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Antologia Lua Negra: 3x07 - Seus Olhos

Conto de Paulo Romão
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Sinopse: Baseando-se no folclore nacional, o texto explora como uma entidade mística brasileira lida com um homem que utiliza da destruição ambiental para sanar sua ganância desenfreada. 


Seus Olhos
de Paulo Romão


                Uma fagulha vermelha piscou com força no meio das trevas.

                Oligário estava sentado numa cadeira de espaldar alto, acolchoada com veludo vermelho. Era de madeira nobre, esculpida a mão e totalmente incoerente com o cenário em que se encontrava. Fora, como aquelas terras, herança de seu pai, que presidia todas as jantas familiares daquela cadeira, em silêncio, devorando cada pedaço de comida a sua frente e bebericando um copo de uísque.

                Naquelas noites, seu pai, mesmo de cabeça baixa, entretido com seu prato cheio, deixava os olhos perscrutarem cada uma à mesa. Dissecava-os, avaliando se estavam comendo corretamente e os vigiava para que não dessem um pio, pois janta era hora sagrada. Seu pai nunca mais veria sua família à mesa.

                Assim como o patriarca, Oligário sentava-se em seu trono observando o trabalho de seus homens. Ninguém entendera o porquê dele vir pessoalmente, no meio da madrugada, supervisionar o trabalho, com aquela bendita cadeirona. Foi uma trabalheira só removê-la da sala de jantar na fazenda e trazer até ali. Agora estava lá ele sentado, fumando seu cigarro, um rei no meio do nada, enquanto os funcionários esvaziavam galões por todos os lados.

                Um brilho verde surgia aqui e acolá, uma pequena lavareda reluzente dançando no ar. Aqueles vaga-lumes, pequenas memórias voando no ar, eram seus velhos conhecidos. Desde pequeno, vinha com seu pai, até a borda da mata, e pegava alguns para guardar num vidro grande, pra poder olhar a dança dos bichinhos antes de dormir. Nessas noites, seu pai ficava de longe, sisudo, só olhando o menino, ansioso para voltar para casa e sair do frio. Seu pai nunca mais veria os vaga-lumes à noite.

                Quando acordava, Oligário menino encontrava o pote de vidro vazio. Seria isso um gesto de bondade de seu pai para com os bichinhos ou mais uma prova do ranço do mesmo pelo seu filho?

                - Tá pronto!

                A voz do funcionário acordou Oligário de sua recordação. Sem dizer nada, com o mesmo jeito do pai, o fazendeiro levantou-se e deu uns passos à frente. O cheiro de gasolina empesteava a mata toda e as luzes dos vaga-lumes refletiam-se nas superfícies encharcadas das folhas. Diante dele, esticava-se toda a mata que circundava a fazenda e era parte de sua herança. Seu pai jamais veria aquelas árvores novamente. Nem ninguém mais.

                Oligário tragou fundo e jogou o cigarro no chão. Num rugido, a pituca transformou-se numa fogueira que alastrou-se para os lados, serpenteando. A gasolina inflamou-se e, com ela, todo o chão a seu redor. Uma parede de fogo começou a erguer-se e o estralar das folhas pegando fogo encheu a noite. O fazendeiro deu uns passos atrás, começando a suar já diante da fornalha que ali ganhava força.

                As pequenas luzinhas verdes dos insetos cederam lugar às centelhas alaranjadas que subiam ao ar. A noite amanheceu vermelha.

                - Mas, pai, a gente precisa crescer mais! É só um monte de mato! Tem num sei quantos alqueires de terra em volta do nosso pasto, tudo lá, parado. É só a gente tacar fogo e limpar. Imagina quantas cabeças de boi num dá pra por lá!

                O jovem Oligário se exaltava diante do silêncio do pai. Já tivera inúmeras vezes essa discussão e o pai jamais abria a boca, o que o irritava ainda mais do que ouvir uma negativa como resposta. O jovem via na mata um empecilho para obter mais lucros, fazer crescer a fazenda e a criação, mas o pai não permitia que ninguém tocasse numa folha sequer de lá. Toda noite, mesmo sem a companhia do filho a caçar vaga-lumes, ainda ficava alguns minutos lá, observando, de olhar fixo, o brilho das estrelas e dos insetos, para só então substituir o som da mata pelo silêncio habitual.

                Os novos tempos precisavam de novos pensamentos, e o pai de Oligário era um homem tradicional. O que tinha, lhe bastava e se crescer significava destruir o passado, ele ficaria como estava.

                Olhava fundo nos olhos de Oligário e, em silêncio, como resposta, apenas dava-lhe as costas. Agora, o herdeiro podia realizar seus sonhos e expandir os negócios. Seu pai jamais veria um fogo assim.

                Oligário, contemplando as chamas crescerem, via o verde da floresta e dos vaga-lumes ser substituído pelo vermelho da queimada, como sangue a escorrer pelos veios da mata. Parecia ver, preso entre a lembrança de seu pai e o presente ardente, os olhos do velho patriarca, mudos, a julgarem-no do meio da mata. A ilusão de ótica, provocada provavelmente por centelhas a bailar no ar quente, fez com que suasse ainda mais.

                O vermelho das chamas deu lugar ao amarelado do sol vespertino. O negro da noite deu lugar às sombras das cinzas. O som das aves foi substituído pela queda das árvores. Dois tratores, presos entre si por uma enorme corrente, começaram a limpar o terreno, arrastando-a serpenteante, derrubando as árvores defuntas e preparando o terreno para o pasto que viria.

                Sentado em seu trono, o fazendeiro tudo observava. Quando tudo parecia acabado, resolveu checar aquela terra prometida com seus próprios olhos. A cada passo, as cinzas secas estalavam e a fuligem subia ao ar. Notou que, ali adiante, alguns funcionários, em roda, observavam algo estranho.

