2x07 - Ida e Volta
de Luís R. Krenke
Da varanda, Luma viu o carro de Pedro passar pelo portão,
encaminhando-se para a vaga do seu apartamento, que ficava vazia durante a
semana. Os dois tinham um certo relacionamento à distância, já que Pedro
trabalhava em Jaraguá do Sul de segunda a sexta-feira enquanto Luma permanecia
na cidade de Joinville. Em sextas à noite como aquela, Pedro vinha passar o fim
de semana com ela, voltando para Jaraguá no domingo ou, às vezes, nas primeiras
horas da manhã de segunda-feira. Não era uma viagem demorada; o percurso
geralmente levava cerca de cinquenta minutos — se tivesse pouco trânsito.
Os dois haviam se conhecido ali em Joinville, e embora tivessem morado
juntos por um tempo, uma ótima oferta de emprego para Pedro fez os dois tomarem
a decisão daquele arranjo de ida e volta. Tudo o que mais queriam era voltar a
viver sob o mesmo teto, mas primeiro teriam que acertar quem iria morar com
quem. Assim que Luma arrumasse um emprego em Jaraguá, ou que Pedro conseguisse
transferir seu trabalho para Joinville, os dois ficariam juntos em tempo
integral outra vez.
Quando Luma notou que Pedro estava demorando demais para chegar até o
apartamento, resolveu ir verificar. Assim que abriu a porta, viu Pedro parado
ali, de cabeça baixa.
— Amor? — Luma chamou pelo namorado.
Como que despertado de um transe, Pedro levantou a cabeça. Os olhos do
namorado, que Luma sempre achou perfeitos, estavam diferentes; vidrados.
— Ah... Oi. Me
desculpa, Luma, acho que a viagem acabou me esgotando.
— Aconteceu alguma
coisa no caminho? — Luma perguntou, já tendo visto aquele olhar antes quando
Pedro lhe contou que havia ultrapassado um carro na estrada e por pouco não
colidiu com um caminhão que vinha na direção oposta.
— Depois eu falo, me
deixa tomar um banho primeiro.
Pedro tirou a mochila
das costas, deu um beijo rápido na bochecha esquerda de Luma e foi até o
chuveiro, sem olhar para a namorada. Quando Luma escutou a água ligar, entrou
no banheiro também, pedindo por uma explicação por aquele seu comportamento
estranho.
— Não me deixa
angustiada, não gosto de ver você mal. Talvez se me contar, você relaxe um
pouco mais.
Em meio ao vapor da
água quente, Luma sentou-se no vaso sanitário enquanto escutava a história de
Pedro.
— Você sabe que eu
sempre venho dirigindo pela BR. Eu não gosto de pegar o outro caminho, como a
Rodovia do Arroz, por causa das curvas, dos buracos e da quantidade de
acidentes que tem por lá. Ainda mais vindo de noite. Mas hoje eu vim por lá.
Não sei porquê! Talvez eu quisesse uma mudança de ares, uma mudança de paisagem...–
Ele parou por um momento. – Tomara que tudo tenha ficado bem...
— Ficado bem? Como
assim? Do que tá falando?
— No meio do caminho,
na curva depois de uma escola, eu vi as peças na estrada. Vi um pneu no
acostamento e vi o carro capotado logo em seguida. Tinha alguém lá... Uma
garota. Ela abanou os braços quando eu passei, e escutei ela falar alguma
coisa. Acho que estava pedindo ajuda.
E eu não parei. Eu não queria parar meu carro na
rodovia porque fiquei com medo de acumular gente e só dificultar a passagem na
pista. Você sabe que algo parecido já aconteceu antes, quando alguém parou para
ajudar em um acidente e acabou sendo atropelado por um terceiro carro que vinha
em alta velocidade na curva. Saiu em todos os jornais daqui.
Decidi ligar para a emergência, mas eu estava
escutando um podcast enquanto dirigia e a bateria acabou. Pensei em carregar o
celular no carro, mas então lembrei que havia deixado o cabo USB em cima da
mesa lá na agência. Será que eu deveria ter parado? Passam muitos carros por
lá, com certeza alguém deve ter parado para ajudar... Mas e se todos pensaram
como eu, Lu? E se ninguém parou? E se eles precisassem de ajuda imediata, e
como eu não socorri, acabei causando a morte de quem estava no carro?
Mesmo com o barulho da
água, Luma podia ouvir o choro baixinho de Pedro.
