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Flor-de-Cera: Capítulo 20

Novela de Carlos Mota
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FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 20


– O que o senhor é dela?

– Pa... – enche o pulmão de ar – ... A-AMIGO! Amigo da família há muito. Poderia tê-la ajudado antes, mas, de alguma forma, fui um covarde.

– Doutor Rubens, preciso que me conceda uma entrevista, é possível? E que delate todas as agruras vividas dentro daquela casa, sem esconder sequer um detalhe. As minúcias nos serão úteis para que a história a ser contada ganhe a simpatia do público e a credibilidade das autoridades.

– Claro! Quando quiser! Está na hora dos abusos matrimoniais cometidos por esse vereador encontrar o seu fim. Juro, vou contar tudo! Chega de mentiras, esse calhorda vai para trás das grades ou não me chamo RUBENS ARRAIA!

– Enfim, encontrei minha mulher! – diz o vereador, entrando no leito, para o espanto de todos. – Foi difícil, mas consegui! Ufa! Ah, desculpem a indiscrição, mas sobre o que estavam conversando? Tive a impressão de que falavam de minha família, é isso mesmo? – indaga, com os olhos agigantados. – Aliás – volta-se para o médico –, o que acha de mudar de nome, doutor?


Após conhecer o estado de Catharine e tomar ciência da morte do motorista, a empregada respirou fundo, abaixou a cabeça, jogou duas ou três palavras ao vento e foi para a limusine, apoiada pelo jardineiro. Havia sido dispensada pelos médicos. Durante o caminho, sentiu o peso do mundo nas costas, desacreditou até mesmo da existência de um Deus; pudera! Tantas maldades sobrecaíam sobre pessoas tão boas. Mas no fundo, tinha consciência de que tudo que pensava, por mais crível que pudesse parecer, carecia de nexo, porque atribuir à divindade um problema seria a forma mais simples de encontrar um culpado para todas as dores que vivenciavam; na pior das hipóteses, seria o tal escapismo propalado pelos poetas românticos, quando a fantasia, bela como uma flor, recebia todo o afago necessário, para que ganhasse o viço capaz de ofuscar, ainda que por algum tempo, a vil realidade.

Ao adentrar as dependências do casarão, o carro para diante da porta da frente. Ainda que bastante exausta, com alguns momentos de vertigens esporádicos, Ernestina desce do carro e se dirige ao quartinho, onde Joaquim viveu todo o tempo em que esteve nesta casa. Precisava senti-lo outra vez, rever sua história, entender o que de fato se passava naquela alma imaculada.

– Ernestina, fia, aondi cê vai? O doutô pidiu pra qui ficassi na cama pruque intá muito fraquinha ainda...Venha, ieu vô ajuda ocê. Ave Maria si tivé outro piripaque, capaz deu morrê premero.

Contrariando o apelo, ela permanece a caminhada até o ninho do motorista, com os olhos mesclados entre lágrimas e faíscas.

– U qui cê tá fazenu no quartinho du Joaquim? Ele já si foi, tá cum Deus... Perssoas boa iguar ele tem um palacete grandão no céu; foi o pastô da igreja qui falô.

– Ele não merecia tal destino, querido! – lamenta-se a empregada.

– Óia, muié, ele era um homi bão – tenta confortá-la –, por isso istá num lugar meió qui o nosso! Óia, é difícer, mais temo que querditá, né?

– Como pode ter certeza do que diz?

– O pastô falô qui quem só faiz o bem, não vai pru inferno, num queimará no carderão do Tinhoso nem será perfurado cum espeto pelas coisa ruim; perssoas boa vão pru céu, onde cantam os anjos, na companhia de um Deus todo poderoso. Ele falô que lá é um lugar lindu, cheio di frores, com um grande rio a correr e muita comida. Lá niguém mais vai sentir farta du que cumê e terá o coração repreto de um amor sem fim, pruque, quem istá ao lado do pai, tamém é um anju.

Ernestina sorri discretamente da ingenuidade do homem; não que o zombasse... no fundo, admirava a beleza surreal daquela alma que agora fazia de tudo para que ela se sentisse menos triste. Talvez tivesse razão, talvez não, mas o que isso importava? Joaquim já não mais existia, pelo menos neste mundo. Infelizmente!

