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Antologia O Mal que nos Habita: 1x02 - No Desfiladeiro do Fim

Conto de David Leite
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Sinopse: O relato de um homem amargurado e solitário sobre a descoberta de estranhos poderes que, mais que tudo, se tornaram a maldição de tua vida.


No Desfiladeiro do Fim
de David Leite


Não tenho, em absoluto, nenhum prazer aos elixires que loucamente tomo para me entorpecer. Não foi por busca de deleites que arrisco a reputação e a vida, mas sim na tentativa desesperançada de escapar de memórias tortuosas, da ciência de minha intolerável solidão e o terror de insondável tragédia iminente.

“Deus tenha misericórdia de uma pobre alma”, era meu mantra particular. Equilibrando-me no banco perrengue, apoiava-me como pudesse no balcão da taverna, em vista às prateleiras de vinhos, expostos como uma procissão subindo um altar bacante. Enquanto sorvia de um só gole o conteúdo de minha caneca, o taverneiro lançava olhares condescendentes, enxugando um caneco recém lavado. Não questionava mais o que se passaria comigo, dado o comum estado de embriaguez ao qual me mantinha diuturnamente há tempos. Também não tentava me impedir de continuar me intoxicando. Apenas dava atenção para minha desgraçada figura aguardando a próxima vez que estenderia o braço, mudamente solicitando outra dose. E o limite para mim seria apenas quando meu próprio braço acuasse e não mais se deparasse com forças para se estender nessa requisição.

Quando esse momento chegou, minha cabeça caiu pesadamente sobre a mesa. Fiquei ali, profundamente, nesse espreitar da escuridão. Perguntando, duvidando e sonhando sonhos que jamais um mortal havia sonhado.

Entenda que os motivos de minha tragédia não são os de um homem comum. Não me consideraria superior a alguém, de nenhuma forma. No entanto, as calamidades que afligem a maioria, mesmo nas maiores dimensões, que desassossegam vivamente nossa fantasia, acontecem longe e atinge a muitos, mas não a mim. A verdadeira infelicidade me é, na verdade, muito particular. Os extremos apavorantes da agonia são sofridos pelo homem só, e nunca pelo homem da multidão.

Talvez algum dia encontrasse alma que reduzisse minha assombração a algo comum. Um gênio mais sereno, não tão excitável como o meu, que percebesse nas minhas circunstâncias não o horror a que me refiro, mas apenas uma natural sucessão de razões e consequências.

 Em minha meninice, não fui como os outros. Não podia extrair prazeres de uma primavera vulgar e nem da mesma nascente alheia traguei minhas tristezas. Minha alma borrascada rugia contra o comum do bem e do mal, e, portanto afastava-me de convívio provençal.

Tal individualidade, diria alguém, teria me prejudicado de forma indelével a contracenar com a vida e seus atores e tramas. Mas não sentia isso. No casebre rústico e modesto no alto da montanha em que me criei com minha avó, tudo que me bastava, além da água da cisterna, da carne e lã das ovelhas era o olhar de minha senhora, profundo e brilhante como um oceano.

Embora não completamente isolado de tudo, e apenas a pouca distância de uma vila, nosso eremitismo nos era comum desde tempos além de meu nascimento. Minha avó jamais fez questão do entendimento com os habitantes do campesino vilarejo aos pés da colina, tampouco seu povo lhe era amigável. Nas raras vezes em que imprescindia de algo que nosso modesto cultivo não nos pudesse prover, eu era invadido com os mais impertinentes olhares dos alcoviteiros e intriguistas do vilarejo enquanto ia até os pequenos empórios do centro.

Foi em uma dessas vezes em que senti pela primeira vez a crueldade daqueles energúmenos. Enquanto mais uma vez carregava o cesto para trazer temperos e ervas encomendado por minha senhora pela colina abaixo, nas vicinais do vilarejo um bando de jovens, pouco mais velhos que eu àquele tempo, depois de examinar-me a distância da mesma forma indócil de sempre, me interpelam antes de entrar na rua de terra que levava adentro.

 - Olá, rapazote. O que temos aqui hoje?

Meu acanhamento costumeiro e a surpresa com a situação me emudeceram. Tentei apertar os passos para passar pelo grupo rapidamente, mas sou barrado pelos três rapazes.

  - Onde pensa que está indo? Está indo comprar algo para àquela bruxa na colina?

Como se meu próprio caráter já não fosse suficiente para odiar àquela gente, o insulto fazia me enraivecer inda mais.

 - Eu quero ver quanto tem no bolso – O maior deles continua sua agressão, quando outro deles tenta dissuadi-lo.

 - Pare com isso. Não sabe que ele vive com uma bruxa? O dinheiro dela está amaldiçoado.

 - Ora, dinheiro amaldiçoado é tão valioso quanto o comum. Vamos, me dê o que você tem ou te quebro.

Cabisbaixo, remoendo aquilo a ponto de sentir a bile ascender pela minha traquéia e descansar em minha língua, mas no mesmo tempo sabendo que não poderia retaliar contra aquelas criaturas, vasculhei os bolsos do surrada calça e estendi as moedas gastadas que carregava. As parcas economias que juntávamos com árduo empenho.

