
3x03 - Testamento de um Coração
de Nanda Érica
"Nunca imaginei que minha vida terminaria com uma escolha tão definitiva." Eu decidi. Decidi que hoje seria o último dia em que meu coração bateria por mim. Essa é a história de como eu morri, mas mais do que isso, é a história de como escolhi viver para sempre dentro de Laura.
Desde que me lembro, somos amigos, e nos momentos mais difíceis, ela estava comigo. Cheguei em Natal-RN, aos 6 anos de idade, minha mãe tinha acabado de morrer e eu vim morar com meu pai e madrasta.
No meu primeiro dia de aula, as outras crianças implicavam com meu tamanho, me chamando de "nanico". Eu me sentia isolado, até que uma menina magricela, com cabelos loiros bagunçados e olhos verdes brilhantes, se destacou no meio da turma. Ela estava segurando um punhado de balinhas, como se aquilo fosse a solução para todos os meus problemas.
“Pode pegar!” — ela disse com um sorriso travesso. Eu, sem pensar duas vezes, aceitei e comecei a chupar uma das balas, senti que alguém queria ser meu amigo.
“Agora você me deve 1000 favores!” — ela disse, rindo. — “E seremos amigos, até você me pagar!”
"O quê?" Ela era doida, foi o que pensei, se tivesse ideia acharia que ela tipo psicopata, mas era novo demais para chegar a essa conclusão.
No final do primeiro dia de aula, ela jogou a mochila para mim.
“Toma, minha mochila,” ela disse com a cara descarada “Você me deve mil favores, não se esqueça.”
E assim começou: todo dia eu carregava a mochila dela. Foi assim que viramos amigos. Ela dizia que cuidava de mim, mas, na verdade, eu era o saco de lixo dela. Roubava meu lanche sem cerimônia, e tudo o que não queria comer acabava no meu prato, sempre com a desculpa de que eu precisava crescer.
Penteava meu cabelo do jeito que ela queria e, uma vez, até raspou minha cabeça. “Agora sim, parece um bebê”, ela disse. Eu morria de raiva, mas nunca conseguia ficar longe dela. Quando a via, ela já estava colocando lacinhos no meu cabelo, passando maquiagem na minha cara, e até teve uma vez em que me forçou a usar um vestido dela, só para ver como ela ficaria.
Mas havia os lados positivos de ser amigo dela: nos treinos de natação e nas competições de futebol, meu pai raramente aparecia, mas lá estava Laura, na arquibancada, gritando o meu nome e me ameaçando: “Se você perder, eu vou esmagar sua cabeça com uma pedra!”
A partir dos 12 anos, eu ia para a casa dela todos os dias. A mãe dela, Helena, era maravilhosa. Fazia biscoitos e me ajudava com as tarefas da escola. Dormi lá tantas vezes que perdi a conta.
Quando fizemos 15 anos, contei para Laura sobre meu primeiro beijo e como foi constrangedor. E teve aquele garoto que a fez chorar no 1º ano… tive que dar uma prensa nele por isso. Nós éramos mais que amigos, éramos confidentes. Nunca a vi como uma garota, porque a conhecia bem demais para isso. Ela era a pior pessoa do mundo, mas também a melhor. Era por isso que eu ficava louco de raiva dos babacas que a faziam chorar.
Ela era sonhadora, queria ser produtora de cinema e me obrigava a assistir filmes horríveis em preto e branco. Passava horas estudando sobre cinema, devorando documentários e podcasts. Laura tinha um sonho: Ser roteirista de cinema, ela já escreveu inúmeras peças de teatro e até dirigiu algumas no colegial. Ela disse que quando gravasse seu primeiro filme, o protagonista teria o meu nome. E eu lhe deveria mais mil favores. E foi com ela que aprendi uma lição importante: quando uma mulher te faz uma pergunta, não responda o que você acha que é certo, mas sim o que ela quer ouvir.
Minhas duas ex-namoradas, Samantha e Raquel, me perguntavam sempre a mesma coisa:
“De quem você gosta mais? De mim ou da Laura?”