Chega ao quartinho, abre a porta devagar, está tudo revirado, com as marcas de sangue de George ao chão. Não havia canto que não guardasse o odor da carroça de Ankou¹. Ele havia passado por ali atrás de sua caça; sem sucesso, correra por toda Vila dos Princípios, até encontrá-la naquele hospital, onde, sem qualquer remorso, a recolheu, impedindo que a mesma pudesse ao menos se despedir dos amigos. Era o fim de Joaquim!

– Qui fedô, Ernestina! Arguma coisa morreu aqui? Achu qui tem argum bichu podre por aí, devi de se um ratu, é, devi de sê.

– O único “rato” que aqui esteve, permanece vivo, praticando todas as maldades mais condenáveis, com uma onipotência inquietante, por vezes, desafiadora da compreensão do próprio Olimpo.

– Seu Olimpu morreu tamém? Virge, vi eli onti na lá minha rua. Qui dó!

A empregada passa-lhe a mão pela face, comovida; tal beleza interior ainda existia e deveria ser preservada; talvez escondida em algum canto, para que não fosse nunca encontrada por outros homens, principalmente por aqueles que se anunciam “luzes no mundo”, quando não passam de “reflexo das trevas”.

Caminha até uma cômoda, se segura, a vertigem, impecável em sua ira, vem e volta do nada, fazendo-a ainda mais frágil; teimosa, ali permanece. Abre a primeira gaveta do móvel, onde encontra os uniformes do jovem, passados com esmero e dispostos em ordem, demonstrando um capricho difícil de ver. Fecha. Abre a segunda gaveta. Encontra um punhado de fotos amareladas. Pega-as e senta na caminha, cujo colchão de molas, range até irritar. São momentos com a família no sertão: o almoço de domingo, em uma mesa do lado de fora de uma casa de barro quebradiço; o balanço nas árvores, com crianças a tocarem o céu e os abraços dos filhos em uma mãe bem humilde, com roupas de chita, cabelos despenteados e boca desdentada... Apesar da pobreza, ali morava uma alegria que não tinha preço! Emociona-se! Depois as guarda no mesmo lugar e fecha a gaveta. Abre a terceira e leva um susto. Encontra uma rosa, daquelas de cera, que colocamos em uma penteadeira e a admiramos, em cuja perfeição reside uma fragilidade quase surreal. Elevando-a à altura dos olhos, encontra em uma das pétalas, escrito com um objeto fino – talvez uma agulha, o nome de Catharine.

“– Era como se eu fosse uma dessas bonecas de louça, melhor, uma flor-de-cera, em cima de uma cômoda, longe da mão de uma criança, feita apenas para ser apreciada – continua, em meio a divagações – ...assim eu me sentia!!” – relembra a empregada, com os olhos atônitos e a tez retraída. – Meus Deus!!! Como pode? Ele a via também como uma flor-de-cera. Que incrível! Esse ser era de um coração belo, para não dizer divino. Remexendo a gaveta, encontra um pequeno escrito, com poucas palavras, em que era possível se ler: “Se um dia eu lhe der um beijo, morrerei feliz!”

Perdendo a cor, Ernestina cai sobre a cama e respira muito fundo. As emoções lhe avivam a memória.

– Dona, preciso do emprego, cheguei do sertão, tô com fome, fiquei duas noites na rodoviária, meu dinheiro acabou.

– Meu filho, está sem comer? E que roupas são essas? Está muito frio! Como isso? – pergunta a empregada, no portão de entrada da mansão, apiedada.

– Dona, sou um homem honesto, preciso só de uma chance... Vi que estão precisando de um motorista, por favor, me ajude.

– Qual o seu nome, rapaz?

– Joaquim, dona! Joaquim Ferreira!

– Venha, sou Ernestina, entre, vou lhe fartar o estômago, depois veremos o resto.

Leva-o para a cozinha da casa onde lhe serve sobras de um Gratin Dauphinois², servido aos patrões no dia anterior.

– O que é isso? – estranha a iguaria.

– Coma, é bom! Vai lhe devolver as forças. Vamos! Não faça cerimônias.

– Ernest... desculpe, não sabia que estava ocupada – diz a herdeira dos Dumont, ao vê-lo à mesa da cozinha.

Joaquim deixa o garfo cair sobre o prato e a fita com incomensurável surpresa; nunca havia visto uma mulher daquela, cuja beleza destituiria Vênus de seu trono. Irrequieto, passa a ser vítima dos pensamentos mais audaciosos.

– Algum problema, meu filho? – indaga a criada, desconfortada com a situação.

