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Cine Virtual: A Camisola Prodigiosa

Conto de Kátia Surreal
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Sinopse: Este é um conto de uma camisola que tem uma longa trajetória histórica, da qual as pessoas desconhecem e, por isso, se assustam com ela. É que a camisola ganha dimensões humanas, desde a sua origem na fazenda, as suas vivências na fábrica e passando por várias situações em lojas e com os seus proprietários da vez. Trata-se de um sinistro processo fetichista e fantasmagórico de um produto mercadológico, que ganhou vida e deseja muito falar contigo.

A Camisola Prodigiosa
de Kátia Surreal

Dona Rita de Jesus é dona de um humilde brechó do bairro Fonseca, em Niterói. A sala principal de sua casa foi transformada em seu espaço de trabalho e sobrevivência. Ah, mas ela era aposentada, porém ainda assim... Bem, isso não é nenhuma novidade, né? Vamos então aos fatos mais importantes desta pequena historieta.

A mulher de cinquenta e nove anos sentia muito calor na ocasião. Já era verão e seu minúsculo quarto estava impossível de suportar. Apesar de vários trapos que recebia da vizinhança para revenda poluírem o ambiente doméstico-laboral, ainda assim, a sala lhe era o melhor lugar para se dormir. O calor niteroiense estava tanto, que a aposentada resolveu se distrair, abrindo a última caixa que havia recebido com os produtos para revenda, e que, por falta de tempo, não chegou a ver pela manhã, assim que recebeu da pastora de uma igreja local.

Em meio a tantas inutilidades, panos de pouco valor e alguns objetos inúteis, encontrou uma bela camisola de seda. De imediato, pensou em seu marido, que a abandonara há quatro anos por causa de uma periguete. Puxa, com esta camisola é certo tê-lo de volta! O mais interessante foi que o traje parecia tão apropriado ao corpo cheinho de Rita de Jesus, como se tivesse sido feito pra ela. Ah, e a cor champanhe cairia tão bem em sua pele cafuza! Não importava se a roupa pudesse render algum trocado a mais do que os demais trecos da caixa. A camisola agora era sua.

De repente, o sono veio pesado. Já eram quase duas da matina, e amanhã seria dia de muito trabalho. Tomada pelo cansaço extremo, dona Rita de Jesus largou o tal vestido em cima da poltrona e se jogou num sofá, que estava também à venda, na sala, e adormeceu profundamente. Depois de algumas horas de absoluta escuridão do inconsciente, Rita foi despertada com uma doce música clássica. Mas ué! O rádio estava desligado! Como assim?!

Foi então que se deu conta de que um delicado tecido sobrevoava por toda a sala, apesar do local estar completamente fechado, sendo impossível entrar qualquer fio de vento por ali. Opa! Era o tal vestido de seda, que se mexia sem freio pelos ares. A aposentada esfregou então a vista pra melhor entender o que ora presenciava. E não é que camisola dançava em meio ao brechó, como numa valsa prodigiosamente ausente de corpo. Como pode isso?! Me belisquem, por favor, que este pesadelo já deu! Tá ficando tenebroso demais. Mas não. A coisa acontecia bem diante dos olhos, que a terra um dia haveria de saborear. Horror! Horror!

O que fazer agora? Talvez rezar, mas vou te contar: é bem difícil conseguir cerrar a vista e se concentrar numa reza perante tenebrosa circunstância. Rita de Jesus estava tonta e bege diante da macabra valsa.

– Pare, pare, por favor! Pelo amor de Deus, criatura! –, implorou a mulher em prantos e de joelho.

Foi assim que, para o seu maior espanto, a vendedora descobriu que a peça de seda também era capaz de falar, além de dançar:

 – Que isso, dona! Só tô bailando um cadinho, sô! –, respondeu o vestido de dormir, com a voz tão mais mimosa do que a sua seda, e continuou valseando por todos os cantos.

– Não! Não! Pare já de me atormentar!

Mas a camisola permaneceu dançando e dançando, enquanto Rita de Jesus quase desfalecia de tanto pavor.

