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Antologia Lua Negra | Capítulo 09: Para Onde Vão as Crianças Desobedientes

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Sinopse: O Natal é a época mais esperada pelas crianças - presentes, comidas, magia natalina! 

O que não se sabe é que por trás da imagem do bom velhinho há uma Coisa que espreita a espera de crianças que saem sozinhas a noite, sem a supervisão dos pais – e se deve ter muito cuidado com homens carregando um saco na madrugada.


Para Onde Vão as Crianças Desobedientes
de L.S. Alves


 Acredito que tenha sido Sigmund Freud, um psicólogo austríaco, quem disse algo referente às crianças serem os únicos seres emancipados da realidade. Durante todos esses anos após o ocorrido, começo a compreender o que ele quis dizer com isso – ou apenas acho que entendo. A bem da verdade, nunca fui um cara muito esperto, e passei boa parte da minha infância como um garotinho assustado, esperando o monstro embaixo da cama levar-me embora, para um mundo perverso e desconhecido. A realidade agora me parece muito subjetiva. Como o Mito da Caverna de Platão, sinto que há uma corrente que nos prende rente à parede, e só conseguimos enxergar uma única realidade, distorcida daquela que é verdadeira.
As crianças, a meu ver, são as únicas que conseguem enxergar o real. Não a verdade dos homens, que é aquela que todos conhecemos, mas a verdade do universo e daquilo que não sabemos, ou fingimos não saber. É a única explicação que encontro para só ter visto aquela Coisa quando ainda era um moleque, e na vida adulta ter esquecido boa parte do que aconteceu naquela horrenda noite. Mesmo ainda não compreendendo completamente o psicólogo austríaco, acredito que a ideia central é que as crianças são os únicos seres humanos cuja imaginação flui como as águas de um rio. Talvez seja por isso que aquela Coisa goste tanto de crianças.
Espero eu, leitor, que a sua imaginação não seja tão fértil.
Narro aqui os eventos de algo que sucedeu em um dezembro chuvoso, dias antes do Natal. Eu morava em um minúsculo apartamento com minha mãe, em um edifício velho e antigo. Tinha cinco andares, e o nosso apartamento se encontrava bem no centro, no terceiro andar. Era uma sorte, como dizia mamãe. O nosso prédio tinha apenas dois toaletes: um para homens e outro para as mulheres. Não havia banheiros dentro dos apartamentos, por isso o aluguel era bastante barato. E, por sorte, eles ficavam bem no nosso andar, no finalzinho do corredor. Tinham, na porta, desenhos descascados de um homem e uma mulher, indicando qual pertencia a quem.
Foi lá que tudo ocorreu.
Havia trinta moradores ao todos, e nove crianças, incluindo eu. Como estávamos em pleno período de feriado, a escola estava em recesso, e o prédio enchia-se com a correria de crianças cheias de energia para extravasar. Do meu apartamento, eu podia escutar os pesados passos dos gêmeos de nove anos do andar de cima, correndo para cá e para lá. Normalmente, as crianças ficavam no pequeno jardim atrás do prédio, onde uma velha casinha de madeira com um escorrega bunda estava. Naquele dia, no entanto, a chuva forte não permitia a saída de ninguém, e tínhamos que nos contentar em brincar dentro de nossos miúdos apartamentos.
Quando vi a Coisa, era madrugada de uma noite fria e apática. Acordei sonolento, e me dirigi para a porta, saindo do meu quarto em direção ao banheiro, no final do corredor, do lado de fora. Quando era menor, morria de medo de sair de madrugada do apartamento. Prendia a bexiga até pegar no sono, ou quando realmente não aguentava segurar a noite inteira, acordava minha mãe para me acompanhar até lá. Minha imaginação fértil dizia-me que havia alguma coisa ali no corredor me esperando. Um monstro que agarraria minha perna e me levaria embora para seu mundo; a coisa desconhecida que sempre tememos que, um dia, virá nos buscar.
Com onze anos, tomei a decisão de que já era grande o suficiente para não temer aquele tipo de bobagem. Era apenas um banheiro, e nada lá dentro poderia me fazer mal. Assim, naquela noite, atravessei o corredor e encarei a porta do banheiro com nada mais que olhos pesados de sono e entrei. Fedia a urina e produtos de limpeza ao mesmo tempo. Apertei o interruptor e as luzes piscaram, acanhadas, enquanto acordavam. O piso estava quebrado, e a tinta das paredes outrora azul estava encardida e carcomida. Havia três mictórios na parede esquerda, e do outro lado três reservados separados por paredes de metal, com chuveiros e vasos sanitários no interior. Uma pia pequena com uma torneira suja ficava perto da porta, acompanhadas de um espelho quebrado pendurado na parede. Era tudo.
No auge dos meus onze anos, eu ainda era muito pequeno para usar o mictório, então sempre precisava usar um dos espaços privados. Enquanto estava lá dentro, em pé, fazendo o que tinha de fazer, ouvi a porta de entrada abrir e fechar. Podia escutar os passos pesados de alguém contra o piso, direcionando-se a porta ao lado da minha. Era comum encontrar algum morador no banheiro, então não estava realmente surpreso. Escutei a porta de metal abrir e fechar lentamente. Durante alguns segundos, não houve qualquer barulho além de urina contra a água do assento sanitário, que vinha de minha pessoa. Entretanto, logo um assobio iniciou-se de dentro do reservado ao meu lado.
O homem cantarolava alguma canção. Para mim, a cena era inusitada, e, ainda hoje, doze anos depois do ocorrido, acredito que aquela coisa teve algum poder sobre mim. Como se, de algum modo, tivesse atiçado a minha curiosidade, tal como o flautista de Hamelin atraiu as crianças para longe do povoado com seu som. E eu, sendo ainda uma criança que pouco conhece as coisas do mundo, fiquei completamente curioso sobre quem era o anônimo ao meu lado, cantarolando uma canção desconhecida, mas muito instigante. Abaixei-me, quase encostando a cabeça no chão, e espiei através dos espaços que nos separavam. Vi botas pretas e calças vermelhas cobrindo pernas musculosas. Ele batia os pés no chão no ritmo da canção assobiada.
Ao lado dos seus pés, havia um saco grande de tecido cinza, com listras vermelhas espalhadas verticalmente. Estava parcialmente aberto, e pude distinguir alguma coisa brilhar em seu interior. Apertando os olhos para enxergar melhor, vi que era um carrinho de plástico, daqueles que todo garoto quer ter. Daqueles que eu desejava ter. Na minha mente infantil, a primeira coisa a qual relacionei o evento era a resposta óbvia: o Papai Noel estava no banheiro ao meu lado! Caro leitor, não me julgue por tal estupidez. Lembre-se que eu ainda era uma criança, e o período natalino é aquele em que sempre esperamos algum tipo de mágica acontecer. Subitamente, quando cheguei a essa conclusão, o assobio parou, bem como as batidas dos pés no chão.
- Olá, Jonas – disse ele – Parece que você me pegou!
Uma risada. Daquelas que todo senhor de idade tem. Algo bom de ouvir. Lembrou-me naquele momento de meu avô. Perguntei a mim mesmo se estava sonhando tudo aquilo.
- É você, Papai Noel? – sentia-me estúpido e feliz ao mesmo tempo ao questionar aquilo. Meu eu adulto de agora sabe que aquilo não era o Papai Noel, ou qualquer coisa que pudesse ser nomeada. “Mas o natal é daqui a dois dias!”
“Ora” respondeu-me “eu soube que aqui havia um rapazinho muito comportado e que merecia um presentão de Natal adiantado! Diga-me, você foi um bom garoto esse ano, Jonas?”
Eu ainda estava agachado, encarando aquelas botas e aquele saco reluzente, cheio de presentes. Acenei com a cabeça. Sim, eu fui um bom garoto, pensei, embora soubesse que ele não podia me ver.
“Venha, Jonas, venha pegar seu presente. O Papai Noel sempre dá presentes para os bons garotos.”