— Você não pode ficar
se culpando agora, Pedro. O que você poderia fazer se o acidente tivesse sido
fatal? E, se mais ninguém parou, pode ter certeza de que nem todos estavam com
o celular descarregado como você. Alguém com certeza ligou para pedir ajuda.
Não falaram mais sobre
isso pelo resto da noite, apesar de Luma sentir de que já tinha ouvido de sua
avó uma história parecida com a de Pedro, sobre uma mulher de branco na
estrada. Pediram uma pizza, assistiram a um filme e quando foram deitar, Pedro
já tinha voltado a ser ele mesmo, com seus olhos azuis voltando a ganhar o
brilho apaixonante que sempre tivera.
Na manhã seguinte, Luma
acordou e viu Pedro mexendo no celular.
— Bom dia, amor. —
disse Luma, olhando para a própria tela do celular e vendo que ainda eram 8
horas da manhã. Pedro geralmente dormia até mais tarde. — Que surpresa te ver
acordado. Caiu da cama, foi?
Pedro não respondeu, e
Luma notou que ele havia voltado à condição apática de quando chegou no dia
anterior. Tirando o celular de suas mãos, ela leu o título da notícia que fez o
namorado perder-se nos pensamentos outra vez.
“Grave acidente na
Rodovia do Arroz — Por volta das 19 horas da sexta-feira dia 2, um acidente na
SC 108/Rodovia do Arroz causou a morte de duas pessoas. O veículo Honda Fit, da
cor branca, perdeu-se ao fazer uma curva e capotou, resultando, segundo os
médicos legistas, na morte imediata dos dois ocupantes masculinos do veículo.
Quando perguntados sobre mais fatos a respeito do acidente, o Corpo de
Bombeiros negou-se a comentar.”
— Com certeza uma
grande tragédia, Pedro, mas... Você leu, não é? Eles morreram assim que
capotaram. Não tinha nada que você poderia ter feito.
— E a garota que eu vi?
— perguntou Pedro rispidamente, sem esperar resposta. — Eu escutei ela pedindo
ajuda, vi ela lá no acidente.
— Tem algumas casas por lá, talvez ela estivesse passando e...
— Não, Luma, eu acordei pensando nisso. Eu me lembrei da roupa que ela
usava, ela tinha um vestido branco e vermelho. Bem... na hora eu achei ter
visto vermelho... mas era só branco mesmo. Acordei com uma imagem nítida dela,
assombrando minha mente. O resto da cabeça dela estava manchada de vermelho.
Ela estava sangrando. Tenho certeza.
Pelo resto do fim de semana, Luma esforçou-se em tirar aquele pesadelo
de Pedro, tentando-o com passeios, comidas e carícias. Nada parecia surtir
efeito no namorado, que havia se retraído, absorto em seu celular. Quando
chegou a hora dele voltar para Jaraguá, despediu-se de Luma com um rápido
selinho e pediu desculpas por tudo
aquilo, prometendo compensá-la na próxima vez que se vissem. Luma desejou uma
boa viagem, pedindo para avisar quando chegasse – e assim ele se foi.
Duas horas tinham se passado e Pedro não tinha entrado em contato. O
WhatsApp de Pedro estava cheio de mensagens de Luma que perguntavam “Kd vc?”
e pediam “Porra Pedro fala comigo”, ou uma combinação das duas. Quando
três horas tinham se passado desde que Pedro saiu de Joinville, Luma recebeu
uma resposta no celular:
“Eu vi ela”.
À beira das lágrimas, em um misto de raiva e alívio, Luma ligou para
Pedro, que atendeu no primeiro toque. Depois de xingar muito, obrigá-lo a pedir
desculpas e xingar mais um pouco, Luma deixou que Pedro contasse o que
aconteceu.
— Acabei não voltando pela BR, retornei pela Rodovia do Arroz porque eu
precisava de um fechamento nessa história. Queria algum sinal da garota que eu
vi. Não tem nenhuma casa perto do acidente. A escola antes da curva não era
usada há anos, e estava trancada. Sim, eu parei pra verificar. Me desculpa.
Quando voltei ao carro pra ir embora, tentando
obrigar meu cérebro a raciocinar que a garota foi invenção da minha mente, eu
vi ela de novo. Estava descalça e usava o mesmo vestido branco, o mesmo vestido
manchado de sangue. Ela era loira e bem jovem, da nossa idade talvez. Estava
parada no acostamento da rua, e quando o farol do meu carro iluminou ela, vi
que parte da cabeça estava amassada, e ela não tinha olhos, só dois buracos
escuros e ocos.