Vendo que não havia jeito de parar a coisa dançante, a pobre mulher, ainda de joelhos, fez uma cruz com os dedos, mirando a roupa assombrosa, e bradou:

 – Pare já, criatura! Diga logo a que veio, pelo amor de Deus! Que espécie de demônio se guarda debaixo desse pano? Hein?!

A camisola então parou. Disse-lhe que não pretendia causar susto; apenas ser livre. Mas, constatando que a pobre aposentada era incapaz de compreender o fenômeno, resolveu lhe contar um pouco de si:

– Ora, ora, minha senhora. Desculpa o espanto, viu? Não sou o demônio que tu pintas, e, sim, fruto duma ordem demoníaca.

Apesar de muito assustada, Rita de Jesus se esforçou em ouvir o que a criatura pretendia lhe dizer; até porque, tudo que ocorria nessa madrugada prodigiosa era bastante confuso mesmo para se aceitar tão de pronto assim.

– Sabe, dona, eu tenho muitas almas, ainda que eu seja um único e simples vestido de dormir. É que guardo em mim muitas histórias dos que me foram transformando e atribuindo significado aos pouquinhos.

– Puseram muitas almas num vestido?! Oh, que horror! Como faço para que te libertes, criatura? –, indagou Ritinha, com o rosto voltado para o lado, de tanto choque.

Enquanto isso, a camisola foi se sentando no sofá, cruzou-se com toda uma feérica elegância vazia de matéria. Após se acomodar bem, a bela veste continuou narrando a sua fábula:

– Nasci numa fazenda, pra lá do interior de Santa Catarina.  Uma humilde família foi quem deu início à minha existência. Sou fruto do bicho da seda, meu habitat natural fica nas amoreiras, e já cheguei ao mundo assistindo ao duro trabalho dessa gente explorada na roça. Também carrego em meu DNA um cadinho dos inseticidas dos ventos soprados lá da plantação de soja vizinha...

Nesse momento, dona Rita de Jesus foi parando de se esconder entre as suas mãos, dando uma atenção íntegra à outra:

– Bem, depois, eu me lembro que sobrevivi por alguns dias na escuridão. Me transportaram de caminhão até a fábrica. Eu me lembro, eu me lembro...

Camisola, de repente, mudou o tom de voz, não conseguindo mais conter as lágrimas, ao narrar a sua cruel rota:

– Jogaram água fervendo em mim na fábrica.

– Água fervendo?! Uai! Por que isso?

– Isso mesmo. Um pouquinho de mais sorte, eu teria me transformado numa bela borboleta a voar por aí. Mas não, né. Meu infeliz destino foi só se tecendo numa linha de vida sem volta. Me esticaram fio a fio. Depois, a senhora nem pode imaginar o que me sucedeu...

– É mesmo? Pois continue.

– Bem, depois eu fui atingida. Digo, tingida. Me deram este tom aqui, que tantos homens e mulheres apreciam. Uns afirmam que sou da cor champanhe. Outros tantos, que espelho a cor do luar. Pra mim, tanto faz –, concluiu Camisola, dando de alças.

– Bem, a sua cor é muito atraente mesmo e...

– Sei que pretendia reconquistar o ex-marido, experimentando a minha tez. –, disse Camisola, apressando-se em seu julgamento.

Rita de Jesus foi ficando cada vez mais surpreendida com a história de Camisola. Ao mesmo tempo, se sentia atraída em saber como uma camisola poderia guardar tantas histórias humanas. Fato foi que a aposentada tivera um intuito inicial de usá-la com fins fetichista com o marido. Quereria o ex de volta a todo custo, mas...

– Não se engane, senhora. Não posso reconquistar o seu ex-marido.

Disse isso e continuou:

– Permaneci por mais de um ano estagnada numa caixa como esta aqui, que a senhora me encontrou há algumas horas. Logo, me pegaram e me levaram até o estado de São Paulo. Fui parar na mão dum escravo boliviano, que me teceu lindamente num só dia.

– Ah, pô! Para com isso! Como assim escravo boliviano em São Paulo?! Escravidão já acabou há séculos, queridinha! Vamo parando já com esta conversinha pra boi dormir, ‘viu? Abre o jogo e me diz de pronto que espécie de demônio és tu, e quem te deu a vida, e o que quer de mim. Aff!

