Seus Olhos
de Paulo Romão
Uma
fagulha vermelha piscou com força no meio das trevas.
Oligário
estava sentado numa cadeira de espaldar alto, acolchoada com veludo vermelho.
Era de madeira nobre, esculpida a mão e totalmente incoerente com o cenário em
que se encontrava. Fora, como aquelas terras, herança de seu pai, que presidia
todas as jantas familiares daquela cadeira, em silêncio, devorando cada pedaço
de comida a sua frente e bebericando um copo de uísque.
Naquelas
noites, seu pai, mesmo de cabeça baixa, entretido com seu prato cheio, deixava
os olhos perscrutarem cada uma à mesa. Dissecava-os, avaliando se estavam
comendo corretamente e os vigiava para que não dessem um pio, pois janta era
hora sagrada. Seu pai nunca mais veria sua família à mesa.
Assim
como o patriarca, Oligário sentava-se em seu trono observando o trabalho de
seus homens. Ninguém entendera o porquê dele vir pessoalmente, no meio da
madrugada, supervisionar o trabalho, com aquela bendita cadeirona. Foi uma
trabalheira só removê-la da sala de jantar na fazenda e trazer até ali. Agora
estava lá ele sentado, fumando seu cigarro, um rei no meio do nada, enquanto os
funcionários esvaziavam galões por todos os lados.
Um
brilho verde surgia aqui e acolá, uma pequena lavareda reluzente dançando no
ar. Aqueles vaga-lumes, pequenas memórias voando no ar, eram seus velhos
conhecidos. Desde pequeno, vinha com seu pai, até a borda da mata, e pegava
alguns para guardar num vidro grande, pra poder olhar a dança dos bichinhos
antes de dormir. Nessas noites, seu pai ficava de longe, sisudo, só olhando o
menino, ansioso para voltar para casa e sair do frio. Seu pai nunca mais veria
os vaga-lumes à noite.
Quando
acordava, Oligário menino encontrava o pote de vidro vazio. Seria isso um gesto
de bondade de seu pai para com os bichinhos ou mais uma prova do ranço do mesmo
pelo seu filho?
-
Tá pronto!
A
voz do funcionário acordou Oligário de sua recordação. Sem dizer nada, com o
mesmo jeito do pai, o fazendeiro levantou-se e deu uns passos à frente. O
cheiro de gasolina empesteava a mata toda e as luzes dos vaga-lumes
refletiam-se nas superfícies encharcadas das folhas. Diante dele, esticava-se
toda a mata que circundava a fazenda e era parte de sua herança. Seu pai jamais
veria aquelas árvores novamente. Nem ninguém mais.
Oligário
tragou fundo e jogou o cigarro no chão. Num rugido, a pituca transformou-se
numa fogueira que alastrou-se para os lados, serpenteando. A gasolina
inflamou-se e, com ela, todo o chão a seu redor. Uma parede de fogo começou a
erguer-se e o estralar das folhas pegando fogo encheu a noite. O fazendeiro deu
uns passos atrás, começando a suar já diante da fornalha que ali ganhava força.
As
pequenas luzinhas verdes dos insetos cederam lugar às centelhas alaranjadas que
subiam ao ar. A noite amanheceu vermelha.
-
Mas, pai, a gente precisa crescer mais! É só um monte de mato! Tem num sei
quantos alqueires de terra em volta do nosso pasto, tudo lá, parado. É só a
gente tacar fogo e limpar. Imagina quantas cabeças de boi num dá pra por lá!
O
jovem Oligário se exaltava diante do silêncio do pai. Já tivera inúmeras vezes
essa discussão e o pai jamais abria a boca, o que o irritava ainda mais do que
ouvir uma negativa como resposta. O jovem via na mata um empecilho para obter
mais lucros, fazer crescer a fazenda e a criação, mas o pai não permitia que
ninguém tocasse numa folha sequer de lá. Toda noite, mesmo sem a companhia do
filho a caçar vaga-lumes, ainda ficava alguns minutos lá, observando, de olhar
fixo, o brilho das estrelas e dos insetos, para só então substituir o som da
mata pelo silêncio habitual.
Os
novos tempos precisavam de novos pensamentos, e o pai de Oligário era um homem
tradicional. O que tinha, lhe bastava e se crescer significava destruir o
passado, ele ficaria como estava.
Olhava
fundo nos olhos de Oligário e, em silêncio, como resposta, apenas dava-lhe as
costas. Agora, o herdeiro podia realizar seus sonhos e expandir os negócios. Seu
pai jamais veria um fogo assim.
Oligário,
contemplando as chamas crescerem, via o verde da floresta e dos vaga-lumes ser
substituído pelo vermelho da queimada, como sangue a escorrer pelos veios da
mata. Parecia ver, preso entre a lembrança de seu pai e o presente ardente, os
olhos do velho patriarca, mudos, a julgarem-no do meio da mata. A ilusão de
ótica, provocada provavelmente por centelhas a bailar no ar quente, fez com que
suasse ainda mais.
O
vermelho das chamas deu lugar ao amarelado do sol vespertino. O negro da noite
deu lugar às sombras das cinzas. O som das aves foi substituído pela queda das
árvores. Dois tratores, presos entre si por uma enorme corrente, começaram a limpar
o terreno, arrastando-a serpenteante, derrubando as árvores defuntas e
preparando o terreno para o pasto que viria.
Sentado
em seu trono, o fazendeiro tudo observava. Quando tudo parecia acabado,
resolveu checar aquela terra prometida com seus próprios olhos. A cada passo,
as cinzas secas estalavam e a fuligem subia ao ar. Notou que, ali adiante,
alguns funcionários, em roda, observavam algo estranho.
