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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 3x14 - Uma Velha História de Assassinato (Season Finale)

Conto de Caliel Alves
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Sinopse: Nelson de Paula saboreava o último dia de sua vida em Araçás. Era noite de Ano Novo, os fogos de artifício faziam barulho, complementando clima de festejo e risadas. Mas antes que o Ano Novo raiasse no horizonte, encontrou-se com a morte. A violência do homicídio e a negligência das autoridades farão uma cidade inteira se revoltar.



3x14 - Uma Velha História de Assassinato (Season Finale)
de Caliel Alves

  

            Baseado em fatos reais

 

            Nelson de Paula bebeu, fumou e amou durante a noite de ano novo. Araçás, ainda Distrito de Alagoinhas, estava em festa. O que Nelson não percebeu foram os dois homens o observando do outro lado do bar. Olhos encovados. Testas tensionadas. Queixos protuberantes. Fuzilavam o homem com suas pupilas dilatadas pelo colírio do ódio. A presa não percebia que estava dentro de uma caçada.

            Pediu ao seu Marcelo mais uma quente. A bebida foi posta na mesa. Entornou o corpo na caixa dos peitos. O líquido desceu rasgando garganta adentro. Parecia ter ingerido uma brasa. O álcool assentou no estômago vazio. Sorriu, lacrimejou e bateu o fundo do copo na mesa. Bateram em suas costas. As notas eram jogadas na mesa do bar. Havia dinheiro, só não tinha esperança de dias melhores.

            Todos ao seu redor ávidos por usufruírem do poder daquelas cédulas. Amarrotadas, rasgadas, mas ainda assim portadora de valores. Valor de compra. Felicidade comprada a prestações. Juros muito elevados. Nelson de Paula era homem gaiato. Amado pelos amigos de copo. Adorado pelos companheiros de furto. Festejado pelas mulheres da Capoeira, brega improvisado as margens da rodovia. Velhas prostitutas vindas de Sergipe, mas que ainda tinham amor a oferecer, a um baixo preço. Às vezes, por uma dose de fubuia, noutras, por um prato de comida.

            O homem parecia em estase naquela noite. Fogos espocavam na noite, trazendo mais o vislumbre de estrelas passageiras. E para comemorar esse ciclo de vida e morte instantâneo, os bebuns davam vivas. Cantarolavam as modinhas do rádio. Depois uivavam para a lua. A matilha estava velha, mas na ativa.

            O araçaense comemorava. Mesmo sem saber o que. Tinha nada a agradecer. A vida não andava tão boa. Girou o corpo na mesa do bar. O dinheiro a essa altura já minguava. O dono anotava no caderninho. Eterno fiado. Nem os avisos ou ameaças fariam daqueles homens analfabetos bons pagadores. Se acumulavam de vícios para diminuir as insuficiências da vida.

            Nelson de Paula enfiou as mãos nos bolsos. Quase os dedos furaram a calça jeans. Jogou a última nota em cima da mesa e se despediu. Não deu o “Té logo” de costume, disse “Adeus”, como se não fosse ver mais ninguém. Atabalhoado, seguiu porta afora. A sola dos sapatos se arrastando nos paralelepípedos. Errou a esmo sem ver as duas sombras que o seguiam.

            O homem queria ver o Enterro do Ano Velho. Nesse rito local, os populares simulavam a morte do Ano Velho fazendo um caixão com uma caixa de sapato. Colocavam um boneco de estopa com o ano vigente decorado no peito. Abaixo de cantilenas e choro, jogavam o Ano Velho no Rio Quiricó. Nelson havia nascido ali. Ainda morava ali. E nunca teve o prazer de ver o féretro daquele velho conhecido. Sorriu. O álcool ainda cambaleava seus passos.

            Quando as ruas foram se tornando mais escuras, o barulho do entorno da Igreja da atriz mais distante, passos crocantes iam se tornaram mais altos. Nelson olhou para trás. Não havia mais sorriso em seu rosto. Dois vultos chapinhavam areia atrás dele. Apressados demais, suspeitos demais para quem queria festa.