Nessa hora, Camisola soltou uma forte gargalhada de sarcasmo e dó de sua nova proprietária ignorante, assim como todos os que passaram por sua vida até então. De toda, forma, julgou necessário que Rita de Jesus soubesse tintim por tintim sobre a sua trajetória, a qual carregava seu pequeno ser, aparentemente inanimado.

– Escravidão existe e aos montes no Brasil e no mundo inteirinho. A senhora está alienada da realidade. Não só o boliviano que me deu a presente forma, como havia muitos outros escravos por lá, naquela casa, a costurarem o dia inteiro, recebendo só pão seco e café ralo.

– Misericórdia! Sério isso?! E como foi que a senhora veio parar aqui, hein?

– Então... Como me consideraram muito chique e bem acabada na ocasião, fui levada a uma loja de grife. Lá na capital paulista mesmo. Não tardou muito, uma madame de classe média me comprou. Me encheu de perfume e me pôs numa situação entre dormir e apanhar de seu misógino marido durante diversas noites e algumas manhãs.

– Nossa! E aí?

– E aí que, após alguns anos de submissão, eu já não lhe servia mais. A madamezinha resolveu me leiloar entre umas amigas. Olha, tenho que dizer que já tive muitas donas e até um dono também, se quer saber. Uma era até prostituta. Só eu sei o que já passei por essas estradas da vida... Mas agora estou aqui, a sós contigo. Tudo o que mais quereria agora era dançar por esta noite e...

– Meu deus! Que destino, sô! O que posso fazer pra te ajudar a ter um mínimo de paz?

– De fato, preciso de muita paz, amiga. Antes, precisava compartilhar com a minha última senhora todo o segredo da maldita ordem. Bem, já pode me queimar.

– Queimar?! Como assim?! E que história é essa de segredo da maldita ordem?

– A ordem do mundo, querida! Este sistema opressivo que nos humilha, nos vende e aliena. Mas vamos lá, pode me queimar viva agora. Antes, só preciso dançar mais um bocado neste fim de madrugada. Pode ser?

Nisso, Camisola começou a saracotear, dando vida ao seu tecido maravilhoso. Só que, de súbito, a porta foi aberta. Era Neide, a filha de dona Rita de Jesus. A jovem ficou boquiaberta com o que acabara de presenciar.

– Calma, filha! Esta camisola é uma sujeita muito sofrida. Não faça nenhum escândalo, ‘viu? Ela só quer dançar a sua derradeira dança, antes que eu a queime viva, conforme a própria me pediu.

Ambas as mulheres se sentaram no sofá, enquanto Camisola dava o seu espetáculo mórbido. Ao mesmo tempo, dona Rita de Jesus buscava resumir rápido para filha a narrativa da Camisola. Apesar de um tanto assustada –, quer dizer, nem tanto como a mãe havia ficado de início –, Neide fez questão de registrar o momento com a câmera do seu celular.

Quando o relógio bateu sete horas da manhã, Camisola caiu adormecida na poltrona, de tanto bailar. De imediato, a aposentada correu à cozinha para buscar o isqueiro e atear fogo no pano duma só vez. Assim, estaria atendendo ao pedido da Camisola e a livrando de tanto sofrimento. Só que Neide, esperta, segurou firme a mão da mãe nesse momento, não deixando que ateasse fogo na Camisola. A jovem, rapidinho, havia postado o vídeo na internet. Quis porque quis fazer uma espécie de museu improvisado, em que a roupa de seda seria o espetáculo. A princípio, a mãe não achou uma boa ideia, mas acabou cedendo ao desejo e à insistência da filha em lucrar em cima do assombroso evento.

Quanto a Camisola, coitadinha, não foi dessa vez que teve sossego. Seguiu servindo, sabe-se lá por quanto tempo, como uma lucrativa celebridade sobrenatural do bairro niteroiense. Como vingança, entretanto, Camisola nunca mais ousou dançar. Se fez de morta. Não quis dar mídia.

Conto escrito por
Kátia Surreal

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Márcio André Silva Garcia
Ney Doyle
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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