Eu tentava explicar: “Ela é minha amiga de infância, não é bem assim… Amo você, mas eu não posso deixar de falar com ela…” E foi assim que todos os meus relacionamentos acabaram. Eu não entendia por que tinham tanto ciúme. Ou talvez entendesse.
Quando saí pela primeira vez com Samantha para o cinema, Laura ligou, dizendo que estava sozinha em casa, e lá fui eu.
Quando ia comemorar um ano de namoro com Raquel, tive que cancelar. Laura estava internada por causa de uma arritmia, e claro, eu não podia deixá-la.
Quando fui lanchar com Samantha, ver o desfile estudantil, ou conhecer os pais dela, adivinha quem estava junto? Laura. Ela tinha olhos verdes, cabelos loiros. Minhas namoradas sempre insistiam: “Você gosta dela, confessa” ou “Ela é tão linda, parece uma boneca, tipo a Barbie.” E eu sempre respondia as mesmas coisas:
“Boneca? Tá mais para uma boneca... satânica” ou “Somos apenas melhores amigos.”
Mas nunca funcionava. E sempre que eu dizia que precisava de privacidade. Laura falava: “Você ainda me deve uns 400 favores.”
Que raiva eu sentia, e eu sabia que não era minha responsabilidade cuidar dela, mas eu devia a Laura parte da minha infância. Crescemos juntos, compartilhando sonhos.E por causa dela, eu estava destinado a virar um solteirão.
Ela também teve seus rolos, mas sempre acabavam rápido. Ou era traída, ou a paciência dela era curta demais, ou simplesmente não tinha tempo para eles, já que passava horas estudando. Laura sempre colocava os estudos em primeiro lugar, e os homens não conseguiam acompanhar.
Eu particularmente não entendia; eu aguentava, e por que eles não poderiam aguentar? Sempre me perguntei isso.
Laura era sonhadora, decidida, inteligente... e, na mesma medida, irritantemente chata. E, sinceramente, ainda bem que nunca fui o motivo dos términos dela, embora talvez tenha atrapalhado alguns enroscos. Eu sabia que eles não prestavam, e qual é o dever de um melhor amigo? Né!
Quando ela fez 18 anos, conseguiu uma bolsa integral na USP para estudar Direção de Cinema (ou algo assim). Arrumou outro namorado, mas ele terminou com ela porque queria avançar a relação, e Laura ainda era virgem.
Laura sempre tinha um esquema peculiar: a campainha do quarto dela ligada ao meu. Quando precisava de ajuda, ela simplesmente apertava a campainha e lá ia eu, invadindo sua privacidade. Muitas vezes, isso também significava que ela estava interrompendo a minha, especialmente quando eu estava com alguma garota. E adivinha quem se mudou para morar com ela? Não foi uma amiga, prima ou irmã caçula... Fui eu, o amigo, o que se tornou um grande desconforto para os namorados dela e minhas peguete.
Eu estava estudando arte e queria escrever quadrinhos. Mas acabei me mudando para lá principalmente porque era mais uma questão de apoiar minha amiga do que de buscar novos desafios.
Lembro que, no final do 4º período da faculdade, houve uma apresentação em que o protagonista se chamava Samuel. Naquele dia, meu coração bateu tão forte que quase senti a pulsação na caixa torácica. A forma como Laura me descreveu foi tão engraçada que, se eu não fosse homem e não tivesse rodeada de pessoas, eu poderia ter chorado.
Quase chorei de verdade, mas foi de desespero quando, durante a premiação, ela caiu no chão. Primeiro pensei que fosse parte do show, “Parte das esquisitices dela, sei lá, algo assim, e poderia ter sido.” Só que alguém gritou: “Ela não está respirando!” Eu congelei e suei frio. Corri pelas pilastras do teatro até o palco, onde ela estava desacorda. Ligaram para a ambulância, e eu quase fui junto porque meu coração literalmente parou. O medo de perder Laura foi tão intenso que quase me enlouqueceu, uma sensação igual—não, muito pior—do que quando minha mãe morreu.
Sabia que Laura tinha arritmia cardíaca, mas no hospital descobrimos que era arritmia degenerativa. Ela precisava de tratamento, mas, por ser degenerativa, não tinha cura. Eu juro que me senti tão mal que quase infartei ali mesmo. Meu corpo tremeu e perdeu a força; cai sentado, parecendo uma ameba, mas tentei me manter firme depois que minha alma voltou para o corpo.
Quando a mãe dela chegou, junto com a irmã, eu expliquei o que o médico havia dito. Demorei ter coragem de entrar no quarto:
“Eu tô aqui, mas parece que você é quem está morrendo.”
“Você não vai morrer!” eu afirmei.
“E tem razão!”
“Sério, Laura!”
“Estou esperando um coração, mas sou feliz. De acordo com dados do Ministério da Saúde, pouco mais de sessenta e nove mil pessoas aguardam na fila do transplante e, talvez, uns 330 por ano consigam. Há esperanças ainda,” ela disse, sorridente. Mas eu a conhecia o suficiente para saber que, apesar do sorriso era falso
Ela decidiu não voltar para casa da mãe e continuar estudando. Sem querer ou perceber, comecei a agir de maneira mais cuidadosa com ela. A mãe dela se mudou para nossa cidade.
Com o tempo, as coisas voltaram quase ao normal, exceto pelos vários remédios que Laura tomava—12 comprimidos por dia e exames regulares. Nossa ligação ficou ainda mais forte. Às vezes, eu dormia no quarto dela e, depois disso, não arrumei outra namorada porque não podia deixá-la sozinha.
No aniversário de 22 anos dela, ela me disse que queria beber comigo. Faltavam alguns meses para a formatura dela e, infelizmente, ela não havia sido contemplada com um coração. Laura me obrigou a ler o roteiro dela, eu sugeri algumas mudanças.
“Hoje vamos beber uma garrafa de champanhe,” ela me disse.
“Não! Você não pode beber.”
“Só um pouco, e você bebe o resto da garrafa.”
E assim fizemos. Assistimos a mais um filme preto e branco e montamos um quebra-cabeça. Para que ela não bebesse muito, eu devorei a garrafa. Mas o que quero falar não é sobre isso, e sim sobre o que aconteceu.
Eu disse que não tinha sentimentos por ela e que não a via como mulher. Mas ela me disse:
“Tem duas coisas que eu queria fazer antes de morrer.”
Essa conversa já começava a me irritar.
“Para com isso,” eu disse, com a cabeça girando. “Fala logo.”
Ela se aproximou de mim.
“Me dê um minuto do seu tempo, por favor. Não se mexa.” Ela passou a mão pelos meus cabelos, estava tão perto que eu pude sentir sua respiração. "Psiu,” ela sussurrou. “Fecha os olhos.”
Eu fechei os olhos e, para minha surpresa, senti algo macio, eram os lábios dela que tocaram os meus. O beijo era ao mesmo tempo delicado e ardente, como se transmitisse todos os sentimentos que não conseguíamos expressar em palavras. Suas mãos em meus cabelos me puxaram para mais perto, intensificando. O mundo ao redor parecia desaparecer.
Aquele beijo não foi apenas um gesto de carinho; foi uma declaração de sentimentos reprimido de que, mesmo na amizade, havia espaço para algo mais.
Pensei em me afastar, e até tentei, porque pensei que poderia fazer mal ao coração dela. Mas ela me puxou de volta. Então me deixei levar e minhas mãos, instintivamente, exploraram o corpo dela, aprofundando o contato.
Durante aqueles momentos, cheguei à conclusão de que me importava tanto com ela que não podia simplesmente me entregar ao prazer naquele momento. Precisava me preocupar com a saúde dela, mas, apesar das minhas dúvidas, ela me puxou de volta e disse:
“Por favor…”
“Não posso, não agora.”
“Eu quero fazer isso antes de morrer. Você é meu melhor amigo e me deve isso. Não quero morrer virgem.”
Aquelas palavras partiram meu coração. Mesmo assim, continuei e tivemos nossa noite juntos, a primeira vez dela, com todo o amor e carinho que ela merecia.
Mais tarde, ela me disse:
“Agora posso morrer em paz.”