            Alargou os passos. A dupla de vultos também. Nelson já não mais andava, flutuava trôpego. Não ia mais em direção ao Quiricó. Direção oposta. As poucas casas que margeavam o rio estavam fechadas. Fogos, animais noturnos e gritos de comemoração silenciaram Nelson. Um terceiro homem surgiu na sua frente. Estacou. Um brilho prateado refletiu a lua. Tentou evadir. Tropeçou. A dupla de covardes o ergueram. Gritou, gritou, depois cuspiu sangue. Primeiro vieram os socos. A areia das ruas ainda por urbanizar foram ficando avermelhadas. Depois vieram as punhaladas. Não contente, o mandante e executor tinha muita sede de sangue, deu estoques com uma chave de fenda. A mesma chave de fenda que usava para concertar a caminhonete agora ia desencaixando a alma do sujeito. Nelson vomitava sangue. As vísceras já derramando pelo abdômen.

            Ainda vivo o castraram. Puseram sua genitália na boca e a costuraram. Por fim, deram cabo da vida ele enfiando o punhal no seu coração. A ponta se partiu com o golpe e se alojou na coluna vertebral. Correram com o corpo. O jogaram num lençol. O fundo da caminhonete foi aberto e o defunto foi jogado dentro. Apagaram suas pegadas com ramos de araçá.

            Subiram na boleia da caminhonete. Rumaram pro norte. O corpo foi desovado no tanque de Salomão, grande fazendeiro local. Mas antes, tomaram os devidos cuidados. Amarraram uma pedra aos escrotos do homem. Pensaram que o corpo afundaria. Mas quis Deus ou as leis da física que não. Atiraram o corpo nu na água. Deram as costas e sumiram na escuridão. A pedra fez um efeito âncora. O defunto boiou sendo beliscado a noite inteira pelos peixes e pela manhã pelos urubus.

            Foi encontrado pela manhã por um roceiro que pescava alguns peixes escondidos no tanque. Quando as autoridades policiais foram avisadas, tentaram abafar o caso. Mas as notícias ruins tendem a se alastrar pelo vento. Antes que o defunto fosse retirado da água, a morte de Nelson de Paula foi anunciada aos quatro cantos da pequena urbe. Enquanto a família se desesperava e os amigos bebiam para afastar o gosto de morte da boca, as elites locais festejavam como se fosse uma micareta. Faziam tanta questão de demonstrar que anunciaram com alarde a morte do “maior maloqueiro” e “maconheiro” de Araçás. Nunca se fez tanta piada com a morte de um ser humano.

            A polícia fez pouco ou nenhum esforço para investigar. O corpo foi enviado ao Instituto Médico Legal Nina Rodrigues em Salvador, não sofrendo nenhuma perícia. Nenhum carro foi ofertado aos familiares para que pudessem ir a capital resgatar o corpo. Depois de contrair algumas dívidas, conseguiram alugar uma Toyota. Foram a região metropolitana a irmã mais nova e o irmão mais velho de Nelson de Paula.

            O corpo, espetado naqueles ganchos como se fosse um peixe destripado fez a mulher vomitar. Grávida de três meses, mal podia manter-se de pé. Teve vertigens. Estava desfigurado. Reconhecível apenas pela arcada dentária. A imagem daquele açougue humano atormentaria aquela mulher durante toda a sua vida.

            Assinaram os papéis. Mas não constava ali a palavra Homicídio. Laudo Inconclusivo. O perito disse que se estivessem achando aquilo ruim que fossem reclamar as autoridades competentes. Nenhum rogo o fez mudar de ideia. A voz do perito tinha firmeza na negativa. Os olhos o traiam. O suor do rosto negava sua fala contundente. Botou os irmãos de Nelson de Paula pra fora. Trouxeram o corpo enrolado numa rede comprada e beira de estrada. O fedor de formol nauseando a todos. Chegaram em Araçás com a sensação de que haviam morrido durante o percurso. Se sentiam enojados. Podres.