Os olhos dela, grandes e azuis, como faróis, guiariam muitas embarcações em alto-mar. A pele dócil faria Pablo Picasso arrepender-se de retratar em tela uma Mona Lisa tão insossa. Os lábios, ah, os lábios, e que lábios, exalavam o mel que só os apaixonados como Martim encontrariam em uma Iracema, que só José de Alencar, com sua arte fascinante, conseguira reportar ao papel. Meus Deus!

– Joaquim? O que houve? – interfere a mucama, incomodada com os olhares intensos do rapaz, que fazia questão de não disfarçar. – Dona Catharine está a lhe falar.

– Olá, meu rapaz! Como está? – inquire, com um sorriso discreto, ao lhe dar as mãos.

Ele não consegue raciocinar, tanto que a mulher permanece com o braço estendido e mão em posição de aperto, no aguardo de um gesto dele.

– Ele está bem! Não é, Joaquim? – Ernestina, rápida como as raposas, encontra a mão dele com a dela. – Não é?

– Sim! – como se voltasse de uma hipnose. – Sim!

– Em que podemos lhe ajudar? – pergunta, soltando-se dele.

– Me ajude, senhora! Sei dirigir e sei que está procurando um motorista.

– De onde vem? Não parece ser daqui.

– E não sou! Vim do interior do sertão.

– Interior do sertão? De tão longe? Por acaso cometeu algum crime? Foge de alguém? – arrisca uma brincadeira a herdeira dos Dumont.

– Fujo!

As palavras causam apreensão nas duas mulheres.

– Como assim, meu rapaz? – investe a serviçal.

– Fujo da paisagem morta, dos dramas humanos que se aventam, do desespero de perder um ente querido para a fome ou para o crime...

Fujo! Fujo de tudo isso! Talvez seja o meu maior crime abandonar os meus para tentar sobreviver. E se isso for mesmo um crime, cometo-o não com gosto, mas por necessidade.

– “E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-brava que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho...”, já dizia a grande Rachel de Queiroz, em O Quinze, completa Ernestina.

– Verdade, dona!

– Vi que, mesmo sendo do interior, tem conhecimento – afirma Catharine.

– Não muito, quando cheguei a São Paulo, morei na casa de um camponês, um amigo que conheci na Ceasa, que fez questão de me dar um trabalho na roça e me matricular no supletivo. Tenho diploma. Não de doutor. Mas de gente como eu. Com todo orgulho do mundo.

– Mas você não disse que havia acabado de chegar do sertão? Então como estudara em São Paulo? – cobra Ernestina, achando a história do rapaz meio fantasiosa.

– E cheguei.

– Mas... mas...

– Dona, vim para a capital há uns dois anos e consegui abrigo na casa do camponês de que lhe disse, mas ele morreu há uns dois ou três meses, e os filhos, uns gananciosos como nunca vi, venderam tudo antes que eu percebesse e me colocaram na rua. De lá, com o pouco que tinha, tentei voltar para minhas terras, ainda que não fosse o meu desejo. Durante o trajeto, desisti da empreitada e peguei outro ônibus para qualquer lugar; acabei por terminar aqui, sem qualquer vintém no bolso.

– Que história! – comove-se Catharine. – Está gostando da comida?

– Confesso, senhora, tem coisa melhor, como um arroz e feijão com um bom pedaço de carne seca.

– Verdade! – gargalha a empregada com a ingenuidade do rapaz.

– O que faz aqui, minha esposa? – exige George, achegando-se.

– Agora deu para servir quentinha aos miseráveis da região? Um dia será primeira-dama e poderá fazer algo por essa plebe, afinal, será a presidente do fundo de solidariedade do município; por ora, contenha sua compaixão! 

– Estava bom para ser verdade! Foi essa peste chegar para acabar com o clima.

– Cale a boca, empregadazinha! Sua voz de taquara rachada me apoquenta. – Volta-se para o rapaz e dispara: – E, você, meu jovem, termine a “exploração alheia” de que começou e vá-se embora; se quiser outras esmolas, que peça na praça! Lá é o lugar de pessoas de sua estirpe!

– George, não fale assim, ele trabalhará conosco – interfere a dama dos Dumont.

– E fazendo o quê? Já temos um lixeiro!

– Senhor... deixe-me explicar – pede Joaquim.

– Fale! O que deseja?

– Gostaria muito de ter uma oportunidade como motorista.