Pedro soltou uma risada abafada.
— E não é que eu estava certo? Ela não era mesmo real. Eu vi a porra de
um fantasma.
Em silêncio, Luma escutou o resto da história de Pedro, que confessou
sentir-se atraído por aquela aparição, como se estivesse sendo puxado em sua
direção. Ele ligou o motor do carro e disse que até mesmo o veículo parecia
querer se arrastar até a loira da rodovia, mas conseguiu passar dirigindo por
ela e seguiu caminho até Jaraguá do Sul, completamente assustado e com atenção
redobrada na estrada. Luma tentou forçar a mente para lembrar-se da história
completa que sua avó havia lhe contado na infância. Embora parecida, Luma
sentia que faltava alguma coisa nos relatos de Pedro para que eles fossem iguais
à lenda.
Na semana que se seguiu, nada foi diferente para Luma. Ela e Pedro
continuaram a trocar mensagens e não falaram mais sobre o acontecimento na
estrada, pois Pedro disse que queria esquecer aquilo de vez. Pedro também disse
que naquela semana estava fazendo hora extra no trabalho, focando a mente no
projeto que precisaria entregar e não em espíritos sobrenaturais. Na outra
sexta-feira, Luma deu pulos de animação quando Pedro lhe contou que seu chefe
permitiu que ele assumisse um cargo de liderança na filial que abririam em
Joinville. Esperando o namorado chegar no apartamento, Luma já tinha feito a
reserva no restaurante que tanto queriam ir, para comemorar as boas
notícias.
Pedro nunca chegou.
Depois de enviar diversas mensagens para ele, Luma recorreu em ligar
para a mãe do namorado, que também ficou espantada pelo filho não estar lá.
— Ele não está? Faz uma hora que ele me avisou que tinha chegado aí.
— Porquê ele faria isso? Ele pode ter ficado no trabalho, ele me disse
que estava trabalhando até mais tarde todos os dias...
— Como assim, até mais tarde? O Pedro me avisou que estava saindo mais
cedo do trabalho porque estava indo aí te ver todos os dias, e voltava pela
manhã. Até reclamei com ele do tanto que estava gastando com gasolina e...
— Ele nunca veio aqui essa semana.
— Ah, então onde esse filho da mãe se meteu?
...
O carro de Pedro foi achado em uma das curvas da Rodovia do Arroz, no
sábado à tarde. Quando os policiais e bombeiros encaminharam o cadáver para o
Hospital São José, de Jaraguá do Sul, Luma acompanhou a mãe de Pedro dentro do
necrotério para identificar o corpo. Assim que o funcionário do hospital
removeu o lençol, a mãe soltou um grito.
Era realmente Pedro que estava ali deitado, mas no lugar de seus olhos,
onde antes residiam aqueles olhos brilhantes com os quais Luma se apaixonou à
primeira vista, agora só restavam dois buracos negros e ocos. Conforme o médico
legista afirmou, Pedro havia morrido no impacto, mas não sabia dizer como seus
globos oculares foram removidos, e não havia nenhum traço deles no local do
acidente. Uma investigação maior seria aberta, já que o caso de Pedro não era o
primeiro que combinava um acidente de trânsito com o desaparecimento dos olhos
das vítimas, embora esse fator bizarro estivesse ocultado nos noticiários.
Na maca ao lado do corpo de Pedro, Luma viu algo que só comprovava a sua
teoria macabra.
— E isso aqui? Estava com ele? — Luma perguntou ao médico.
O legista, embora não
devesse entregar fatos da investigação, comoveu-se pelo choro agoniado da mãe e
com a pergunta trêmula de Luma.
— Foi encontrado dentro
do carro dele. Serão feitos testes para determinar de quem é o sangue.
Ali naquela maca,
dobrado perfeitamente, estava um vestido branco e ensanguentado.
Foi então que Luma
lembrou-se do nome da mulher de branco, da história de sua avó: a Ladra de
Olhos.
Em algum outro lugar, naquele ponto sinistro da rodovia, um fantasma finalmente obteve o par de olhos perfeitos que sempre procurou.
Conto escrito por
CAL - Comissão de Autores Literários
Produção
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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