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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 4x06 - Madalena

Conto de Matheus Zucato
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Sinopse: A história conta sobre os dramas psicológicos de um homem que não pôde suportar o abandono da mulher que acreditava ser a mulher de sua vida.

4x06 - Madalena
de Matheus Zucato

       Por um momento, olhei no espelho. Vi meu rosto, mas não era meu, era o seu e o de ninguém. Ninguém? Não, não ousava aceitar que se tornasse ninguém. Era tão real que sua partida fora, a mim, sobrenatural. Foi expurgada da vida como um fantasma. E o exorcista de Madalena fora eu próprio. Ela foi embora de minha vida.

Encontrava-me largado ao lado da mesinha onde fica o telefone de fio em espiral. O espelho fora suficiente para que seu reflexo olhasse fundo em meus olhos, penetrando todo meu saber, como olhos de Lispector caindo fundo dentro de mim, sem pedir licença, forçando as engrenagens enferrujadas de tristeza e solidão a trabalharem: eu estava funcionando, novamente.

            Mas só isso não era o necessário para que eu fosse adiante com meu plano de dois minutos atrás. O fantoche de mim estava largado na poltrona de couro, toda linda, marrom escuro, pregada a botões dourados já enferrujados. Ela era bonita. Eu não. Largado e enferrujado. Na mão esquerda, o copo com o resto do uísque; a direita era para alcançar o telefone e discar. Mas deveria discar? Que angústia.

            O álcool iniciava a festa, não queria nem saber. E, na contradição do ambiente interno e externo, encontrava-me a lembrar — e a tentar entender — qual fora a gota d’água. O que Madalena quis que não lhe pude dar ou que lhe dei demais? Será que errei na dose? Mata-se um homem pela sede e pelo afogamento. Dose errada, com certeza.

            E lembrei-me de quando a conheci: os olhos castanhos a investigar, sem procurar coisa alguma. Madalena era bela demais para que um bêbado consiga descrevê-la em palavras. Era, sim. Lembro-me do pequeno pub mineiro, de seu ambiente antigo, das luzes fracas a confundir os clientes: tinha um toque melancólico, original, interrompido unicamente na mulher de cabelos esplendidamente caídos, jogados meio de lado, descendo como espirais telefônicas até os ombros tão brancos que tornavam ainda mais negros aqueles fios. Era belíssima, tinha lábios exuberantes, dignos de um sorriso maravilhosamente desenhado, tímido, inseguro, mas sincero. Quando sorria, tinha, de enfeite, uma delicada covinha em sua bochecha direita, rosada. O nariz, reto, perfeitamente italiano, perfeitamente feminino. Era ela uma cópia exata de algo que nunca vira, mas que sempre conhecera em meus sonhos, meus mais desejosos sonhos. Eu, era nada.

            O uísque é simbólico, veja bem. Fora o amortecedor para aquele acidente cerebral que sofri quando me levantei e atravessei o pub em sua direção. Quase desmaiei. Será que ela já tinha alguém? Seria, ainda, casada? Seria real? Era uma dualidade. Era real, bem ali. Não esperava que fosse real em minha vida, entretanto. Eu, nada. Cheguei até ela desviando de clientes, de um garçom gigantesco, de uma outra mulher que nem sequer cheguei a ver o rosto, mas que me disse “olá”. Ela não importava. Cheguei até Madalena, que me olhou: uma perfeita e ridícula estátua de camisa branca. Ela também me disse “oi”, e desta vez respondi o cumprimento, dizendo “oi”. Minhas mãos tremiam. Por que tremiam? Afinal, qual a grande dificuldade em nos aproximarmos de uma pessoa bonita? Talvez seja o medo em ser rejeitado. Ser rejeitado. Ser rejeito. Não ser desejado, como é a pessoa bonita por nós. Que injustiça. A atração animal é uma coisa engraçada. Eu flutuava? Era a cabeça. Tinha de parar com as divagações e dizer qualquer coisa. Minha mão chacoalhava a bebida no copo, e fiquei com medo de derrubá-lo em mim. Era só o que me faltava.

            Ela repetiu o “oi”, agora com interrogação na entonação. Eu, por minha vez, quase desmaiei, novamente. Ela me via, reconheceu minha existência! Ali eu estava em sua frente, não como um fantasma ou um espectro, ou como uma brisa cálida que eriça os pelos. Ela me via e disse oi. Vamos, responda!

