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Antologia Lua Negra: 2x08 - Gosto de Sangue

Conto de J. J. Souza
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Sinopse: Marimbondo, um vaqueiro pacato, alegre que adora contar casos. Era apaixonado por rodeios e competições tipo vaquejada. Competia, e sempre saia vencedor. Até que um dia um acontecimento em noite sem lua mudou sua vida. Nunca mais ele competiu.


Gosto de Sangue
de J. J. Souza

 

Estive em Januária, no norte de Minas, para rever amigos, o local é um arraialzinho naquela cidade, o distrito do Tijuco. Lugar agradável de pessoas agradáveis, porém faz um calor infernal, sem dúvida nenhuma, em horário de pico a temperatura deve ter batido uns quarenta graus, por baixo. Nada que uma boa cerveja gelada e um bate-papo gostoso na praça debaixo de um pequizeiro centenário não refresque.

Foi em um desses bate-papo que conheci um vaqueiro por nome Antônio Cipriano mais conhecido como Marimbondo. Sujeito boa prosa, falastrão, contador de casos, muito religioso, daqueles sujeitos que é difícil se apartar deles, tamanha a empatia. Marimbondo não é muito chegado a cerveja, mas de cachaça, “valei-me nossa Senhora”, o cabra toma é para lá de litro.  

Indaguei a ele sobre aquele apelido “Marimbondo” e olha que em todo aquele vilarejo ele era muito do conhecido, mas se procurasse por “Antônio Cipriano” ninguém sabia quem era, ninguém dava notícias. 

Ele riu, gargalhou bastante, tomou mais umas duas doses de cachaça e disse:

- “Quer mesmo saber? ” 

E continuou sorrindo, mostrando lindos dentes bem cuidados, onde um deles tinha sido obturado com um pedaço de ouro. 

Eu mais que rapidamente respondi: 

- “Ora! Claro que quero, conta aí vai! ”

Ele começou a história do apelido falando bem baixinho, parecia que não queria que ninguém escutasse e soubesse o que todo mundo já sabia. Aquela história já correra chão por aquelas bandas.

“Eu era jovem, estava aprendendo a profissão de vaqueiro, tinha lá uns dezessete anos, e um dos bois havia se desgarrado da manada e entrado para dentro da mata, João Capataz mandou justo eu trazê-lo de volta. Me embrenhei mata adentro atrás do fujão. Caça daqui, procura dali, avistei o danado e fui atrás fazendo com que ele voltasse. Para meu azar, ele, o boi fujão, passou em meio há uns arbustos e eu fui atrás, ao passar não percebi uma casa de marimbondos pendurada no galho de uma das árvores e bati forte com minha cabeça nela, quando percebi, vi uma nuvem preta atrás de mim e sai em disparada ainda montado no cavalo e gritando, marimbondo, marimbondo e os outros vaqueiros, alguns mais experientes, caíram na gargalhada e começaram a gritar, corre marimbondo, corre marimbondo. A partir daquele dia todos passaram a me chamar de Marimbondo. Foi aí que ganhei esse apelido.

Sorri demais imaginando a cena de “Marimbondo” em cima do cavalo correndo dos marimbondos e perguntei na maior gargalhada:

- “Mas... eles não te picaram não? ”

- “Minha Nossa Senhora, foi tanta picada que precisei de mais de uma semana para me recuperar, se tivesse algum problema tinha morrido, tenho marcas até hoje. ” Respondeu.

Continuamos a beber e a conversar. Marimbondo sempre tinha um caso para contar e sempre com muita alegria. Contou sobre o dente de ouro. Segundo ele, o ouro foi presente de um padre garimpeiro que ele salvara da queda de um penhasco, que, com certeza, se não fosse por ele teria morrido. O padre muito agradecido lhe deu aquela porção de ouro, que foi benzida e consagrada por um bispo, ouro que ele havia conseguido em um garimpo lá pelas bandas de Riacho dos Machados em Porteirinha e o recomendou que nunca se desfizesse-se dele e para isso não acontecer colocou a obturação. 

