Amores Improváveis
de Edih Longo
Marisa não se continha esperando para ser atendida pela médica. Já tinha pesquisado sobre o laudo apresentado no exame, mas queria discutir na anamnese quais seriam as medidas a serem tomadas, para estudar a sequência que teria sua vida. Para falar a verdade, não entendeu de imediato todos aqueles termos científicos e isso aumentou mais ainda sua expectativa. O mundo vive sob o cutelo de um carrasco invisível que já dizimou milhões de pessoas, não se incomodando em absoluto com quaisquer variações de raça, cultura, condição social, etc. O vírus só precisa de um pulmão para aconchegá-lo.
Lembrou-se do sofrimento que sua mãe sofrera. Várias coletas sanguíneas, vários exames, vários medicamentos e, apesar de tudo, o seu trem descarrilou, levando consigo, precipício abaixo, toda dor da família e o sentimento catatônico de não se poder fazer nada. A pior angústia do ser humano é a incapacidade de reação. E, no entanto, apenas um bendito aparelho respiratório para que a protegesse poderia ter aumentado a sua permanência do lado de cá do muro. Como ela cuidara da mãe, pensou que seria a próxima vítima.
—E então, doutora, como
sabe, tive todos os sintomas, exceto a febre. Mas, minha tosse me
impossibilita, inclusive, de frequentar certos lugares, por exemplo, o meu
próprio local de trabalho. Sou massagista e não posso fazer isso online.
—Não se preocupe. O
diagnóstico não é Covid.
—Ai, que alívio, graças
a Deus!
—É câncer pulmonar.
Sinto muito.
—Como assim?! Não
entendi. Não sou tabagista. Pratico esportes. É norma de minha empresa que os
funcionários façam sempre todos os começos de anos um checkup completo,
principalmente, os que trabalham com o público.
—Marisa, na situação atual em que nos encontramos em termos de saúde, é bem melhor tratar um carcinoma do que bater de frente com esse vírus, do qual ainda sabemos pouco, haja vista as mortes constantes nas estatísticas. Já discuti com um colega sobre o seu caso e ele quer muito cuidar de você. É sua especialidade. Você é jovem e vai tirar de letra o tratamento que é prolongado, mas passível de ser feito com o máximo sucesso.
Marisa sentiu o chão
sumir sob os pés. Ao mesmo tempo, lembrou-se que a tia tinha se curado de um
carcinoma também no pulmão, e era fumante inveterada. Ela, ao contrário, tinha
horror ao tabaco e era uma atleta completa. Não era obesa e tomava todas as
vacinas religiosamente contra a gripe H1N1. Isso só podia ser uma piada da
vida. Resignou-se e pediu o contato do oncologista. O pior era conseguir alguém
para a acompanhar nas sessões, quando começassem os tratamentos indicados.
Apesar de agnóstica, resolveu conversar com o Padre que fora seu professor no
Educandário Nossa Senhora de Fátima.
A mãe foi, por muitos
anos, pianista da Igreja e era muito querida pelo Padre. Ela, às vezes, até
brincava perguntando se ele não era seu verdadeiro pai. Os dois não se
largavam. A mãe dizia enfática que ela é o resultado de uma curiosidade
juvenil. O ato sexual foi mais exploratório do que amoroso, mas resultou em uma
bebê linda. Apesar de religiosa, Dª. Isabela era uma rebelde política e na
ditadura militar na Argentina, ficou dois anos presa. Quando saiu, mudou-se
para o Brasil, virou militante e foi novamente presa.
Quando Marisa tinha
dezoito anos, ficou sabendo que era o resultado da cópula de sua mãe com um
carcereiro, mas foi um ato totalmente consensual. Foi um amor improvável de dar
certo. A mãe tinha dezenove anos e o pai tinha cinquenta e cinco, mulher e quatro filhos. A mãe nunca se casou e
Marisa conheceu o pai, que mora no Chile, depois de adulta. Ligou para ele e,
só então, chorou toda a sua tristeza e inconformismo. Que falta faz um abraço
nesta hora! E o pior, que era impossível que ambos se encontrassem por causa da
pandemia. A maioria dos voos aéreos estavam proibidos.
Ela teria que se
contentar com a performance profissional do amigo de sua médica. Não queria ser
apenas um número de um prontuário. Quando o médico, finalmente, apareceu na
saleta de espera, ela estremeceu. Ele tinha o olhar sereno de um sábio, tipo,
monge budista. A voz era quente e a envolvia como se fosse o abraço que tanto
necessitava do seu pai. Era incrivelmente bonito.