                Ali, à frente deles, estava um corpo enorme, carbonizado, como um grande tronco, da mais antiga árvore, esticado ao chão. Enganava-se quem pensava que era uma árvore porém. Caminhando com os olhos por toda a extensão daquele corpo imenso, Oligário deparou-se com uma cabeça seca e negra de uma enorme sucuri. A pele ressequida pelo fogo deixava entrever o contorno de duas órbitas vazias, cujos olhos provavelmente teriam derretido em meio às chamas da noite anterior. O animal, no entanto, parecia fita-lo mesmo sem olhos, prestes a dar-lhe o bote. Aquele olhar vazio e silencioso de seu pai.

                Oligário deixou a serpente e o vazio para trás, deixou para trás os desejos de seu pai, deixou para trás o futuro da fazendo, e encaminhou-se para a casa. Com a limpa do terreno, em breve a grama cobriria o chão até os horizontes de uma nova era, verde e capitalista. O brilho dos olhos do gado e das moedas compensaria toda aquela fumaça que turvara o céu e o espírito do fazendeiro.

                E o verde realmente chegou: não o da copa das árvores ou do reluzir dos vaga-lumes, mas do capim mascado pelos bois, pisoteado por seus cascos. Passivos, andavam para lá e para cá, ruminando, enquanto Oligário, na varanda de sua casa, observava, silencioso e pacífico, o olhar daqueles animais à beira da morte. O que pensariam eles quando o encaravam de volta?

                Era noite e o calor tomava conta do quarto. O fazendeiro estava habituado à temperatura local, sempre abafada e pontilhada de pernilongos, porém algo naquela noite estava demais. Suava mesmo esparramado sem camisa na cama, deixando uma marca encharcada enquanto revirava para lá e para cá procurando uma posição menos incômoda. Seu pai jamais vira um calor daqueles.

                Foi no meio desse mormaço, que Oligário ouviu um grito estranho. Um grave uivo longo e gemido chegou a seus ouvidos, seguido de outro e mais outro, como um coral de moribundos a gemer. Levantou-se de supetão e notou um brilho alaranjado vindo das frestas da janela. Chegou perto do vão da persiana e seus olhos virão apenas uma massa negra de gado a revirar-se e notou que aqueles sons eram gemidos mugidos de seu precioso gado.

                Saiu esbaforido gritando ordens, mas ninguém o ouviu. Na varada, viu apenas a massa bovina adiante movendo-se em polvorosa enquanto no meio delas um clarão vermelho subia aos céus como a queimada que ele mesmo provocara outrora. Fogo! Mas o que diabos podia pegar fogo ali, daquele jeito? Só capim e gado compunham o cenário por léguas. Onde diabos estavam seus funcionários que ninguém ouvia ou via aquilo e vinha acudir?

                Angustiado, Oligário, numa força e velocidade que nem mesmo ele lembrava-se possuir, saltou sobre uma das cercas e procurou ver a origem do incêndio, desvencilhando-se da agitação bovina, que o empurrava para lá e para cá, procurando um abrigo.

                Por mais que procura-se, Oligário não encontrava as chamas que, como o horizonte, mais se afastavam conforme o fazendeiro se aproximava. O clarão cáustico parecia estar sempre adiante e sua origem encoberta pela sombra do gado que formava uma maré oscilante. Fora justamente por detrás da sombra de um dos animais que Oligário sentiu uma enorme massa passando veloz, como se algo atravessasse o espaço atrás de si correndo.

                O fazendeiro voltou-se para trás e nada viu, além do clarão que agora parecia estar vindo também da direção de sua casa. Teria o fogo se alastrado até lá? Onde estavam todos? Tentou correr, porém foi impedindo por um boi que cortou-lhe a frente correndo, mugindo uivante com a pele toda chamuscada. Oligário olhou para a direção de onde viera e notou uma lavareda alta, que, ante seu olhar, escondeu-se por detrás de outros animais.

                Mais uma vez, tivera a impressão de algo veloz passar perto de si, provavelmente algo que atiçara a lavareda, pois viera daquela direção. Dessa vez, ouvira um barulho estranho, sibilantes, como se um jato de chama disparasse ali próximo. Preocupado, correu rumo a sua casa. Preocupado também, um boi golpeara-lhe enquanto corria assustado.

                Caindo ao chão, o fazendeiro procurou erguer-se rápido, temeroso de ser pisoteado ali. Ao erguer o rosto do solo, notou diante de si uma enorme torrente vertical de chamas, como se um gêiser explodisse ali adiante. O fogo emergia do chão, serpenteado e, lá no alto, tomara uma forma estranha.

                Em chamas, parecia estar diante do fazendeiro um enorme rosto reptiliano, que lembrava-lhe a sucuri carbonizada. Diferentemente dessa, porém, suas órbitas não estavam vazias: um olhar seco e silencioso, assustadoramente familiar, o fitava fixamente. Quando a face macabra abriu a boca, deixando entrever uma goela vermelha e sanguínea, de onde fagulhas saiam, Oligário desesperado virou-se e correu.

                Uivava mais desesperados que os bois, saltava como um animal por entre os demais. Às suas costas, o silvado da serpente e das chamas aumentava. Ele não olhou para trás em momento algum. Quando estava próximo à cerca, já destruída pelos bois desesperados, um jato de chamas bloqueou seu caminho e uma parede de fogo ergueu-se diante de si.

                Do meio do fogo, uma enorme bocarra vermelha abriu-se e dois olhos reluzentes e silenciosos. Oligário jamais veria os olhos de seu pai novamente.

 


Conto escrito por
Paulo Romão

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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