“Para... Por favor... Para,” eu implorei, a voz saiu como um miado.
Na manhã seguinte quando acordamos, já acordei com o meu mundo desmoronando. Mal havia acordado e ela me pegou de surpresa dizendo.
“Não fica bravo, por favor, mas eu recebi um e-mail ontem e o DR disse que eu não vou aguentar até a formatura.” Ela me disse enquanto ainda estávamos deitados.
Engoli em seco como se tivesse engolido cacos de vidro; a saliva desceu rasgando pela minha garganta. Não sei exatamente a cara que fiz, mas aquelas palavras me devastaram. Meu coração ardeu e um nó na garganta me fez sentir uma dor imensa.
Me levantei e fui para meu quarto, chorei em silêncio, chorando mais do que jamais havia chorado em toda a minha vida. Eu faria qualquer coisa para ela viver, qualquer coisa. O que eu sentia era algo que transcendia tudo o que eu conhecia. Não saberia viver em um mundo onde ela não existisse.
Quando me acalmei, voltei para o quarto. Havia se passado apenas uns 30 minutos. Queria saber se ela estava com fome, mas ao vê-la deitada, pensei que estava apenas dormindo. No entanto, ao me aproximar, percebi que ela estava inconsciente. Liguei para a ambulância e para os pais dela. Em meio ao caos, pensei na decisão que tomaria, talvez não racionalmente, mas com o coração.
No hospital, ela acordou. O médico informou que ela precisaria ficar internada até que aparecesse um coração compatível.
“Você tá bem?” perguntei, tentando manter a calma.
“Sim,” ela respondeu com a voz fraca. “Me promete uma coisa.”
“Hum?” eu respondi, segurando as lágrimas.
“Fica comigo para sempre. Promete que, quando eu fechar os olhos, você será a última pessoa que eu vou ver.”
“Tá, tá. Eu prometo. Vai aparecer um coração e, quando você acordar, eu vou estar com você. E naquele momento, eu tomei minha decisão.
A enfermeira chegou para administrar um remédio e eu saí rapidamente para ligar para meu pai.
Mais tarde, o médico voltou com a notícia de que um coração compatível havia sido encontrado. Ela ficou radiante, e essa felicidade me fez sorrir também. A sensação de alívio foi como uma nova esperança para minha alma.
“E o que você quer fazer quando ficar boa?” perguntei.
“Quero me formar e enviar meu texto para a Globo. Me fizeram um convite, mas eu não aceitei porque ia morrer, né.”
“Não fala assim, agora você vai viver. Mande para Netflix, Prime, Disney, até para Vivo também.”
"Vivo? Como você é bobo, é uma rede de telefone." Ela sorriu. Aquilo acabou comigo; nunca mais veria aquele sorriso. E ela continuou.
“Vai ser estranho depois de ontem.”
“Vai ficar tudo bem! Você é minha melhor amiga e para sempre quero que se lembre de mim. Meu coração é seu.” Nos demos as mãos enquanto as enfermeiras chegavam para levá-la à cirurgia.
Ela me olhou pela última vez. Foi a última vez que a vi e eu sabia que, embora estivesse me despedindo, sempre estaríamos juntos em cada batida do meu coração.
Deixei uma carta para Laura, esperando que ela a encontrasse quando acordasse.
Laura,
Meu coração agora é teu. Ele bate por ti e sempre bateu. Não é um adeus, é a nossa eterna união. Viverei em ti, em cada pulsação. Dei meu último suspiro para que tua vida pudesse florescer, e mesmo que meus olhos nunca mais possam te ver. Não pense que quebrei a promessa. Disse que estaria sempre com você. Parto feliz e em paz, sabendo que você viverá o amanhã. Torço para encontre a felicidade. Espero ter pago os mil favores e te peço que me faça um único favor: Seja feliz por mim e por você. Com todo o meu amor e por toda a eternidade, eu te dou meu coração com imensa sinceridade. Saiba que eu amo você!
Tema
I'll Always Be By Your Side
Intérprete
Lamaris
CAL - Comissão de Autores Literários
Paulo Mendes Guerreiro Filho
Telma Marya
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO

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