Os quadrilheiros não se contentaram com o punhado de bronze que estendi. Agarraram-me pelos braços violentamente, enquanto o terceiro deles examinava com maior afinco. Com os braços torcidos para trás e a cabeça constrangidamente voltada para o chão, senti o ódio no meu íntimo crescer célere, como se uma correnteza represada tentasse com ferocidade destruir as paredes que a reprimem.

Um tremor então surgiu, e vi o chão de lama seca rachar sob meus pés. Os meliantes se espantaram, me libertando, e em um momento quando o tremor de terra cessou se puseram a correr olhando para trás, em espanto, para minha direção, como se eu fosse o motivo daquele abalo.

Corri novamente para casa, mas fiquei alguns momentos do lado de fora, sentado no banco de tora, olhando para meus pés, atônito, tentando consumir a situação. Os lapsos do acontecido me vêm novamente, e novamente sinto explodir algo em mim. Quando retomo o pensamento, o banco feito de tronco de macieira estava à altura do chão, quebrado em duas metades, comigo no centro.

Apavorei-me e entrei em casa.  Minha vó na velha cadeira de balanço viu me consternado e, com o mais terno olhar, estendeu os braços em minha direção sem contestar o que aconteceu.

Fiquei os próximos dias refletindo sobre o que havia ocorrido. Se fosse mesmo a minha exaltação que houvesse causado tamanho estrago ou se estaria em malsã consciência finalmente, tendo passado desde a tenra idade internalizando qualquer alma espúria dentro de mim. Concentrei-me nos afazeres da nossa pequena quinta, dado que a vetustez de minha amada vó a impedia nos quefazeres mais penosos. Retirava água do poço e enchia o grosso caldeirão da cozinha; tosquiava a lã das ovelhas e a desfiava para que minha senhora pudesse coser vestes para a temporada de frio que se aproximava; colhia os vegetais de nosso quintal.

Em dado dia, quando precisei matar algumas borregas para um caldo mais carnoso que no confortasse naquela noite, senti novamente a silhueta das insólitas penumbras dentro de mim. De lâmina em punho, com o cordeiro amarrado em posição sacrifical, o que era comum fazer em outros tempos, repentinamente me cobriu de assombro. O ser vivo o sangue quente, o expirar sofrido do animal trouxe-me sentimentos incomuns. Se em outras oportunidades o fazia sem qualquer juízo, apenas para saciar a nossa fome, nesse momento um sentimento de poder se apossou de mim. Eu era o carrasco daquele ente. Poderia decidir se ele viveria ou morreria. Afrouxei o punho em torno da faca por um momento, mas a fragilidade de minha avó retornou a minha lembrança, e confortaria seu apetite de qualquer maneira. Um segundo golpe de faca finalizou o sofrimento da criatura.

Dias após retornei ao vilarejo, em nova tentativa de vender itens de nossa horta e adquirir nossos alvitres. Os mesmo olhares de antes. Não menos, nem mais odiosos. Provavelmente o bando de garotos que me atacaram não havia também espalhado algum rumor sobre o ocorrido. Possivelmente por entender que suas atitudes comigo não foram das mais corretas.

Estendi o saco de estopa no balcão da mercearia e pedi os itens que nos faltavam. Enquanto o dono se punha para dentro do casebre para pegar a mercadoria, uma jovem dali, que não havia visto nenhuma vez antes, se aproxima de mim.

 - Oi. Você não é daqui, não é?

Novamente, estaquei no lugar. Não era íntimo de amenidades com ninguém. Eu e minha avó poucas palavras trocávamos, embora o afeto dela fosse demonstrado de muitas maneiras. Mas acostumei-me a ser quase completamente ignorado naquele lugar. Não ficaria confiante ao diálogo naquele momento, mas mesmo assim respondi.

 - Não. Eu moro no alto da colina.

 - Sozinho? – O olhar curioso da menina me causou desconforto, embora toda sua atitude fosse de empolgação.

 - Não. Moro com minha avó. Vim apenas buscar coisas para ela.

 - Entendo. Eu também moro com minha avó. E minha mãe e pai. E meus irmãos

O sorriso dela era enternecedor. Por algum momento, baixei minhas defesas e tentei me confortar como poderia para aquela situação.

  - Você parece que não sai muito, não é? Alguém de sua idade deveria estar brincando conosco.

  - Eu... Tenho obrigações.

  - Ora, todos têm. Mas não se preocupe tanto. Que tal você vir aqui se divertir comigo e meus amigos amanhã? Depois de entregar as coisas para sua avó?