            Eu disse “oi” novamente, patético. Ela sorriu, confusa. Eu lhe disse o meu nome, numa voz quase trêmula; estava por um fio. Ela, Madalena. E comecei a me questionar se tinha uma boa aparência. Se meu hálito a incomodava. Se eu era alto o bastante, forte o bastante, rico o bastante, bem vestido o bastante; se tinha os olhos minimamente bonitos que ela não desprezasse logo no primeiro mergulho invasivo. Ai, que dó de mim, naquela noite. Ela, confusa, Madalena. Eu, patético. Pedi desculpas, levantei e andei.

            Ainda largado na poltrona, a primeira lágrima caminhou até a ponta do meu nariz. Enxuguei, pois causara cócegas. Estúpido, o chorar de um bêbado. “Homens não choram”, eles dizem. Já não era homem, no entanto. Graças! Podia chorar. Peguei o telefone. Girei os números até que compusessem o dela. Em cada giro, uma euforia, o coração triturando o peito. Desisti, era só a primeira tentativa.

            Madalena disse que meu nome era bonito. Não acho, mas podia ser simpatia dela. Ela queria conversar? Sim. Segurou meu braço quando andei para longe. Seu toque está até hoje marcado em mim. O leve e decisivo aperto em minha pele, a pressão daqueles dedos tão delicados. Não superei aquele apertão até hoje. Ela queria conversar. Tornei a sentar-me.

            Perguntei o porquê e ela respondeu que não importava, só queria conversar. As amigas deram-lhe um furo, faltaram ao encontro. Ela, pontual demais, talvez tenha perdido a ligação do cancelamento. Estava sozinha desde que chegara ao pub. Impossível!, pensei. Impossível!, falei. Ela quis saber o motivo do espanto, enrubesci. Como uma mulher como ela...? Ela enrubesceu. Conversamos por algumas horas. E horas depois a caipirinha dela dormiu no apartamento de meu uísque. Namoramos, semanas mais tarde.

            A essa lembrança, dediquei, ali, sentado e reto, mais um gole e mais uma tentativa. Dessa vez nem cheguei a discar seu telefone. Era fraco e precisava da força da bebida. Ela era forte, mas ainda não havia feito fusão em mim. Fez, meia hora depois.

            Nosso namoro foi bom. Inacreditável; ela me fez feliz. Eu, que não era nada, tornei-me algo. Tornei-me parte dela. Eu tinha uma namorada; ou, na verdade, ela me tinha. Visitamos os sentimentos e desejos mais profundos um do outro, como fazem normalmente namorados que ficam juntos por um tempo considerável. Ela visitou todos os sentimentos que até então eram mantidos sob um manto, numa mistura de consciência e subconsciência. Não sei, não tinha ideia do que os acobertava; o que importa é que fizemos certo tipo de pacto: eles não mexiam comigo e eu não mexia com eles.

            E ela os descobriu. Trouxe em mim qualquer coisa chamada felicidade, qualquer coisa chamada fidelidade e qualquer coisa chamada, sim, amor. Amá-la foi como entrar numa fortaleza interior, feita de pedras encobertas por teias de aranha. Foi como atravessar a grande ponte de pedras e arrebentar um portão imenso de ferro enferrujado, sem pedir ao guardião que o abrisse. Seu amor foi como um incêndio que obriga os moradores de um enorme edifício chamado coração a evacuarem o mais rápido possível, para não se queimarem. Foi um exorcismo de uma casa mal-assombrada cujos fantasmas escapam todos de uma única vez e tornam o ambiente, antes habitado, num vazio, representado unicamente pela ausência que sentia dela todos os dias em que vivi sob o efeito entorpecente daquele amor. Ah, o incêndio, os fantasmas, a casa, a fortaleza, a vida entorpecida pelo amor. E saíram estes sentimentos todos numa única explosão sexual — a primeira — quando a pequena e delicada Madalena dos cachos negros tomou caipirinha em minha cama. Daí para frente, o namoro.

            O tempo é confuso, eu sei, mas também não o é a vida? Que grande explosão de sentimentos é a vida; e, depois de meses de namoro, outra explosão de sentimentos invadiu minha quietude. Era Madalena, novamente. Pois tão rápido quanto a vida é o amor.

            Era Madalena que eu queria ouvir no telefone. Disquei o número, mas ninguém atendeu. Ainda largado na poltrona, permaneci, como uma almofada fedorenta. O copo, já no fim. Não sentia os dedos, não sentia as pernas. Não sentia a permissão mental para tomar minhas próprias escolhas. Id, Ego, Superego, qual a diferença? Eu já não dava a mínima. Era Madalena, Madalena e Madalena. Era o seu perfume, os seus cachos negros, os olhos castanhos e a pele branca. Era um absurdo, e ninguém atendeu. Fiquei irado.

            Madalena decidira encontrar-me em meu apartamento. Desde o começo do namoro, havíamos transformado aquela espelunca em um aconchegante canto de descanso. Que poder tem a paixão sobre nós! Quando em sã consciência imaginaria eu que aquele apartamento do subúrbio transformar-se-ia num lar tão aconchegante? Todavia, minha consciência já há muito havia perdido a sã característica quando decidimos — ela decidiu — que iríamos reformar o apartamento. Cheguei a cogitar que ela quisesse mudar-se, vir morar comigo. Tolice, agora vejo.

            O apartamento ficou lindo.

Certa tarde, decidiu encontrar-me. Chegou no horário marcado; era pontual. Os sinais começaram a aparecer: seu cumprimento fora um beijo em minha bochecha. Na bochecha!? Que sinais estranhos e confusos carregam um beijo na bochecha de um casal de namorados de meses. Era óbvia a situação. Despedaçamos, como uma garrafa de vidro que se quebra.

            Entrou dizendo que precisávamos conversar. Deus sabe a maldade que carregam estas palavras quando ditas por alguém a quem temos como importante. “Precisamos conversar”. Duas palavras que serviram de combustível para que meu coração surtasse sem mesmo saber se a conversa necessária era boa ou ruim. Precisamos conversar. Eu disse que ela se sentasse, que conversaríamos. O tom de voz tinha de acompanhar certa indiferença, como se bem fundo eu ainda acreditasse que falaríamos de algo bom. Ela se sentou no sofá marrom, comprado há um mês, para combinar com a poltrona. Modesto, precisamos conversar. “Modesto”, ela havia dito? Sim, Madalena pronunciara meu nome. Era mais um sinal; talvez o pior. “Modesto, você está bem?”. Um devaneio começava a se tornar aparente, mas a pergunta espantara minha ilusão. Se eu estava bem? Era este o assunto a ser conversado? Ou ela havia perguntado somente por ter visto quão distante daquele ambiente minha atenção se encontrava? Encontrei os olhos de Madalena postos nos meus. Era tristeza o reflexo que pairava naqueles glóbulos castanhos: seria ela ou eu? Madalena explicou-me tudo tão delicadamente, a voz como que cansada, mas ainda assim decidida a dar fim a tudo. “Não será possível continuarmos juntos”. Ah, e acabou. Não ousei protestar ou perguntar o motivo; eram grandes as chances de ouvir o bordão clássico “não é você, sou eu”; e fiquei com receio de matá-la. Matá-la? Deus, o que pensava eu naquele instante? Era tal a dor de ver Madalena partir que me era mais fácil vê-la morta a vê-la com outro. Matá-la? Nem sabia como se tirava uma vida. Já havia pisado em insetos antes, mas nunca matara um animal maior. “Acabou. Desculpe”. Não há o que desculpar; até logo. Adeus.

            Peguei o telefone e liguei novamente. Chorava. A garrafa de uísque jazia em vários e pequenos pedaços de vidro depositados aos pés de uma das paredes da sala. Ninguém atendia. O mundo inteiro fragmentado numa única garrafa de uísque. Tentei novamente, nenhuma resposta. Pensando bem, deveria ligar mais tarde. Mas não haveria mais tarde, haveria? Ela não estava em casa, disso eu tinha certeza. Mas por que eu ligava, então?

Dois dias haviam passado desde a partida de Madalena, e o apartamento já não suportava mais o próprio cheiro. Eu, largado naquela poltrona, a garrafa quebrada sobre um pesado e opaco corpo aos pés de uma parede pintada em vermelho já coagulado. Madalena retocava o ambiente mesmo depois de partir. Ela partira porque eu a havia deixado partir. Havia executado sua partida. Ela me acompanhava, largada ao chão. Foi um acidente, uma pancada de amor em sua nuca. Tirei o telefone do gancho. Liguei-lhe uma última vez. Ninguém atendeu. Tentei outro número. Esta tentativa foi interrompida por uma voz feminina. “Emergência policial, em que posso ajudar?”

A mão tremia, a garganta seca forçava as cordas vocais a emitirem um som, o som da confissão. Mas ali estava Madalena. Ela era tudo, e seus cachos agora enfeitavam o carpete bege do chão onde pequenas estrelinhas de vidro pipocavam espalhadas. Parecia o céu noturno. “Alô?”, dizia a voz do telefone. A mão foi até o gancho, o dedo indicador tremendo numa frequência extraordinária. O gancho de metal trocando calor com o dedo quente e indeciso. Era noite, e o uísque finalmente fez efeito dentro de mim.

       


Conto escrito por
Matheus Zucato

CAL - Comissão de Autores Literários
Francisco Caetano Gisela Lopes Peçanha Liah Pego Lígia Diniz Donega Mercia Viana Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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