– MO-TO-RIS-TA? E desde quando sabe dirigir? Se bobear, mal sabe ler e escrever.

– Tenho ensino médio. E carteira de motorista também.

– E sabe dirigir o quê? – examina-o dos pés a cabeça.

– Certamente bicicletas! – ironiza a criada.

– Abusada! Já lhe mandei embora quantas vezes?

– Já perdi as contas!

– Fora daqui, criada dos infernos!

– Nunca! Quem é a Dumont aqui é a dona Catharine, não o senhor; portanto, a ela devo lealdade. Se ela pedir, sairei daqui agora; já suas palavras, para mim, valem menos que as promessas que faz nos palanques a essa “pobretada”, como diz.

– Acalmem-se! – pede Catharine, incomodada com a situação e com os olhos fixos em Joaquim.

– Quem você pensa que é?

– Uma eleitora sua que não sou!

– Catharine, mande esta criatura embora agora! – determina.

A filha dos Dumont emudece.

– “A arrogância que nos leva a acreditar que somos superiores aos outros tem origem no medo de sermos inferiores”.

– O que está dizendo? – ofende-se o vereador.

– Eu, nada! Quem disse foi Mark W. Baker, o grande escritor e psicológico americano. Sou apenas o seu papagaio.

– Catharine... mande...

– Bem, obrigado pelo almoço, preciso ir! – diz Joaquim, atraindo a conversa para si.

– E aonde irá? – pergunta Ernestina, estranhando. – Você é o novo chofer da casa, não é, senhora?

– Sim! – responde, sendo engolida pelos olhares descrentes do edil, que se retira.

– Isso aí, dona Catharine, colocou aquela peste no lugar.

– Desculpe-me, senhora, não queria lhe causar problemas.

– Não causou não, aquele lá não vale uma pataca, apesar do povo imaginar que ele seja um santo. Como são inocentes! – diz a serviçal.

Catharine se retira ao ouvir o choro de Alana, sem dizer nada.

– Eu não deveria ter vindo...

– Deveria sim! – diz, retornando-se das lembranças. – Não conseguiu o que tanto sonhou, mas devolveu alguma alegria ao coração sofrido daquela mulher, cujo maior erro foi ter se casado com aquela praga. E, pior, uma criatura tão linda como essa, morrer acusado de assassinato. Não merecia!

– Qui praga? Ondi, muié?

– Hã... sim!

– Ocê caiu do nada, até pensei que tinha desmaiado di novu...

– Estou melhor, meu amigo. Vamos para a mansão. Preciso me deitar, ver se melhoro, pois amanhã o dia reserva. Vamos!

– Ernestina, num gostu di vir aqui, sabi, me dá um negócio.

– Como assim?

– Ieu mi sintu num Brig Bodi.

– Não o entendo! Do que está falando?

– Daquela tilivisãozinha li ó! – aponta para uma câmera de monitoramento que dá de frente para a porta de entrada do quarto.

– MEUS DEUS! – espanta-se a mulher. – Não pode ser!

– Ieu tamém num gostu, os otros ficam oiando nóis, vai que pareci na Grobo, sô feio dimais.

– George Orwell³ – confidencia-se, trêmula. – Como não pensei nisso antes!

– Num é Giorgi Dumont? – pergunta o jardineiro, não acompanhando o raciocínio ágil da mulher.

– Moacir, fale uma coisa para mim, mas seja sincero, por favor! – pede, levantando-se. – Você viu mesmo seu George com a arma na mão, vindo para cá?

- Sim! Ieu vi mais niguém querditou ni mim. Disseram qui ieu era loco! Mais ieu vi o seu Giorbi entranu nu quartinho com uma pistolona na mão. Juro por nosso sinhô Jisus Cristo!

– Não precisa jurar, eu acredito em você! E agora todos acreditarão! – afirma, olhando a câmera com um entusiasmo há muito não visto, como se tivesse em mente um plano capaz de restaurar a imagem de um homem, qual erro – se é que seja considerado, foi ter amado uma mulher incapaz de se libertar de um casamento, cujas grades, apesar de invisíveis, assemelhavam-se às de uma penitenciária de detenção máxima... Se ela fosse mesmo uma Dumont, vá lá, mas uma Arraia. O preço foi alto demais! – Tenha certeza! O nome de nosso amigo Joaquim será retirado da lama e alçado à grandeza dos mártires, ah, isso eu prometo.