Por algum motivo, sua voz aguda e exultante me amaciava. Sentia-me estranhamente alegre com aquele convite.  Voltei para meu casebre mais animado, até um sorriso daria se também não fosse tão inepto nisso. Ao abrir a porta, minha vó estava novamente na cadeira de balanço, tecendo trajes atenciosamente com a lã que esfolei das ovelhas. Ela lançava um olhar pacato para mim e, embora não tenha dito uma palavra, abriu o sorriso com seus lábios enrugados ao perceber-me mais venturoso que o costumeiro. Naquele momento também senti um pouco de pesar por ela. Visivelmente minha avó estava no fim de sua história. A tosse constante tem aumentado, e a lentura, o peso sobre os ombros que parecia carregar mais e mais parecia lhe afligir. No entanto, o brilho e a profundidade daqueles olhos pacíficos pareciam ter a mesma intensidade desde que me lembro.

Não o tínhamos o costume de falar abertamente. Não era apenas a velhice que tolheu a eloqüência de minha senhora. Ela sempre foi calada, como se um voto tivesse sido feito em idos tempos. Não saberia dizer quem foi minha mãe e pai, pois ela não respondia minhas questões, e com o tempo, o que ela me sonegou perdeu a importância. A única certeza que tinha era seu amor por mim. E eu retribuía com o mesmo.

Passado aquele dia, embora temerário, decidi que atenderia ao convite da jovem que me causou tanta impressão. Foi a primeira pessoa que não temi naquela vila, e depois de pensar, acreditei que aquela solidão me afetava de tal modo que insidiosamente tornou meu ânimo desvirtuado, como sentia nos últimos tempos.

Primeiro despedi-me de minha avó. Ela parecia cansada, como costumeiramente, mas sofregamente me lançou o sorriso amável como de costume. Desci a colina, com certo entusiasmo. No mesmo local em que antes havia sido molestado pelo grupo de arruaceiros, estava ela, com o mesmo sorriso acalorado de anteriormente. Cheguei até ela tentando absorver aquele acendo para meu próprio espírito, e assim afastar um pouco vazio que sentia propriedade de mim.

 - Aí está você? – Ela me recebe – Estava esperando. Acho que nós vamos nos divertir muito, hoje.

Consigo finalmente arquear um sorriso completo. Ela meneia a cabeça por um instante, e faz um gesto de mão, convocando alguém às escuras.

Detrás do madeiriço que fazia às vezes de cerca, os três mancebos que me abordaram outrora surgiram ameaçadoramente

 - Tem razão. Nós vamos nos divertir muito, mesmo. – O maior deles intimida.

O meu sorriso inverteu-se imediatamente. A alegria se tornou agonia e dei passos para trás, meus olhos se abrem com as pálpebras tão recuadas que quase não existiam.

 - O que foi garoto bruxo? Achou que a gente não ia se vingar de você? Achou mesmo que você seria bem vindo aqui?

Pouco poderia descrever a sova que tomei em momentos seguintes. Despertei minutos após, e aturdido, percebo que todos haviam desaparecido. Arrastei-me por alguns momentos até reunir forças para me levantar e voltar para minha casa, ruminando o que aconteceria quando minha avó visse meus ferimentos.

Mas, para meu horror, sua reação não seria o que mais me assolaria. Abrindo cuidadosamente a porta de nosso pequeno casebre, o medo se alastrou por mim com o que vi. A minha vó, caída no chão. Inerte.

Corri a tentar socorrê-la. Em meus braços a vejo com os olhos abertos, não mais brilhantes gemas, mas sim opacos e vagos. Pulso, respiração... Nada. Ela deveria ter finado ainda na cama, e caído ao chão num último estertor.

Quando me pus afora com ela em meus braços, o sol de outono, num matiz dourado do ocaso, girou ao meu torno e uma lágrima inundou minha pálpebra. E de repente de meu peito rebentou-se a fibra, e a escuridão que se engrandeceu em meu coração finalmente tomava forma. Lancei meu delirante olhar para a vila aos meus pés, e num uivo, num grito, metade de terror e metade de triunfo, que poderia ter saído apenas do subsolo infernal, da garganta dos malditos, em sua dor, e dos demônios em seu gozo pela suas condenações, o solo rumorosamente se dividiu numa bocarra gigantesca. Engolindo com a mesma bestialidade estruturas e gente, o penhasco rubro tornou-se agente de minha vingança almejada febrilmente. Em pouco mais que alguns momentos, com gritos de desespero e estrondo de destruição a vila caiu para o poço profundo de escuridão, assim como eu caí naquele dia.

Agora, submergido da bodega em que me embebedava, cá estou diante da pequena sepultura que o labor dos ossos de meus dedos permitiu produzir àquela que amei só, como tudo que amei. De frente ao terrível abismo que criei, tributo indesejado ao que me tornei naquele dia. Uma alma irremediavelmente partida, atravessada por um incurável inciso negro.

E como os gritos, o som de águas de profundas incógnitas me perseguem desde então, cá estou para ouvi-las mais de perto. Mesmo que sabendo o que sempre dirão.

 - Você morreu conosco...

Assim, retorno para meu justo lugar, só assim conseguiria apaziguar meu pranto. Quando me juntar às almas do desfiladeiro. O desfiladeiro do meu fim. 

Conto escrito por
David Leite

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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