Nisso chegou um outro peão amigo do pessoal e passou a prestar atenção na prosa de Marimbondo, até que em determinado momento ele virou para ele e disse:

- “ O Marimbondo'' conta aquela história do vaqueiro fantasma. ”

Marimbondo mudou completamente. Do sorriso largo, a cara fechada.

– “Quero falar disso não”. Respondeu. 

Mesmo com a insistência do vaqueiro Marimbondo foi taxativo.

- “Quero falar disso não! ”

Mas eu que sou muito curioso e gosto de história, não deixei por menos. A insistência foi quase unânime.

- “Conta Sô! Eu gostaria muito de ouvir essa história, está com medo de que? ”

- “Medo de nada não”! Respondeu.

- “Então conta”.

Os olhos de Marimbondo se arregalaram. Senti que tinha algo diferente acontecendo. Apesar do calor que fazia, Marimbondo começou a tremer como se estivesse com muito frio. Dessa vez ao invés de uma dose de cachaça, encheu o copo até na risca e virou goela abaixo de uma só vez. Parou mais um instante deixando a cachaça assentar. Se remexeu na cadeira e disse:

- “ Isso não é lenda igual esse povo falador conta, isso é caso real que eu vivi”.

- “Eu sempre participei de rodeios e vaquejadas, participava de todas as competições principalmente de derrubada de boi e sempre ganhei. Nunca encontrei vaqueiro que fizesse frente, até começar a entender tudo naquele dia”. 

Marimbondo parou um pouco, ficou meio pensativo, enfiou a mão no bolso, como se fosse retirar algo e continuou.

“Nessas competições por muitos anos fui imbatível, devido a minha coragem. Fui convidado a participar de uma competição lá pelas bandas do Goiás, na divisa com Minas Gerais. Fui, e já dava como certa minha vitória. Era mês de agosto e as noites eram claras e estreladas e não muito frias apesar do vento, me lembro bem pois na maioria delas dormi ao relento junto com outros vaqueiros.

Esse tipo de competição a gente faz em dupla, você pode derrubar o boi pelo rabo ou pelo pescoço depende da coragem do vaqueiro. Aí, uma dupla vai eliminando a outra. Eu já havia vencido umas cinco duplas, com vaqueiros daqueles bons, nas noites anteriores. Tudo pronto para a última noite de competição. Noite estranha, estava muito mais escuro, o céu mais estrelado, eu não consegui ver a lua. Senti uma vibração diferente, tinha algo errado, uma energia anormal, negativa. Na boca, gosto de sangue, como se estivesse acabado de tomar um copo. Você sabe né? O gosto de sangue a gente não esquece. Naquele momento passei a sentir raiva, o ódio invadiu meu coração, onde havia amor e compaixão só danação agora. No fundo eu lutava contra, esse não sou eu. Sou sujeito bom, temente a Deus. Meus pensamentos fugiram quando ouvi aquela voz tenebrosa sussurrar no meu ouvido: 

-“Não adianta lutar, esse é você, escondido no seu íntimo! 

De repente surge um ser horripilante, que se escondia nas sombras, cuja fisionomia não consigo descrever. Se postou bem diante de mim, seu olhar fixo nos meus me mostrou quem eu era. Naquele momento eu era um vaqueiro velho, esquelético, montado num cavalo também velho e fraco, onde se via só pele e osso, olhos fundos, parecia não comer a anos. O velho, que naquele momento parecia ser eu, tinha o corpo esguio, esquelético, suas pernas quase encostavam no chão de cima do cavalo, vestia trapos de pano com peles surradas por cima. Quando levantei meu rosto e tornei a mirar os olhos dele, uma vida passou por mim, percebi o porquê de tantas vitórias em rodeios passados, era influenciado. Vi quantas atrocidades eu poderia ter cometido e como aquilo me alegrava. Tentava lutar contra, impossível. Minha irracionalidade falava mais alto.