A primeira providência
que tomou, depois de lhe indicar a cadeira e se cumprimentarem à Ringo Star,
foi pedir para que ambos tirassem as máscaras protetoras para se conhecerem.
Aí, ele ficou excessivamente lindo com um sorriso encantador. Marisa se viu na
emoção da própria mãe quando viu o seu carcereiro. Ela tem vinte anos e o
médico deve ter, pelo menos uns sessenta. Tem um perfume suave, mas
másculo.
É de uma elegância,
apesar do jaleco, que...ufa! Tirava o fôlego. Os olhos eram marinhos. Os
cabelos grisalhos e fartos. Ela se sentia surfando em pleno mar, esperando o desafio
de entrar na onda e dominá-la. Odiava o ambiente hospitalar cujo éter parece
estar sempre no ar, mas ali, naquele consultório, era como se estivesse em seu
quarto lendo uma poesia de Drummond, tendo ao fundo o piano de Tom Jobim.
—Conte-me como está se
sentindo. Não esconda nada. Vamos começar essa caminhada juntos, depois
aceleramos, chegaremos na reta final com muito fôlego e subiremos juntos ao
pódio. Estou aqui para servi-la.
Depois de esclarecer
com todos os detalhes como seriam os procedimentos, despediram-se. Marisa não
conseguia se esquecer da voz que ainda a fazia suspirar, os olhos que ainda a
hipnotizavam. Resolveu dar uma volta pelos seus lugares preferidos da cidade.
Ficou horas sentada em um bar tomando suavemente uma cerveja. Não tinha ninguém
a quem contar sua tristeza, suas dúvidas. Ficou repassando na imaginação um
filme branco e preto do que fora até agora sua pequena existência. Em casa,
colocou várias vezes a gravação que Tina Turner fez de Help, dos Beatles.
Quando sua mãe voltava das sessões quimioterápicas, quando antes da covid tivera câncer na mama esquerda, era o primeiro CD que colocava e ficava horas ouvindo com os olhos secos, mas indignados. Marisa também não chorou. Deixou que Tina pedisse socorro por ela e sem perceber ficou imaginando como seria estar nos braços do seu médico. Mentalmente, programou como agiria na próxima consulta. Precisaria parecer mais velha? Mais sensual? Mais eloquente ao falar? Mas, do que falaria, senão, sobre seu maldito carcinoma? Que a palavra mais próxima que encontrou para rimar é cerimônia.
Deveria ser mais
discreta? Na verdade, chegou à conclusão de que deveria agir como uma moça de
sua idade. Sem mexer muito na colmeia, senão as abelhas atacam e deixa escapar
das mãos o pote de mel. Resolveu que seria discretíssima. Deixá-lo-ia falar e
se envolveria pela suavidade de sua voz. Pronto. Ponto final. Quando ele pediu
para que se deitasse na maca para examiná-la, sentiu uma quentura por dentro
que destoava totalmente com a temperatura ambiente de onze graus centígrados.
Respira forte. Outra vez. Mais outra vez. Lembrou-se do poema “pneumotórax” de
Bandeira.
E o frio do estetoscópio parecia um carvão em brasa que percorria seu
corpo para a devida auscultação. Quando ele estava nos seios, estremeceu.
Quando foi para as costas, idem. Quando apalpou sua barriga com as mãos, teve
que se conter para não pedir para que ele descesse um pouco mais. Pronto, o
laudo do médico: peça à pneumologista para que lhe prescreva uma bombinha para
auxiliar na respiração, apesar de que está tudo bem, ok? O laudo dela: puxa,
como seria bom se ele me envolvesse em seus braços. Saiu do hospital feliz como
nunca estivera nos últimos dias. O seu último namorado era ciumento e
possessivo.
Ele que comprasse uma mulher inflável para a usar do jeito que quisesse.
Já estava se preparando para fazer o NBA em Boston, onde ficaria na casa da
tia. Depois, ficaria uns dias em casa de seu pai. Mas, agora, depois do seu
Hipócrates de olhos marinhos como o mar Egeu e do câncer, não sabia mais
exatamente o que faria se ficasse longe dele. Foi um maldito amor à primeira
vista do caramba. Ia dormir, pensava nele para ver se ele se embrenharia em
seus sonhos. Acordava, pensava nele para ver se arranjava algum motivo para
estar “por acaso” para vê-lo pegar o carro no estacionamento do Hospital.
Estava obcecada.