– Tem certeza disso? – pergunta Zelão ao delegado, pelo celular.

– Porque se não entregar meu dinheiro até meia-noite, tenha certeza, não verá a luz do dia. Não brinque comigo, Paineiras, porque o último que o fez, está no cemitério, sendo comido pelos vermes.

– Oh, Zelão, acredite! O prefeito vai me passar a grana antes do horário combinado, fique tranquilo, pois sou homem de palavra...

O capanga desliga o telefone antes que a autoridade finalizasse a frase.

– Infeliz! – diz, tentando conter a sanha. – Vou ligar para o prefeito beberrão, o tempo dele está no fim. Hum! Do jeito que estou, se ele tentar me passar a perna, quem irá parar no cemitério será ele, e não eu, ou não me chamo Paineiras Ken.

– Quem está no telefone, Adelaide? Vixe! Diga que estou no banheiro com uma dor de barriga daquelas – determina o prefeito à secretária.

– Mas doutor, o delegado com nome de planta disse que é urgente!

– Qual parte do que eu disse a senhora não entendeu, criatura? Além de burra, é surda? Aff! Ninguém merece! Depois quando o “gente boa” do Paulo Guedes chama essa cambada de parasita, o povo acha ruim e a imprensa cai de pau. Hum! É cada coisa!

Uma lágrima escorre pela face esquerda da mulher, que agora conversa com o delegado:

– Eu tentei transferir a ligação, mas... mas... – não tem coragem de dizer o que o chefe mandou.

– Cadê aquele pinguço?

– Ele... ele... ele está passando mal! Teve uma queda de pressão.

– Pressão? Hum! Ele que se prepare, se não cumprir com a palavra, cairá é da sacada da prefeitura direto para o inferno.

Desliga.

– Esse prefeito está tentando me enganar... Preciso fazer algo. Mas o quê? Em quem confiar?

Pensa por alguns segundos, quando toma uma decisão inesperada.

– Alô, dona Adelaide! Aqui é o delegado...

– Eu já disse, senhor, o prefeito está...

– Não! Não quero conversar com o prefeito, mas com a senhora.

– CO-CO-MIGO??? Eu não fiz nada, sou inocente!

– Acalme-se! Vi o que ele fez com a senhora, aliás, como aguenta tanta humilhação? Precisa de ajuda, então ouça...

– O senhor toma um copão de saquê comigo, seu Meia-Noite? – pergunta Tanaka a uma figura sinistra, baixinha, de cabelos longos, bigode ralo e malfeito, camisa aberta, com os pelos brancos à mostra, em meio a uma jaqueta surrada.

 

– Homi, espero que o serviço valha a pena, deixei de apagar uns quatro lá pras bandas de Santo André. Sabe como é, se mexerem com o “dono do triplex”, acaba com uma bala nas fuças.

– Eeeeita! Então o senhor anda cheio de serviço?

– Uuuh!!! Não posso reclamar. Sabe, seu prefeito, dia desses apaguei uns dez com uma bala só. Porque comigo é assim, piscô, a bala tá no zóio, como diria Bernardino .

– O senhor é um dos meus! – gargalha. – E por que o nome de Meia-Noite mesmo?

– À meia-noite em ponto, o cabra cai de costas para nunca mais ver a luz do dia.

Tanaka aplaude, eufórico.

– Vou lhe dizer uma coisa, prefeito, já matei uns nove mil, tava até pensando em me aposentar, mas com a reforma da previdência, vou ter de apagar mais alguns; é, vida de matador também não é fácil.

– Pois eu sei o que está sofrendo, esses políticos não prestam, só pensam nos bolsos deles. Oh cambada!

– Homi, mas o senhor não é político?

– Aff! É mesmo! – dá uma longa risada, virando a garrafa. –Tinha até me esquecido. Pois vamos lhe garantir uma aposentaria melhor e aumentar o número de mortos de sua lista. Tenho um cabra que não pode passar desta noite, melhor, da meia-noite.

– E quem é o peste?

O tempo corre nas vielas do horizonte...

Pietro chega à redação do Jornal “Tributo ao Povo” e se dirige rapidamente à sala do editor-chefe, com a entrevista concedida pelo doutor Rubens Arraia.

– Júlio, você precisa ouvir isso, nunca acreditei que o vereador George Dumont fosse capaz de tamanha crueldade.

– Doutor Tobias já disse, não publicaremos qualquer matéria que desabone estes canalhas, afinal, o jornal está em crise, por pouco não fecharemos as portas.