            Agora só restava velar o corpo. Dinheiro não havia para comprar um caixão. O esquife foi feito com restos de marcenaria, tábuas de cerca e uma velha porta de cozinha. Fizeram o velório na casa da irmã mais nova. Compareceram todos os familiares, alguns poucos companheiros de bar e uma mulher com quem era amigada.

            Beberam e contaram casos até a noite. As mulheres arrancaram choros de carpideiras de dentro de si. Gemidos agudos ecoando na noite. Competiram com o vento mormacento do verão. A irmã enlutada acompanhava a reza. A voz saía aos sopros. Chorou durante toda a manhã e à tarde, até que as lágrimas teimaram em não cair. Soluçava baixo. O filho remexia na barriga, como um pequeno peixe nadando no líquido amniótico.

            O marido fazia café na chaleira, com algum malabarismo devido ao coador estar furado. Serviu o café em copos de alumínio e xícaras de esmalte com as asas quebradas. Os homens bebiam o café sem açúcar queimando o céu da boca. O amargo ficava na boca dando pigarro.

            Pela manhã, na missa matutina, ergueram o caixão a quatro alças e o levaram rua acima, rua abaixo. A velhas debulhadoras de terço faziam seus clamores. Os irmãos andavam amparando um ao outro no chão de areia. O chape-chape das sandálias e dos sapatos iam deixando suas marcas. Até que o centro da cidade aumentou a sinfonia de passos com a dureza do piso de pedra.

            A Igreja de Nosso Senhor Deus Menino surgiu com um centro gravitacional. Toda Araçás parecia convergir para lá. Homens, mulheres, crianças e idosos orbitavam ao seu redor. Mas quando o caixão chegou há dez metros da porta, encontrou uma barreira. As elites locais se puseram como obstáculo e impediram a entrada. A ironia da maioria virando minoria. Os poucos pracinhas davam ganho de causa aos senhores locais. Os populares nada puderam fazer. Argumentaram, até imploraram, mas ninguém lhes deu ouvido. Tiveram que deixar o caixão as portas da igreja.

            Sob ameaças de cassetetadas e tiros de fuzil, debandaram cada um para suas casas. E a urna ficou ali, em frente ao templo. A família nem sabia como reagir. Nem direito a um enterro digno Nelson de Paula teria. O último sacramento cristão lhe seria negado. E assim se somaram um dia, depois outro, e no terceiro, assim como Cristo ressuscitara, a alma de Nelson também se salvaria.

            O compadre do falecido, não aguentando mais aquela situação, convocou o irmão mais velho e o cunhado de Nelson a ir lá adentrar a igreja com caixão e tudo. Era tanto desrespeito com o morto, que até os cães de rua se negavam a violar o caixão em plena Praça da Matriz. A conversa foi ganhando o rumo da rua, quando não, toda à Araçás estavam rente ao caixão. A amante do defunto pegou na última alça do caixão. Sob ameaça e desaprovação das elites locais e das autoridades policiais, toda a cidade investiu contra a porta da igreja. O compadre disse que aquela alma seria entregue a Deus, e quem não quisesse acompanhá-lo que fizesse por bem sumir de suas vistas. Vendo a determinação dos araçaences em prol daquela causa, as elites deram passagem, a contragosto.

            O padre, suando como nunca, realizou a missa. Terminando ela antes do tempo. Abençoou o caixão e rogou a São Pedro que recebesse aquele filho de Deus. Seguiram cabeça acima e enterraram Nelson de Paula. Aplaudiram-no como a um herói. Quando jogaram a última pá de terra, caiu uma chuva fina que enlameou a cidade por uma semana.

            Se algum dia você tiver a oportunidade de passar o Ano Novo na casa dos familiares de Nelson de Paula, você notará um clima estéril de felicidade. Pessoas sorumbáticas. Um silêncio gritante. Releve. Ano Novo para eles não é uma época feliz, e sim de luto.         





Conto escrito por
Caliel Alves

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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