Naquele momento ao meu lado estava meu parceiro. Ele se virou para mim e disse:

– “É você o tal campeão, né? O que acha que sempre vence sozinho. Vou te ajudar a vencer agora. Essa coroa de rei das vaquejadas você terá que dividir comigo”. 

“Fiquei pensativo por um momento. Por que ele não se assustou? ” Havia um monstro bem ali, à sua frente. Olhei para ele com tanto ódio que consegui sentir o cheiro do sangue exalar de seu corpo. Me vi com os dentes cravados em sua carne suculenta e macia, cheguei a sentir o gosto de sangue na boca novamente, seu coração pulsava em minha mão. 

Um tiro! O boi partiu em disparada. O medo me consumia. Eu realmente estava preso naquele corpo nojento. O velho esporeou o cavalo, que saiu a galope, com um só golpe derrubou o boi, matando o coitado do animal, quase arrancando-lhe a cabeça, que caiu exatamente onde se somaria mais pontos. Quando o boi é derrubado dentro da faixa própria demarcada com as quatro patas para o ar o juiz grita “valeu boi”, esta foi a única vez que se ouviu tal grito na competição. Vencemos aquela com uma tremenda facilidade. Muitas palmas, o público foi ao delírio. Por um instante olhei e vi vários corpos, mutilados, animais e seres humanos despedaçados, me vi saboreando carne e sangue, me regozijando com aquele espetáculo de horror.  Quanta violência! Havia uma legião de demônios e todos estavam aplaudindo de pé. O som dos gritos e das palmas me tiraram daquele transe. Quando finalmente voltei eles haviam desaparecido, o velho não deixou vestígio de sua passagem a não ser pelo boi morto e meu medo. Tudo voltará ao normal.

Passei um longo período para me recuperar de tudo o que aconteceu. Ainda não sei o que de fato houve. Sei que de lá para cá não participei mais de nenhuma competição. Por medo de realmente ser aquela coisa ou um dia me tornar.

Um tempo depois fiquei sabendo de uma lenda muito parecida no nordeste do país e algum interior do Brasil, principalmente nas localidades que tem fortes tradições no Ciclo do Gado. Ela é contada por muitos vaqueiros em lugares diferentes, onde o velho vaqueiro sempre aparece para participar das competições de derrubada de boi, mata-os, deixando sempre um rastro de sangue e medo.

Ele sempre é descrito como um vaqueiro velho, malvestido, com um cavalo fraco, um pangaré, participa e ganha as competições e quando alguém procura por ele para saber quem é ou de onde veio, ele acaba sumindo sem deixar nenhuma pista. Vence, mas não leva o prêmio.  

“Não gosto de relembrar essa história, ainda hoje quando me lembro sinto como se aquele velho estivesse aqui, ao meu lado. Parece próximo, sinto calafrio na alma, gosto de sangue na boca, acho que foi o próprio demônio que esteve ali comigo, ou que eu mesmo era o próprio deus do mal. Nunca mais fui o mesmo”.  

“Às vezes penso que o amuleto preso em meu dente tenha me salvo. O homem é o juiz de seu destino ele pode aliviar seu suplício ou prolongá-lo por tempo indefinido. O destino não é uma questão de sorte, e sim uma questão de fé”. 

Marimbondo interrompeu a narrativa e fez o sinal da cruz benzendo-se. Continuei com os olhos e os ouvidos arregalados na direção dele e vi que do bolso ele tirou um terço e uma medalhinha de São Raimundo Nonato dos Mulundus, que é o padroeiro dos vaqueiros e a apertava com força começando uma oração. Tomou mais um dedo em pé de cachaça e saiu calado sem se despedir, ainda repetindo a oração, montou em seu cavalo e partiu a galope, provavelmente rumo a fazenda onde trabalha; mas antes passou pela igreja que fica ali no centro da praça. A história do vaqueiro Marimbondo me impactou. Voltei ao distrito do Tijuco outras vezes na esperança de reencontrá-lo; mas infelizmente nunca mais tive notícias daquele vaqueiro alegre de sorriso largo. 


Conto escrito por
J. J. Souza

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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