Ali,
à frente deles, estava um corpo enorme, carbonizado, como um grande tronco, da
mais antiga árvore, esticado ao chão. Enganava-se quem pensava que era uma
árvore porém. Caminhando com os olhos por toda a extensão daquele corpo imenso,
Oligário deparou-se com uma cabeça seca e negra de uma enorme sucuri. A pele
ressequida pelo fogo deixava entrever o contorno de duas órbitas vazias, cujos
olhos provavelmente teriam derretido em meio às chamas da noite anterior. O
animal, no entanto, parecia fita-lo mesmo sem olhos, prestes a dar-lhe o bote.
Aquele olhar vazio e silencioso de seu pai.
Oligário
deixou a serpente e o vazio para trás, deixou para trás os desejos de seu pai,
deixou para trás o futuro da fazendo, e encaminhou-se para a casa. Com a limpa
do terreno, em breve a grama cobriria o chão até os horizontes de uma nova era,
verde e capitalista. O brilho dos olhos do gado e das moedas compensaria toda
aquela fumaça que turvara o céu e o espírito do fazendeiro.
E
o verde realmente chegou: não o da copa das árvores ou do reluzir dos
vaga-lumes, mas do capim mascado pelos bois, pisoteado por seus cascos.
Passivos, andavam para lá e para cá, ruminando, enquanto Oligário, na varanda
de sua casa, observava, silencioso e pacífico, o olhar daqueles animais à beira
da morte. O que pensariam eles quando o encaravam de volta?
Era
noite e o calor tomava conta do quarto. O fazendeiro estava habituado à
temperatura local, sempre abafada e pontilhada de pernilongos, porém algo
naquela noite estava demais. Suava mesmo esparramado sem camisa na cama,
deixando uma marca encharcada enquanto revirava para lá e para cá procurando
uma posição menos incômoda. Seu pai jamais vira um calor daqueles.
Foi
no meio desse mormaço, que Oligário ouviu um grito estranho. Um grave uivo
longo e gemido chegou a seus ouvidos, seguido de outro e mais outro, como um
coral de moribundos a gemer. Levantou-se de supetão e notou um brilho
alaranjado vindo das frestas da janela. Chegou perto do vão da persiana e seus
olhos virão apenas uma massa negra de gado a revirar-se e notou que aqueles
sons eram gemidos mugidos de seu precioso gado.
Saiu
esbaforido gritando ordens, mas ninguém o ouviu. Na varada, viu apenas a massa
bovina adiante movendo-se em polvorosa enquanto no meio delas um clarão
vermelho subia aos céus como a queimada que ele mesmo provocara outrora. Fogo!
Mas o que diabos podia pegar fogo ali, daquele jeito? Só capim e gado compunham
o cenário por léguas. Onde diabos estavam seus funcionários que ninguém ouvia
ou via aquilo e vinha acudir?
Angustiado,
Oligário, numa força e velocidade que nem mesmo ele lembrava-se possuir, saltou
sobre uma das cercas e procurou ver a origem do incêndio, desvencilhando-se da
agitação bovina, que o empurrava para lá e para cá, procurando um abrigo.
Por
mais que procura-se, Oligário não encontrava as chamas que, como o horizonte,
mais se afastavam conforme o fazendeiro se aproximava. O clarão cáustico
parecia estar sempre adiante e sua origem encoberta pela sombra do gado que
formava uma maré oscilante. Fora justamente por detrás da sombra de um dos
animais que Oligário sentiu uma enorme massa passando veloz, como se algo
atravessasse o espaço atrás de si correndo.
O
fazendeiro voltou-se para trás e nada viu, além do clarão que agora parecia
estar vindo também da direção de sua casa. Teria o fogo se alastrado até lá?
Onde estavam todos? Tentou correr, porém foi impedindo por um boi que
cortou-lhe a frente correndo, mugindo uivante com a pele toda chamuscada.
Oligário olhou para a direção de onde viera e notou uma lavareda alta, que,
ante seu olhar, escondeu-se por detrás de outros animais.
Mais
uma vez, tivera a impressão de algo veloz passar perto de si, provavelmente
algo que atiçara a lavareda, pois viera daquela direção. Dessa vez, ouvira um
barulho estranho, sibilantes, como se um jato de chama disparasse ali próximo.
Preocupado, correu rumo a sua casa. Preocupado também, um boi golpeara-lhe
enquanto corria assustado.
Caindo
ao chão, o fazendeiro procurou erguer-se rápido, temeroso de ser pisoteado ali.
Ao erguer o rosto do solo, notou diante de si uma enorme torrente vertical de
chamas, como se um gêiser explodisse ali adiante. O fogo emergia do chão,
serpenteado e, lá no alto, tomara uma forma estranha.
Em
chamas, parecia estar diante do fazendeiro um enorme rosto reptiliano, que
lembrava-lhe a sucuri carbonizada. Diferentemente dessa, porém, suas órbitas
não estavam vazias: um olhar seco e silencioso, assustadoramente familiar, o
fitava fixamente. Quando a face macabra abriu a boca, deixando entrever uma
goela vermelha e sanguínea, de onde fagulhas saiam, Oligário desesperado
virou-se e correu.
Uivava
mais desesperados que os bois, saltava como um animal por entre os demais. Às
suas costas, o silvado da serpente e das chamas aumentava. Ele não olhou para
trás em momento algum. Quando estava próximo à cerca, já destruída pelos bois
desesperados, um jato de chamas bloqueou seu caminho e uma parede de fogo
ergueu-se diante de si.
Do
meio do fogo, uma enorme bocarra vermelha abriu-se e dois olhos reluzentes e
silenciosos. Oligário jamais veria os olhos de seu pai novamente.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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