Agora, além do oncologista, precisaria de uma psicóloga. A vida devia
estar inventando nova piada às suas custas. Já tinha feito as sessões de
quimioterapia e agora faz a rádio, mas sempre tinha que continuar as visitas ao
médico. Ainda bem. Depois de uma rádio, nada como um anestésico poderoso como
aquele olhar e aquela voz e aquele tudo de homem. Em uma dessas visitas
percebeu que ele a olhava de forma diferente. Ela se lembrou do amor improvável
da mãe que não passara de uma aventura.
Diante dele, ela sentia o sangue subir à face. Maldita excitação que a
fazia ficar com a respiração alterada. Tentou se lembrar das respirações
ensinadas por sua professora de ginástica. Será que estava tão óbvia assim a
sua paixão? Relaxa idiota! Seu ego recriminador dizia. Ela retrucava: ao invés
de chamar minha atenção, por que não me ajuda, cretino! Seu ego é um chato.
—Está tudo bem? Sua respiração está ofegante.
—Estou ótima. Confesso
que desde que comecei a radioterapia, sinto um pouco de falta de ar, mas nada
que a bombinha não resolva.
—Tem alguma coisa para
fazer logo mais à noite? Hoje é sexta e gostaria de convidá-la para jantar.
Pode ser? Veja, pode parecer antiético, mas gostaria de lhe conhecer melhor.
Pode ser ou acha que estou sendo muito ousado?
—Isso é tipo, um
encontro?
—Se quiser considerar
assim. É tipo um encontro.
Depois de jogar sobre a
cama mais de dez roupas, Marisa se jogou em cima de todas, fechou os olhos e
escolheu duas peças pela textura dos tecidos. Escolheu um jeans e uma blusa
branca de renda. Para garantir o sucesso da empreitada escolheu um
soutien e uma calcinha vermelha. Ah,
deixaria que ele tomasse todas as iniciativas, claro, como toda moça de
respeito, mesmo porque não conhecia muitas. Mas, com certeza só ficaria no
jantar, por enquanto. Fez uma maquiagem discreta, olhou-se no espelho, achou-se
bem e jogou um beijo para cima, pedindo a proteção materna. Ao vê-lo em frente
ao restaurante que tinham combinado, ficou morrendo de vontade de sair
correndo. Lembrou-se da mãe que assim como ela, teve um amor improvável.
Aí surgiu uma nova e
grande dúvida: deixaria pegar em sua mão? Não. Absolutamente não. Ficariam
parecendo o papai levando a filhinha para o primeiro dia de aula na pré-escola.
Que dificuldade de ação! Ele seria capaz de não pedir nem a sobremesa, depois
do prato principal. Olhou-se no pequeno espelho do estojo e se achou ótima. Os
olhos brilhavam. Os lábios tremiam. Ele veio ao seu encontro com os olhos
também brilhando. Os lábios tremendo. E, além da emoção evidente, a respiração
estava ofegante. Ele a cumprimentou com um respeitoso beijo no rosto (quase que
ela se vira em direção à boca) mas, graças a Deus, não assumiu o papel do
papai.
Passou os braços
delicadamente pelos seus ombros e foi como se uma faísca da brasa de uma
lareira estivesse explodindo e sem auscultação. O seu perfume invadindo seu
corpo. Pelos cantos dos olhos, percebeu que várias pessoas os observavam.
Levantou a cabeça como se subisse em um pódio e exibiu com orgulho seu troféu.
E sua primeira experiência sexual com ele foi de um carinho absoluto e de um
ardor sem limites. Ela aprendeu o verdadeiro sentido do verbo amar nos braços
daquele homem tão especial. Nesse dia, dialogou com a mãe que também era uma
rebelde e confessou seu ato de resistência diante das críticas dos amigos pelo
seu ato considerado impensado.
Enquanto escrevia os
e-mails encaminhando o seu convite de casamento para os amigos, imaginava os
olhares estupefatos de toda aquela molecada que estavam se preparando para
terminar a Faculdade e escolher a especialidade em que atuariam. Ficou
imaginando as vozes abafadas de sussurros admirados por ela ter tanta coragem
de começar uma vida com alguém com o triplo de sua idade. Atravessando a nave
da Igreja, piscava para os amigos com um misto de felicidade e torpor. O sangue
fervia.
A vida piscava igualmente
para ela e o Padre que um dia ela ironizou que era o seu pai, a abençoava.
Via-se no seu rosto bochechudo a felicidade estampada. Ao chegar no altar
levada pelo braço do pai, olhou para cima e mandou o costumeiro beijo para a
mãe. Assim como ela, exibia ao mundo o seu amor improvável, mas que não
largaria por um segundo sequer.
Ele era para a vida toda, enquanto vidas tivessem.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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