Estiquei timidamente a mão, aproximando-me hesitante. Se eu tivesse oito anos, provavelmente estaria morto agora e esse relato jamais existiria. Contudo, eu entrava na fase entre a infância e a pré-adolescência. Entre a fantasia e a realidade. Ao mesmo tempo em que queria acreditar que o Homem Vermelhinho estava ali perto de mim, minha intuição me dizia que algo estava errado. Não seria comum o Papai Noel entregar seus presentes em banheiros encardidos e fedorentos. E aquela Coisa sabia.
“Não tenha medo, minha criança” disse gentilmente “O Papai Noel tem um belo presente pra você. É só pegar!”
O saco abriu-se mais um pouco, como se por mãos invisíveis. Ao lado do carrinho, vi uma bola de futebol reluzindo lá dentro. De alguma forma, aquilo sabia que eu queria aquela bola. Ansiava para ganhar uma durante muito tempo, tal como qualquer criança deseja ganhar os brinquedos que vê na TV. Meus olhos brilharam de felicidade, e por um momento pensei ter escutado o som reproduzido pela bola quando se choca contra o chão. O saco do Papai Noel parecia não ter fim; estava repleto de presentes, e todos tinham uma luminosidade atraente. Bolas, carrinhos, bonecas, até um patinete cabia ali dentro! Aproximei-me mais um pouco, dessa vez esquecendo completamente minhas preocupações.
 “Pegue pegue pegue.” cantarolou a voz acima de mim. “Um bom presente para um bom garoto! O Papai Noel tem sim!”
Aquela voz era reconfortante, de um bom velhinho, pensei. Acima de mim. Olhei para o alto. Caro leitor, descrever o que vi seria extremamente difícil. E, sendo honesto, não recordo tão bem quanto na época que ocorreu. Parece que a cada ano fica mais difícil manter essas lembranças. Há alguma coisa no homem adulto. Como se, ao perdermos a inocência da criança que um dia fomos, também abandonamos a imaginação e a crença de que há algo além de nós nesse universo. Coisas que desconhecemos ou fingimos não conhecer. Coisas que só as crianças sabem.
Lembro-me de olhos. Olhos malignos, selvagens e vermelhos. De alguma forma que jamais poderia imaginar, os pés d’Aquilo estavam no chão, juntamente com a sacola de presentes, mas sua cabeça estava acima da parede de metal que nos separava. Encarava-me. O rosto era disforme, e só havia os dois olhos demoníacos e uma boca enorme, com presas afiadas e sedentas de carne de criança. Produzia um som inumano, como se mil crianças chorassem ao mesmo tempo. A pele estava em carne viva, com bolhas de sangue estourando por todos os lados. Tinha no topo da cabeça um tipo de chapéu, e que na verdade não passava de pele morta e queimada, que se descolou do crânio e estava pendurado.
Não sei dizer como saí do local, mas estava correndo para a porta de saída quando parei, com o coração acelerado e as pernas tremendo. Virei-me. A porta do reservado ainda estava fechada, e quase parecia que não havia nada lá. Como se eu tivesse imaginado tudo. As lâmpadas do banheiro piscaram, como se elas também estivessem assustadas. Me encontrava bem na porta de saída, e me preparei para correr caso o monstro saísse do lugar.
“Jonas.” cantarolou a voz lá dentro. Dessa vez uma voz diferente. Eu a reconheci. Ainda a ouço até hoje. “Jonas....”
Agachei-me. A coisa ainda estava lá. No lugar de botas pretas e calças vermelhas, vi pernas esticadas e esqueléticas, com queimaduras em carne viva, vermelhas e com bolhas. O saco não era de tecido cinza; de algum modo, eu soube que aquilo era pele. Pele humana envelhecida. Se mexia. Mãos monstruosas em carne viva viraram o saco em minha direção, abrindo-o. Olhei para algo que jamais esquecerei. Dentro, a cabeça de um dos gêmeos do andar de cima encarou-me. Seus braços estavam deformados, quebrados em várias partes, e suas pernas estavam acima da pequena cabeça. Como se ele tivesse sido quebrado ao meio e colocado lá dentro. Sorria, encarando-me.
“Por que não vem brincar comigo, Jonas?” perguntou-me, com uma expressão louca nos olhos “O papai Noel gosta de brincar com meninos bonzinhos como nós! Meninos fora de casa como nós!”
