Capítulo IV – A VINGANÇA
O capitão estacou, incrédulo. A visão embotada pela chuva. Repetiu por três vezes o sinal da cruz. Suas pernas, acostumadas a duras caminhadas, agora tremiam. Zwanga pendia de uma travessa no portal da capela, enforcado e varado por várias flechas Puris, que emanavam um estranho brilho azulado.
— Ó raios, mas como? Um negro forte deste... como é possível?
Ao retirar o chapéu de aba larga, do qual nunca se afastava, vislumbrou o telhado desabado do santuário. Entrou no recinto e reconheceu muitos dos feridos sob os escombros, alguns ainda moribundos, suplicantes. Seus filhos estavam entre eles, todos próximos, enlameados e cobertos de sangue. O mais velho ainda se contorcia em agonia, a perna direita esmagada por uma viga. Movido por piedade, sacou sua pistola e terminou com o sofrimento de seu próprio rebento, e também com a agonia de outros infelizes, todos espalhados pelo piso de chão batido. Matara antes centenas de selvagens, munido de prazer sádico, em suas incursões pela mata. Mas... sua gente? Suas lágrimas misturavam-se às águas amaldiçoadas. Sua pobre Anahí teria razão? Teria passado dos limites ao destruir o maior símbolo de fé dos selvagens?
— Estes bugres não reconhecem o Cristo crucificado! São... são... uns porcos! Ainda hei de matar todos!
Ao se aproximar do altar-mor, deparou-se com o que restara do padre Nóbrega. O pobre Jesuíta fora horrivelmente crucificado. Sua expressão de horror facial era dividida ao meio por uma reluzente flecha Puri, com o mesmo brilho azulado. Seus olhos... vazados! As orações do missionário lhe foram inúteis. Pela primeira vez em sua mísera vida, o sanguinário bandeirante sentiu-se amedrontado e impotente.
— Maldito seja Tomás! Porque me revelaste o segredo Puri? Que o Diabo o carregue, mestiço miserável! — Mal sabia ele... sua profecia já havia se concretizado.
Virou-se, então, perdido em
sua desgraça, caminhando para fora da construção em ruínas. Logo em frente...
mais uma visão macabra: a cabeça de Tomás Bueno, empalada por uma lança fincada
no adro, cuja ponta transfixava o crânio do infeliz.
O calejado português, líder de tantas bandeiras e temido por todos, duvidou de sua própria sanidade. Seus sentidos quase lhe faltaram, e seus joelhos vacilaram. Sua inabalável crença em seu Deus supremo fraquejou. Tomou de sua pistola e a direcionou para a própria têmpora, mas a bala esférica atingiu o vazio, ao ter sua mão direita trespassada por uma flecha de ponta dura como pedra bruta. Caiu ao solo tomado por uma dor lancinante, temporariamente surdo pela explosão do tiro, o sangue diluindo-se em meio à chuva insistente. Foi, então, que discerniu em frente ao adro, tremeluzente e carregado de sombras, intermitentemente iluminado pelos relâmpagos, os contornos voluptuosos de um corpo feminino perfeito, distante algumas dezenas de metros à frente. Uma fugidia aura em tom azul amarelado emanava da aparição. Seus olhos marejados acompanharam a aproximação fantasmagórica. Percebeu os cabelos negros, grossos e lisos, descendo até o meio do torso. Os seios fartos movimentando-se em sua opulência, à medida que dele se aproximavam. O andar da entidade era felino, macio, ameaçador, parecendo levitar... Rodrigues Veiga, apavorado, notou por entre a penumbra que ora se iluminava, o rosto pintado em tom de guerra; os olhos de um vermelho urucum, com círculos negros do jenipapo descendo por sobre a face crispada. Não se dissolviam com a chuva. Os quadris largos, as coxas grossas e a genitália desnuda. Na mão esquerda um grande arco de cerca de dois metros de envergadura. Um cesto de flechas denteadas, preso ao dorso, completava a doce visão do inferno que se anunciava aos olhos injetados do capitão. A antevisão da morte nunca assumira contornos tão sedutores.
— Bugra maldita! Que espírito que nada! De outras como você já muito me satisfiz! — O capitão lutava contra seu próprio pavor — Espera que te curo sua...
Um silvo agudo e uma segunda flecha vazou o ombro esquerdo do sertanista, novamente a cair urrando de dor. Uma gargalhada histérica ecoou pelo arraial, abafando seus gritos. Logo, uma terceira gemeu no ar úmido e transfixou seu joelho direito. Um quarto zunido... seu pé esquerdo foi fixado ao piso de pedra e barro. A lama do Tejuco se tornara rubra. Flechado por 4 setas e praticamente imobilizado, restou ao pobre implorar por misericórdia.
— Vamos! Aaaarrrghhh! Termina
logo com isto, ó rapariga do demônio! Tu não passa de uma bugra suja...
aaaarrrghhhh!
— “Saiba... aqui pro cê... sou... Cajubi... Cajubi... Cajubi... disgraçado... sua ruína será tamém... a de seu povo invasô... Orun Tutak ordenô... Orun Inã mandô fazê... mas antes cê vai sentí... a ira do Jurupari."
Aterrorizado, Rodrigues Veiga sentiu gelar sua espinhela, ao ouvir aqueles derradeiros sussurros. Tentou gritar, mas sua voz foi sufocada por uma força sobrenatural a lhe comprimir a garganta, numa sensação de crescente asfixia. Sua já conhecida crueldade ainda lhe reservaria, porém, um tormento supremo. Foi com agonia indescritível que sentiu seu peito explodir, arrombado por uma energia invisível. A diabólica pressão mantinha seu fluxo sanguíneo cerebral e o impedia de desfalecer. Ainda teve tempo de ver, na mão direita de Cajubi, uma massa pulsátil, deixando escorrer por entre os dedos da índia um lodo sanguinolento, carregado de pecado.
— "Cê comeu nossas terra... cê comeu muito... cê matô nossa gente... mardito... cê tá condenado... agora eu como seu corpo... seu espírito... Tupã vai ti levá daqui."
O assombrado português ainda
testemunhou seu próprio sangue se misturando ao vermelho urucum da face raivosa
de Cajubi, enquanto seu coração era devorado pela índia. Lentamente o belo
rosto feminino se transmutou em face pisciana e demoníaca, repleta de presas e
grandes olhos avermelhados.
A quinta e última seta
cravou-se entre os olhos; sua ponta de brilho azulado atravessou seu crânio,
silenciando em definitivo o outrora implacável capitão. Seu corpo inerte, agora
justiçado, ostentava cinco pontos de intensa cintilância; uma estranha cruz
pagã, refletida no espelho d'água formado defronte ao profano santuário dos
brancos. A face e extremidades
desfiguradas contrastavam com o tronco intacto.
Tal como de súbito chegara, a
grande tempestade findou-se repentinamente pela manhã, deixando secar ao sol e
aos urubus-de-cabeça-preta a carcaça do maior assassino já aportado àquelas
terras.
Max Rocha
Elenco Mauro Mendonça como Rodrigues Veiga Adanilo Reis como Tomás Bueno Stênio Garcia como Piracaçú Dira Paes como Cajubi Roberto Bonfim como Corupela Giselle Motta como Anahí Carlos Vereza como Padre Nóbrega David Junior como Zwanga Tema Acaiaca Índios Puri Intérprete Wagner Cinelli
Direção
Carlos Mota
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2024 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: