5x04 - Cuidado com os dentes do cavalo que recebe
de Edih Longo
Diz o ditado que “cavalo dado não se olha os
dentes”. Pois eu acho que se olha sim e muito bem. Se quiser agradar a alguém,
dê-lhe algo que realmente o cative, diabos! E se não puder ajudar a alguém, não
o atrapalhe.
Por
isso, no caminho de ida para buscar os presentes de Natal que a Empresa em que
o meu pai trabalhava distribuía; ele, muito preocupado, conhecendo a filha que tinha, disse-me:
— Por favor, diga
apenas muito obrigado, tá?
Tudo
bem, sempre me comportei até que, dentro do possível, muito educadamente na
frente do distribuidor sorridente com aquele chapeuzinho ridículo de Papai Noel
e o imutável “rou, rou, rou, rou...” que me irritavam.
Atualmente,
a única utilidade que encontro para esse som patético é que se você tiver
aquelas incômodas rugas em volta dos olhos, elas desaparecem, apesar de você
ficar com os mesmos arregalados. Não é fantástico?
~§~
Bem,
mas... Onde é que eu estava mesmo? Ah! A chata distribuição dos presentes.
Mas,
naquele Natal, eu achei, sincera e honestamente, que o distribuidor estava
querendo tirar uma com a minha cara. A hora que eu abri o grande... Enorme...
Gigantesco pacote, lá estava a Lilita: com os olhos esbugalhados e gorda...
Rechonchuda... Obesíssima, mal cabendo em minhas pequenas mãos de seis anos.
Se
fosse nos dias atuais, minha primeira providência seria deixá-la num SPA. E era
de pano. Recheada sei lá do quê. Pesava trezentos quilos, quinhentos gramas,
duzentos miligramas e vestia uma roupa de um colorido nada combinando,
parecendo as bandeirinhas de São João da minha rua. Aquilo pra mim era um
impropério.
Sempre gostei de
combinar tudo direitinho. Jamais usava uma maria-chiquinha que não combinasse
com a minha roupa, nem morta! Peguei-a cambaleando, pois era maior do que eu,
olhei fixamente para o distribuidor que esperava a minha surpresa de cristã
agradecida e disse:
— Obrigada...
Muito obrigada... Obrigada mesmo, mas o que faço com isso?
Ora,
eu pedira outra coisa, droga! Pelos cantos dos olhos, vi o meu pai se encolher
e intimamente, antecipei todo o sermão, quiçá, uma palmada que viria já em
casa. Foi nesse fatídico dia que perdi a ilusão natalina e percebi que o meu
Papai Noel ou era analfabeto ou não gostava nem um pouco de minha sinceridade.
Dane-se!
Graças
a Deus (acho que em respeito ao nascimento de Seu Filho ou Ele sentiu pena de
mim...) choveu. Para desmanchar a má impressão que causei ao meu pai, tentei
brincar dizendo:
—
Papai, quando eu crescer,
você me dá uma Ferrari conversível vermelha igual ao que o pai da Sílvia tem?
Ele leva sempre os filhos para a escola. Se bem que com aquela ventania toda,
eles chegam todos despenteados iguais ao cientista Albert Einstein naquele
retrato que tem na escola.
Percebi
pelo canto do olho que ele calou um risinho nos lábios e me disse peremptório,
enrugando a testa como sempre fazia quando bravo:
—
Quando você crescer,
vai ter que trabalhar de manhã, à tarde e à noite para comprar a sua Ferrari.
—
É, está certo. Já vi que meu Papai Noel nunca vai me atender mesmo. Eu tinha
pedido outra coisa e o que foi que ele me mandou? Essa boneca, que é quase maior do
que eu. De qualquer forma, vou sempre viver cansada, tanto para comprar a minha
Ferrari que vou ter que trabalhar pra chuchu, quanto para carregar essa boneca.
Viva!
Sempre achei a água a coisa mais importante do Planeta. Talvez por ser
nordestina, coisas de raízes, sei lá.
Mas o certo é que ela me salvara a pele. E até chegarmos ao ponto do
bonde (pronto, agora já sabem a quantas isso aconteceu...) a Lilita cresceu
tanto, mas tanto... Tantíssimo! Que meu pai não aguentando tanto peso,
exclamou, às gargalhadas:
— Caramba, filha,
mas realmente, o que você vai fazer com isso?
~§~
No natal do ano passado, a menininha de cinco
anos que habitava em mim, olhou carrancuda para o mesmo Papai Noel e, sem
obedecer aos vários conselhos do meu pai, disse:
—
O senhor é até bonzinho com sua risada boba, mas acho que não sabe ler. Não foi
isso o que pedi. Não mesmo.
Meu
pai ficou mais vermelho que o Papai Noel que já devia ter tomado mais do que
uma garrafa de cachaça. Como sempre, era a tal festa de confraternização para
os funcionários da Empresa e que eu acho que só as crianças pobres é que vão. O
Papai Noel tinha tanta criança para atender que nem se perturbou com minha
indignada reclamação, mas meu pai não. Só via a minha malcriação.
—
Não entendeu qual a parte de meu pedido? Como vai conseguir um dia que o bom
velhinho traga o que quer? Você é ousada e desobediente.
— Ah, acho que o Papai Noel é um
analfabeto ou não fala a nossa língua. Nunca vi um filme de Papai Noel
brasileiro.
—
Puxa, filha, você tem razão. E acho que o Papai Noel nem sabe que existem
crianças sabidas como você. Mas, o que pediu mesmo para o Papai Noel?
—
Uma bicicleta com cestinha na frente para eu levar os livros pra escola.
Cheguei
até me beliscar de raiva, quando vi que meu pai tinha os olhos molhados. Achei
que ele também um dia tinha pedido uma bicicleta e não tinha recebido, mas ele
limpou as lágrimas e falou com a voz mais suave que eu ouvira até então:
—
Escuta, filha, o
Papai Noel é igual pra todas as crianças, mas, às vezes, ele não consegue
comprar tudo o que elas pedem. Vocês são quatro crianças, então, já viu né?
Coitado, haja dinheiro!
Ainda
tentei negociar o meu pensamento que não gosto de jogar ideias à toa e insisti:
—
Mas a família da Lílian tem quatro crianças também e, no ano passado, as quatro ganharam tudo o que pediram na
cartinha das meias. Eu conferi.
—
Acontecem certos enganos. O Papai Noel é um só, mas são tantas as...
Foi
então que comecei a perder o meu encanto infantil e percebi que cada família
tinha o Papai Noel de acordo com as condições financeiras do chefe da casa.
Fiquei triste por ter magoado meu pai e lhe dei um beijo.
—
Tudo bem, pode ser que as meias delas não sejam furadas como a minha e o meu
pedido caiu, né pai?
Como
sempre gostei de um Teatrinho, acho que o convenci de minha indiferença porque
papai deu uma sonora gargalhada e me abraçou. Muito cedo aprendi a conviver com
a realidade e desejo de coração um… Feliz Natal para todos, principalmente, às
crianças que ainda mantêm a ilusão do Noel, e àqueles que tenham as meias furadas sempre
procuro dar um presente.
Ah,
e sempre deixo uma meia sem furos em minha árvore de Natal, mas só peço bons
sentimentos, saúde e nesse ano atípico vou pedir que tenhamos paz e que o
Covid-19 se despeça da humanidade para sempre. Quem sabe o velhinho existe e
nos dá esse presente, né?
Portanto, não se
atrevam a me dar coisas sem qualquer critério, principalmente, se forem coisas
espirituais e se, patéticos, esperarem ansiosos pelo meu presente parecer: ele
será transparente como a vida pra mim deve ser, diabos! Dizem que se conselho fosse
bom, ninguém dava, vendia, não é? Mas, aproveitando a ocasião, aconselho:
— Olhem sempre
com cuidado os dentes do cavalo que estão ganhando, ok? Mas, por favor, com a
devida discrição e elegância. E, cá entre nós, não consegui comprar uma Ferrari
— haja dias e períodos de trabalho —, mas tenho um Peugeot Conversível vermelho
como o sangue que corre em minhas veias.
Como sou uma
escritora e navego no mar da ficção, finjo que ele é a minha tão sonhada
Ferrari. Só que uso um lenço como balsa que me salva para não ficar parecida
com o cabelo na foto do Albert Einstein.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Gostei muito do texto! Parabéns!
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