– Mas é um furo de reportagem.

– Não, Pietro! O jornal não aguentará o baque.

– E por isso não deveremos revelar aos leitores a desfaçatez de um de seus principais mentores políticos? Vamos nos omitir mais uma vez? Que imprensa livre é essa?

– Deixe de cena, já discutimos sobre isso!

– Sim! Mas é uma bomba daquelas, nunca pensei que ele fosse capaz de tantas trapaças, de tantos golpes baixos. Ouça ao menos.

– Depois.

– Então me deixe falar com o doutor Tobias.

– Impossível! Ele já foi para casa. Agora me dê licença, preciso finalizar a edição de amanhã, porque as histórias serão lançadas ao vento: a oposição será acusada de ser a possível mandante do atentado ao vereador e o motorista Joaquim de possível amante da senhora dos Dumont.

– Homem, estas histórias não são nada perto do que tenho aqui e, mais, o caso de traição caiu por terra, o motorista acabou de...

– ...Morrer? O hospital me informou, por isso estou aqui, ainda revisando a reportagem.

– Morrer, não! Ele foi assassinado! Espere para ver!

Encerra com a música: (Adagio in G Minor - Tomaso Albinoni)

________________________

1. No noroeste da França, as pessoas acreditavam que Ankou era a personificação da morte, descrito como um homem e um esqueleto que foi acusado de proteger os cemitérios e as almas neles contidas. Quando a noite caía, Ankou, o ceifeiro dos mortos, conduzia uma carroça puxada por cavalos esqueléticos, recolhendo a alma dos doentes e moribundos.

2. O Gratin Dauphinois, de origem francesa, nada mais é que uma batata gratinada, com molho bechamel e um pouco de queijo parmesão ralado.

3. George Orwell (1903-1950) é o pseudônimo de Eric Arthur Blair, escritor e jornalista inglês, conhecido pelo livro ―1984, cujo enredo se passa num país fictício onde há um regime político totalitário. O personagem principal do livro é um funcionário público consciente da opressão que vivia. Tal obra inspirou a criação do programa ―Big Brother, ou ―Grande Irmão, na tradução literal, sucesso de audiência no mundo todo.

4. Bernardino, personagem vivido pelo inesquecível Amácio Mazzaropi no filme ―O Lamparina, de 1964, é um pacato homem do campo que para não se defrontar com o bando de cangaceiros de Zé Candiero, acaba se disfarçando e é confundido com um deles. Incrementando a farsa em que se encontrou, faz sua família passar por seu bando e acabam indo parar no acampamento dos verdadeiros cangaceiros, onde o destemido Lamparina vai ter que mostrar sua valentia.




autor
Carlos Mota

A novela "Flor-de-Cera" é remake de "Venusa Dumont - da memória à ressurreição" de Carlos Mota
 
elenco
Grazi Massafera como Catharine Dumont
Thiago Lacerda como George Dumont
Ricardo Pereira como Joaquim
Elisa Lucinda como Ernestina
Carlos Takeshi como Tanaka Santuku
Miwa Yanagizawa como Houba Santuku
Jesus Luz como Pietro Ferrara
Lucinha Lins como Franceline Legrand Dumont
Lima Duarte como Dilermando Dumont
Herson Capri como Doutor Rubens Arraia
Tonico Pereira como Moacir
Werner Schünemann como Paineiras Ken
Rosi Campos como Adelaide
Humberto Martins como Alberto Médici
Cauã Reymond como Ricardo
César Troncoso como Zé dos Cobres
Ilva Niño como Josefa
Selton Mello como Zelão
Matheus Nachtergaele como Meia-noite
Caio Blat como Delegado de Vila Bonita
Caio Castro como Leandro
Alexandre Borges como Doutor Jaime
Caroline Dallarosa como Carmem
Fernanda Nobre como Stela

participação especial
Stênio Garcia como Doutor Lúcio
Drica Moraes como Desirê
Marco Nanini como Chico Santinho

atores convidados
Ary Fontoura como Doutor Tobias
Alexandre Nero como Júlio Avanzo
Elizangêla como Maria

a criança
Valentina Silva como Alana

trilha sonora
Lágrimas da Mãe do Mundo - Sagrado Coração da Terra (abertura)
Adagio in G Minor - Tomaso Albinoni


desenhos
Andrea Mota

produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela

Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO


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