Não sei bem o que ocorreu depois daquilo. Acho que corri para meu apartamento e acordei minha mãe. Talvez tenha acontecido isso, pois me lembro de a polícia fazer várias perguntas após aquilo. Fui o último a ver Ed, o meu vizinho de nove anos do andar de cima, antes de seu desaparecimento. É claro que não acreditaram em minha história sobre o papai Noel, mas não duvidaram que alguém, de fato, o sequestrara. Tinha o garoto saído desobedientemente do apartamento para brincar no jardim, mesmo após as proibições dos pais. O irmão gêmeo, que dormia no mesmo quarto que o irmão, não escutara nada.
Eu deveria ter visto o homem com Ed. Estava traumatizado. Imaginei coisas. Minha conclusão quando penso no ocorrido é que a coisa estava atrás de uma criança aquela noite. Viu Ed, de apenas nove anos, brincando no jardim. Sozinho e indefeso. Seduziu-o com brinquedos como tentou fazer comigo. Como o garoto morreu, não me atrevo a pensar, mas quando imagino o estado em que vi seu corpo desfigurado dentro daquela sacola, mil ideias surgem em minha mente. A coisa deve ter me visto logo após matar Ed – creio que gosta de pegar crianças que estejam sozinhas, sem supervisão de adultos. E que melhor período que o Natal para isso? Tal como eu, qualquer criança imagina que um homem com roupas vermelhas e uma sacola com brinquedos é o Papai Noel. 
Em minhas pesquisas sobre a existência daquela coisa, não encontrei nada que falasse sobre sua origem, sequer qualquer citação a respeito do Papai Noel que fosse, no mínimo, estranha. Era como se eu tivesse imaginado tudo, e quase me convenci disso; deveria tudo ter sido um sonho de uma mente infantil criativa. Mas apesar de minhas tentativas para esquecer o caso, tornou-se recorrente, enquanto lia o jornal todas as manhãs, ver fotos de crianças entre 5 a 11 anos desaparecidas, sem qualquer rastro de seu paradeiro – como se tivessem evaporado. O mais curioso destes desaparecimentos é o que os pais falavam nas entrevistas concedidas: estavam os filhos na rua desobedientemente.
 Anos depois, estou aqui escrevendo essas palavras. Faltam dois dias para o Natal, como daquela vez. Mudei-me para outro local depois do que sucedeu. Minha mãe teve medo de que o sequestrador voltasse. Eu tive medo de que aquilo voltasse. E, talvez, eu tenha razão. Talvez aquela Coisa tenha voltado, pois, na noite anterior, voltando do trabalho andando pela rua, pensei ter escutado aquele assobio. Pensei ter escutado uma risada rouca logo após, de um velhinho.
Olhei ao redor, mas nada havia além de mim e uma rua deserta. Pela manhã, assistindo ao noticiário, o jornalista relatou o desaparecimento de uma criança que estava na rua sozinha. Seria possível ser a mesma criatura? Nesse momento, estou sentado na biblioteca pública da minha Cidade, com um livro chamado Lendas Populares. Finalizo meu relato com essa lenda que li, pois, de algum modo, acredito que há algo nele que se relacione com o que vivi, e com o que muitas crianças ainda viverão.

A LENDA DO HOMEM DO SACO
Segundo a lenda, o homem do saco leva crianças que estão sem nenhum adulto por perto, em frente às suas casas ou brincando na rua. Ele pega a criança caso ela saía sem ninguém de dentro de casa. É descrito como um homem bastante velho e de jeito esquisito, é comum vê-lo sempre carregando um grande saco pendurado nas costas. Também é descrito como uma criatura maligna, que atrai crianças e adolescentes. A origem da lenda é desconhecida. 




Conto escrito por
L.S. Alves

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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Sinopse: Quando a escuridão é real e todos são pegos de surpresa, não há nada que possa ser feito.

Em uma cidade, não relativamente pequena, no interior da Paraíba, duas garotas descobrem o quanto a escuridão pode ser aterrorizante, quando a luz e o som são consumidos pelo breu.

Sem informação do que poderia ser, elas tentam sobreviver em meio a uma catástrofe vinda do fundo do universo.

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