima. Penso no Nautilus, parte da bélica carcaça submersa, à espera, à espreita; o extraordinário Nautilus em que embarquei tantas e tantas vezes ao descobrir “20.000 léguas submarinas” na bibliotecazinha de minha primeira escola. Sinto o fluídico lençol ondear em torno de mim, subiu um pouco além da minha cintura. E não sou um sujeito baixo.

Volto meus olhos de novo para fora, e, por trás e além do que emerge do fusca, estende-se o alto morro em cujo pé nasceu e cresceu o cemitério de Moreira. A escura elevação rochosa encobre a si e aos seus de uma pesada sombra. Será de culpa, vergonha? Afinal, se há anos os enterrados tiveram ali colo protegido, não se vê mais o suave aclive em que o terreno do cemitério eleva-se até emendar-se a ela. Por ter represado as águas transbordadas, mudou-se em enorme lápide, triste memorial aos moradores daquele recanto. Quanto a esses, vejo-os agora, estão entre pontas de cercas, de pedras tumulares, de estátuas de Cristo, santos e anjos. Como despojos de um naufrágio presos a uma enseada, adejam num vapor barrento, despidos ou não de suas carnes.

Solto uma risada longa e alta, o discernimento me é concedido, e a razão do que ocorre a mim é revelada: Abençoados estão a ser os mortos em Renovado Batismo, as Primeiras Coisas passaram, Deus sela com eles uma Segunda Aliança.
 

***
 

A enchente de 1971 foi uma das piores na região. As águas que cobriram Moreira demoraram dois dias para baixar, antes disso elevaram-se rápido e a ponto de muitos se obrigarem a buscar refúgio nos telhados de suas casas, ou de onde se encontravam no momento da enxurrada. Embora quinze corpos tenham sido recolhidos – alguns deles apenas muitos dias após a tragédia – fechou-se o número de vítimas em dezesseis, acrescentando-se entre elas o jovem e estimado padre Eduardo, de quem até hoje não descobrimos o destino.

Conto escrito por
Luiz F. Haiml

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Imagem
Eduardo "Dado" Olmos

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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